O maior pássaro que povoa o Pantanal é o tuiuiú.
Mas, que comparação da filosofia kantiana poderíamos fazer com tal ave?
O tuiuiú, para prevenir o intenso calor que sofremos nessa região do centro-oeste sempre faz o seu ninho a uma altura considerável do solo e, via de regra, procura abrir as suas asas sobre os filhotes nas horas mais terríveis de calor, além de trazer-lhes água pelo seu imenso bico.
Pois bem, o nosso pássaro sempre conhece qual a melhor posição para colocar o seu ninho, ou seja, possui uma visão do todo para poder sobreviver às agruras do clima pantaneiro.
Assim, uma das ferramentas que o tuiuiú usa para proteger a prole é o instinto ou intuição. Com efeito, ele não pode elaborar qualquer tipo de juízo de valor sobre os raios solares ou o tempo que estes ficam em incidência direta sobre os seus pobres filhotes.
Ele simplesmente escolhe o melhor lugar na árvore e deixa que as suas próprias asas sirvam de anteparo para o sol.
Qual o conhecimento que ele teria de um fenônemo tão complexo?
Poderíamos supor que o tuiuiú tem um conhecimento a priori dos efeitos dos raios solares ao ponto de elaborar esse mecanismo de defesa?
Ou seria necessário uma mortandade de sua prole para aprender a lição para as gestações futuras?
Kant explica.
Emanuel Kant (ou Immanuel Kant, se formos preciosistas) nasceu em Königsberg, Prússia, em 1724. Foi educado no pietismo, isto é, seita religiosa que, como os metodistas da Inglaterra, insistia na plena rigidez e no pleno rigor da prática e de crença religiosas. Formou-se em filosofia na universidade natal, onde em seguida, lecionou a mesma matéria. Faleceu em 1804.
A história do pensamento kantiano distingue-se em um período pré-crítico: antes, científico-newtoniano, depois, dogmático-racionalista, enfim, cético-empírico; e em um período crítico, durante o qual Kant publica as suas grandes obras críticas: a Crítica da Razão Pura (1781); a Crítica da Razão Prática (1788); a Crítica do Juízo (1790).
Com efeito, a análise crítica do autor é o ponto que nos interessa, na medida em que "o criticismo" representa a síntese especulativa do fenomenismo racionalista e empirista modernos, donde derivará o idealismo modermo e, em geral, o pensamento contemporâneo.
Como fundador do criticismo, Emanuel Kant, vem a ser, portanto, o centro da filosofia moderna. O criticismo quer limitar a capacidade do conhecimento, não quanto à sua extensão, mas quanto à sua justificação em si. Porém, na medida em que esse exame da razão por ela mesma deve ser público, ou seja, capaz de se confrontar ao pensamento e às práticas de outro, parece que a conduta crítica é o único meio de evitar tudo o que se assemelha à dissimulação, ao secreto e ao egoísmo: corresponde então com muita precisão à faculdade de legiferar universalmente que a razão é por definição.
Na primeira crítica de Kant, Crítica da Razão Pura, ele propõe que a verdadeira composição do conhecimento está na possibilidade de se obter a "síntese a priori" e que, por isso, tudo está no descobrir qual é o fundamento que torna possível a "síntese a priori".
Resolvendo-se o seu real fundamento, pode-se igualmente solucionar as possibilidades do conhecimento científico (ou seja, o verdadeiro conhecimento).
Ocorre que tal conhecimento compõe-se fundamentalmente de proposições ou de juízos universais e necessários e, ainda por cima, incrementa continuamente o conhecer.
Mas, que tipos de juízos são aqueles de que se vale o conhecimento?
Até então, havia-se tentado explicar o conhecimento supondo que o sujeito deveria girar em torno do objeto, assim, no Direito, teríamos que o homem ao observar os fatos, faz deles normas gerais para todo o Estado.
Mas e se invertêssemos os pólos, já que muitas das questões jurídicas permaneciam inexplicáveis?
Kant, então, inverteu os papéis, supondo que o objeto é que deveria girar em torno do sujeito. Copérnico havia feito uma revolução análoga: como, mantendo a Terra firme no centro do universo e fazendo os planetas girarem em torno dela, muitos fenômenos permaneciam inexplicados, ele pensou em mover a Terra e faze-la girar em torno do Sol. Deixando de lado a metáfora, Kant considera que não é o sujeito que, conhecendo, descobre as leis do objeto, mas sim, ao contrário, que é o objeto, que é conhecido, que se adapta às leis do sujeito que o recebe cognoscitivamente.
Deixamos Kant falar por si, numa página que abriu uma nova época no filosofar e que teve conseqüências de alcance histórico e teórico incalculáveis: "Até agora, admitia-se que todo nosso conhecimento se devia regular pelos objetos, mas todas as tentativas de estabelecer em torno deles alguma coisa a priori, por meio de conceitos, com os quais se teria podido ampliar o nosso conhecimento, assumindo tal pressuposto, não conseguiram nada. Portanto, finalmente, faça-se a prova de ver se não seríamos mais afortunados nos problemas da metafísica formulando a hipótese de que os objetos devem se regular pelo nosso conhecimento, o que se coaduna melhor com a desejada possibilidade de um conhecimento a priori, que estabeleça alguma coisa em relação aos objetos antes que eles nos sejam dados. Aqui, é exatamente como na primeira idéia de Copérnico, que, vendo que não podia explicar os movimentos celestes admitindo que todo o exército de astros girasse em torno do espectador, tentou ver se não teria melhor êxito fazendo girar o observador e deixando os astros em repouso. Ora, na metafísica, pode-se pensar em fazer uma tentativa semelhante (...)" [1].
