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Devedores contumazes do ICMS e a prática de crime fiscal

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Agenda 10/09/2015 às 13:21

Demonstra-se a contradição da tese de que a inadimplência do ICMS não seria crime de sonegação fiscal, a partir dos efeitos danosos e da falência de instrumentos legais administrativos.

Resumo: O presente artigo aborda os chamados devedores contumazes do ICMS do Estado do Rio Grande do Sul e as implicações jurídicas, econômicas e sociais de tal comportamento. Para tanto, fez-se uma análise técnica, jurisprudencial e doutrinária, com enfoque na criminalização da conduta dos inadimplentes reincidentes do ICMS mensal, que declaram os impostos e não repassam o valor cobrado dos clientes ao Erário Público. Usou-se da metodologia hermenêutica, contrapondo-se a intepretação jurisprudencial e doutrinária, nas esferas cível e penal. Conclui-se com uma proposta de revisão do entendimento majoritário atual quanto às implicações penais de tal conduta, buscando, nos elementos fáticos apresentados, no dano real à coletividade e ao mercado concorrencial, demonstrar a necessidade, efetividade, instrumentalidade e proporcionalidade do uso do direito penal diante da prática contumaz de sonegação.

Palavras-chave: contumaz; crime; devedor; ICMS; inadimplência.

Sumário: INTRODUÇAO; 1 ANÁLISE TÉCNICA DA CONTUMÁCIA; 2 ANÁLISE JURÍDICA DA CONTUMÁCIA; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

O presente estudo busca uma reflexão acerca dos efeitos danosos provocados pela inadimplência contumaz do imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços – ICMS, abordando a falência de instrumentos legais administrativos capazes de neutralizar esta prática crescente de sonegação. O entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante acerca da matéria, em seu aspecto criminal, será questionado por elementos técnicos e argumentos jurídicos, utilizando-se do método hermenêutico e integrando ramos diversos do direito.

Os princípios fundamentais da ordem econômica da livre concorrência e isonomia, positivados na Constituição Federal de 1988 e o princípio da capacidade contributiva, esculpido no art. 145, §1º da CF/88, precisam ser protegidos e garantidos pelo Estado. Ocorre que o direito não vem acompanhando o mundo dos fatos, situação que passa despercebida pelo público, em geral. Algumas empresas, ao longo de sua existência, têm adotado a prática de declararem seus impostos nas Guias informativas de apuração do ICMS mensais - GIAs, porém o saldo devedor do imposto apurado não é repassado ao Estado, por opção dos gestores das empresas.

No Estado do Rio Grande do Sul estes contribuintes são os chamados devedores contumazes, assim definidos pelo art.2º, da Lei Estadual n° 13.711, de 06 de abril de 20111 . Para estes contribuintes, de maneira geral, a prática de não repassar ao erário público o imposto cobrado de seus clientes não se dá por fatores externos ou de dificuldades financeiras, mas intencionalmente, uma vez que são práticas reiteradas e permanentes por longos períodos. Enquanto concorrentes declaram seus impostos e recolhem, pontualmente, os devedores contumazes simplesmente deixam de recolher seus impostos declarados por vários anos, sem que o Estado tenha efetividade nas cobranças administrativas e judiciais.

O Fisco, embora possua instrumentos legais que permitiriam, em tese, a coibição de práticas danosas ao erário público, todas, sem exceção, vêm sendo contestadas no Poder Judiciário, por inconstitucionais. Muitas destas empresas devedoras contumazes investem intensamente em suas marcas, patrocinam eventos culturais, seus sócios aparecem como grandes colaboradores de instituições filantrópicas, promovendo seu nome e sua rede de empresas. Por trás de grande parte destas ações de marketing está o dinheiro do cidadão, cliente destes contribuintes que, sem saber, financia a atividade do empresário, propiciando que enriqueça ilicitamente, já que paga pelo imposto destacado nas notas fiscais das mercadorias que adquire do devedor contumaz e este se apropria do imposto, financiando sua própria empresa, de forma desleal com a concorrência, aumentando arbitrariamente seus lucros.

Possivelmente esta conduta se deve ao fato de que o contribuinte tem como certa a falta de punição criminal pela prática de declarar seus impostos mensais e não recolher. No Rio Grande do Sul estes empresários apoiam-se em uma jurisprudência do Poder Judiciário Gaúcho no sentido de que a simples inadimplência do ICMS não configuraria crime, uma vez que o tipo penal definido no art.2, II, da Lei 8.137/902 não se aplicaria ao “mero inadimplente”.

A 4ª Câmara Criminal do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul, em 2002, no Habeas Corpus nº 70004886602, declarou que a omissão do recolhimento relativo à Substituição Tributária é crime tipificado pelo art.2º, II, da Lei 8.137/90. Porém, não o fez da mesma maneira com o ICMS “destacado por dentro” das notas fiscais, entendendo, naquele momento, que declarar o imposto cobrado na nota fiscal do cliente e não repassar ao erário público seria uma simples inadimplência do imposto, devido pelo declarante, sem vinculo com seu cliente, destinatário da mercadoria, restringindo o tipo penal apenas à substituição tributária:

“EMENTA: PENAL. PROCESSO PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS. O simples não recolhimento do ICMS no prazo legal, regularmente declarado na Guia Informativa, não configura o crime de apropriação indébita de tributo previsto no art. 2.º, II, da Lei n.º 8.137/90, equiparado ao delito de sonegação fiscal. O que lei ali criminaliza é a omissão do substituto tributário, presente nas hipóteses do IPI e da CPMF, por exemplo, mas inocorrente nesta modalidade de tributo estadual em que o único obrigado é o comerciante. Habeas Corpus concedido para trancar a ação penal.

(Habeas Corpus Nº 70004886602, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vladimir Giacomuzzi, Julgado em 26/09/2002).”

Diante desta decisão judicial, cresceram, exponencialmente, os chamados devedores contumazes no Estado do Rio Grande do Sul. Alguns contribuintes, sob a alegação de alta carga tributária, decidiram que não precisariam mais repassar o imposto cobrado de seus clientes ao erário, afinal, não havia criminalização de tal conduta. As execuções fiscais, em geral, não alcançam seu patrimônio, muito bem blindado por “planejamentos tributários” de todas as ordens, com as cobranças administrativas e judiciais simplesmente ignoradas pelos devedores.

Em razão dos graves danos causados por estes poucos contribuintes, a Administração Tributária do Estado do Rio Grande do Sul formou grupos de trabalho para buscar mecanismos de reverter esta prática ou, ao menos, torná-la o menos danosa possível. Um dos primeiros resultados efetivos destes trabalhos foi a elaboração de notícias crime relativas aos valores declarados em GIA e não recolhidos, na modalidade de substituição tributária.

O Ministério Público denunciou 12 (doze) empresários com base em representações fiscais para fins penais elaboradas pela Receita Estadual, notícia vinculada no seu site 3 . Todos os denunciados, logo após serem citados no processo criminal, passaram a recolher o imposto relativo à substituição tributária, alguns passaram a recolher tudo que declaravam, tanto o ICMS “próprio” como o ICMS relativo à substituição tributária, conforme acompanhamento efetuado pela Receita. Somente um contribuinte, do ramo farmacêutico, recolheu, nos últimos dois anos, 16 milhões de reais. Nos dois anos anteriores à denúncia, a empresa tinha recolhido 15 mil reais (100.000 % menos). Os valores não recolhidos nestes dois anos anteriores à denúncia criminal estavam todos em execução judicial, a maioria sem sucesso na recuperação dos valores. Em contrapartida, a empresa vinha aumentando seus empreendimentos e lucros, em detrimento da concorrência, do erário público e dos consumidores, verdadeiros lesados pelo enriquecimento ilícito dos empresários.