Com a sua "revolução", portanto, Kant supôs que não é a nossa intuição sensível que se regula pela natureza dos objetos, mas que são os objetos que se regulam pela natureza de nossa faculdade intuitiva. Comparativamente, Kant supõe que não é o intelecto que deve se regular pelos objetos para extrair os conceitos, mas, ao contrário, que são os objetos, enquanto são pensados, que se regulam pelos conceitos do intelecto e se coadunam com eles.
Em suma: "das coisas, nós só conhecemos a priori aquilo que nós mesmos nelas colocamos" [2].
Agora, então está claro qual é, para Kant, o fundamento dos juízos sintéticos a priori [3]: é o próprio sujeito que sente e pensa, ou melhor, é o sujeito com as leis da sua sensibilidade e do seu intelecto.
Por derradeiro, cumpre analisar qual o sentido mais próprio do termo "transcendental", que atravessa de um lado a outro a Crítica da razão pura e que tem importância basilar.
Kant usa esse termo com muita freqüência, definindo-o como: "Chamo `transcendental` todo conhecimento que não se relaciona com objetos, mas sim com o nosso modo de conhecer os objetos, enquanto for possível a priori" [4].
Os modos de conhecer os objetos a priori pelo sujeito são a sensibilidade e o intelecto; portanto, Kant chama de transcendentais os modos ou as estruturas da sensibilidade e do intelecto. Essas estruturas, portanto, enquanto tais, são a priori, precisamente porque são próprias ao Sujeito e não do objeto, mas são estruturas de tal natureza que representam as condições sem as quais não é possível nenhuma experiência de nenhum objeto.
O transcendental, portanto, é a condição de se conhecer os objetos.
Ora, para a metafísica clássica, transcendentais eram as condições do ser enquanto tal, ou seja, aquelas condições sem as quais o próprio objeto deixa de existir. Depois da revolução proposta por Kant podemos ver que existe somente o objeto-em-relação-ao-sujeito: transcendental é aquilo que o Sujeito põe nas coisas no ato mesmo de conhece-las.
Pois bem, mudando o foco para o processo de positivação das normas jurídicas, percebemos que igual revolução copernicana existe no Direito.
Conhecimento transcendental podemos denominar a forma como os fenômenos sociais são assimilados pelo sujeito, ou legislador, e este aplica a sua razão para poder normatiza-los com a melhor identidade possível ao perfil do Estado que se vive.
Interessante notar que, assim como Kant afirmou, não podemos ser ingênuos em acreditar que uma norma surge com interesses neutros e potencialmente bons, bem ao critério de Rosseau.
As normas existem a partir do estado de formação e dominação do Estado em positivar e organizar aquele agrupamento social.
Pela análise exterior do fenômeno, o uso da força existe não somente para tornar imperativo o Direito, mas também para dar razão e uniformidade aos seus parâmetros.
Assim, uma constituição democrática busca seu fundamento de validade não na norma em si, como se fosse um objeto isolado que irradiasse todo o seu conceito imanente, mas no próprio movimento histórico que cria e instala tal regime.
Com efeito, a hermenêutica jurídica ganha muito com a filosofia kantiana na medida em que não se distancia tanto do seu objeto de conhecimento, seja ele o fato social ou a norma. Isso porque reconhece que o sujeito que analisa o fenômeno jurídico escolhido também participa do processo de conhecimento não somente com a sua sensibilidade, mas também com a própria razão em interpretar e subjetivar o fenômeno que, diga-se ao final, passa a ser transcendental pelo efeito erga omnes.
Destarte, o nosso pássaro tuiuiú ao usar a sua sensibilidade sobre os efeitos dos raios do sol joga neles parte de si, a sua marca característica de proteção (abrindo as asas, por exemplo) e faz com que aquele objeto de "conhecimento", se é que podemos usar esse termo a uma ave, seja sempre conhecido a priori como perigoso aos seus filhotes, mesmo que não tenha sofrido nenhuma baixa na família.
Em suma, se reconhecermos que somos parte no processo de interpretação do mundo, incluindo ai o universo jurídico, poderemos assimilar melhor o seu conteúdo e forma, sem precisar nos escondermos no sistema, imputando-lhe toda culpa dos nossos fracassos.
Se reconhecermos que somos parte do processo de interpretação do Direito, conheceremos melhor a nós mesmos....
Está lançado o desafio.
O exemplo já temos....
Notas
01. Kant, Imannuel. Crítica da Razão Pura.. Apud Reale, Giovanni e Anteseri, Dario. História da Filosofia. Vol. II, 1990. São Paulo, Paulus Editora. P. 876/877.
02. Kant, Imannuel. Crítica da Razão Pura. Apud. Op. Cit. P. 877.
03. "juízos sintéticos a priori" são os originados da experiência do sujeito, portanto, sempre ampliam o conhecimento. Mas não se trata de experiência pura e simples, mas sim se refere a razão que encontra na natureza aquilo mesmo que nela coloca. Kant cita o exemplo do triângulo isósceles de Tales. Assim, Tales "descobriu" que para descrever aquela nova forma geométrica não precisava seguir passo a passo aquilo que via na figura e nem se apegar ao simples conceito dessa figura como que para apreender as suas propriedades, mas que, por meio daquilo que, pelos seus próprios conceitos, pensava e representava que devia produzi-la e que, para saber com segurança alguma coisa a priori, não deveria atribuir a essa coisa senão aquilo que brotava necessariamente daquilo que, segundo o seu conceito, ele próprio lhe havia posto. Em resumo, a Geometria nasceu quando Tales compreendeu que ela era uma criação da mente humana e que não dependia de nada mais além da mente humana.
04. Op. Cit. P. 877.