Dentre os contribuintes devedores contumazes verificou-se que uma minoria vinha buscando a utilização de créditos de terceiros, não previstos em Lei Estadual – os chamados precatórios -, para compensar seus tributos. Estes, por mais que alegassem que os créditos tinham origem idônea, em geral não obtinham êxito ao final dos processos nos Tribunais e as ações acabavam servindo para frustrar execuções fiscais ou as postergarem por anos, impedindo que fossem realizadas outras constrições judiciais em favor da Fazenda Pública antes de finalizada a discussão dentro dos processos de compensação impetrados. As tentativas de compensação de débitos declarados com precatórios, adquiridos com cerca de 20% de seu valor de face, acabavam por aumentar os lucros da empresa, sem previsão legal e de maneira arbitrária, nos termos delineados no inciso III, do art.36, da Lei 12.529/114 .

Neste artigo, buscaremos dar mais publicidade as situações concretas provocadas pelos devedores contumazes, assim como pretendemos demonstrar que se exauriram as alternativas administrativas advindas da Administração Tributária para coibir esta prática. Procuraremos demonstrar o grau de ofensividade à coletividade da conduta destes poucos contribuintes e apresentaremos números da crescente prática deste tipo de sonegação que evidenciarão a proporcionalidade, instrumentalidade e necessidade de atenção, por parte do direito penal, dos casos aqui delineados.

O trabalho será dividido em tópicos, sendo que no primeiro faremos uma análise técnica do comportamento dos devedores contumazes e como se dá a operacionalização das declarações mensais relativas ao ICMS (GIAs), as quais os contribuintes são obrigados a informar à Administração Tributária. Também abordaremos as consequências danosas ao mercado concorrencial, resultado da posição majoritária do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no sentido de despenalização da “inadimplência” do ICMS. No segundo tópico procuraremos fazer uma análise jurisprudencial e doutrinária, contrapondo visões da área civil e penal acerca da repercussão financeira do ICMS. Por fim, almejamos que os leitores e operadores do direito reflitam sobre os prejuízos reais e potenciais provocados pelos inadimplentes contumazes e a necessidade de aplicação da norma penal, a partir da avaliação de cada caso concreto.


1 ANÁLISE TÉCNICA DA CONTUMÁCIA

Adentrando nos aspectos técnicos do ICMS, faremos uma análise minuciosa do funcionamento das declarações mensais (GIAs), as quais os contribuintes são obrigados a apresentar à Receita, todos os meses. O devedor contumaz deixa de recolher o imposto declarado na GIA – Guia de Informação e Apuração do ICMS – por, no mínimo, 8 meses em um período de 1 ano. O imposto declarado leva em conta os valores destacados nas notas fiscais de vendas (débitos) cobrados de seus clientes, menos os créditos relativos ao ICMS destacado nas notas fiscais de entradas de mercadorias (quando houver). Na aquisição de mercadorias/insumos, o imposto, por ser pago pelo adquirente, permite que este lance em sua escrita fiscal e diminua de seus débitos por saídas, resultando no saldo devedor declarado ao Estado. Este é o imposto declarado em GIA (débitos por saídas – créditos por entradas) devido e não recolhido no prazo legal.

Este valor sempre será inferior ou igual ao destacado e cobrado nas notas fiscais de seus destinatários/clientes. Há a cobrança e entrada de fluxo financeiro no caixa no momento da venda da mercadoria em valor igual ou superior ao que terá que ser repassado ao Estado à titulo de ICMS, ou seja, não há como explicar tal inadimplência, ainda mais quando for praticada de forma contumaz. Em termos gráficos, temos o seguinte:

A sistemática do ICMS, demonstrada no quadro anterior, poderia ser diferente. Por exemplo, se a mercadoria fosse tributada por substituição tributária – ST - na indústria, a nota fiscal de saída do industrial para o distribuidor teria o destaque do imposto próprio (R$ 17,00) mais um destaque, em separado, da substituição tributária, no valor próximo à R$ 8,50 (R$ 3,40 do distribuidor mais R$ 5,10 do varejista), ou seja, a tributação total seria R$ 25,50. Ainda, supondo que a indústria adquirisse a mesma mercadoria (para revenda) tributada por substituição tributária de outro industrial, nada impediria que lançasse o crédito de substituição e o abatesse do valor do débito de substituição tributária da operação de saída, resultando em um valor a recolher (GIA-ST) menor que o destacado nas notas fiscais de saídas referentes àquele período de apuração.

Sendo a operação com substituição na indústria, o distribuidor não se creditaria de nenhum imposto e nem se debitaria na saída da mercadoria (nota fiscal sem destaque). Da mesma forma o varejista, já que o imposto estaria recolhido por toda a cadeia quando a mercadoria deu saída no industrial. Em termos gráficos teríamos o seguinte:

Na prática, a diferença entre o ICMS relativo à substituição tributária (ST) e o ICMS “normal” está no fato de que a substituição é o recolhimento por toda a cadeia de circulação da mercadoria. Este ICMS ST já leva em consideração a carga efetiva das operações posteriores, ou seja, não difere em nada da soma das GIAs mensais informadas por todos os contribuintes participantes da cadeia de circulação da mercadoria (GIA do distribuidor mais GIA do varejista). Não há como ter tratamento diferenciado, em termos penais, entre o ICMS declarado no início da cadeia de circulação pelo industrial, R$ 17,00 (saldo devedor apurado em GIA com prazo para recolher - débito “próprio”), e o valor da ST, R$ 8,50, equivalente as duas GIAs posteriores, se, conforme demonstrado, são débitos de mesma natureza, cobrados do destinatário final. Em qualquer hipótese os contribuintes da cadeia de circulação atuam como meros repassadores do imposto, cobrando de seus destinatários, cujo ônus final fica com o consumidor.

Exemplo clássico é a substituição tributária das bebidas, que se dá na indústria e é definida por estudos técnicos da Receita e representantes de contribuintes. Quando definido qual será o valor para fins de base de cálculo da ST, há o próprio imposto incluído neste cálculo, ou seja, o ICMS sempre será base de cálculo do próprio ICMS, seja na modalidade de substituição tributária ou não.

Como veremos mais adiante, alguns tributarias defendem que o ICMS “próprio – normal” é um preço pago pela mercadoria, ou seja, este imposto nem sequer seria cobrado do destinatário. Estas teses não se sustentam, basta ver que se aumentássemos a alíquota do imposto, o “preço” da mercadoria não se manteria. É obvio que há um aumento devido ao ônus tributário no valor da nota fiscal, ou seja, o imposto jamais pode ser considerado um preço da mercadoria, pior ainda seria afirmar que não é cobrado do destinatário.

Abaixo uma representação gráfica de uma nota fiscal. Constata-se que o imposto é destacado em campos distintos, sendo o ICMS “normal” calculado “por dentro”, ou seja, base de cálculo do próprio imposto, e o ICMS ST por fora desta operação, o que não significa que sua base de cálculo exclua o próprio imposto. Ambos são destacados na nota fiscal e cobrados do destinatário.

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Se a operação descrita na nota fiscal acima fosse isenta, o valor da nota fiscal seria de R$ 1.903,44, que nada mais é que o valor líquido das mercadorias, ou seja, seu PREÇO, sem imposto. Por ser uma operação tributada pelo ICMS, com alíquota de 12%, multiplica-se o valor da mercadoria por 1/(1-0,12), obtendo-se a base de cálculo do ICMS (por dentro), ou seja, R$ 1.903,44/0,88 = R$ 2.163,00. A substituição tributária tem uma base de cálculo presumida, dependendo do tipo de mercadoria/operação. No caso da nota fiscal acima, seu cálculo se dá pela aplicação da alíquota de 12% sobre a base de cálculo da ST e do resultado subtrai-se o valor do ICMS “próprio”. O cálculo do valor da ST é uma espécie de GIA (débito – crédito), só que dentro da nota fiscal. Assim, no caso concreto, chega-se ao valor de R$ 96,04.

Quando falamos de outros impostos, como o imposto de renda pessoa física (IRPF), podemos afirmar que quem deve é, de fato, o declarante, ou seja, é um tributo direto, sem repasse de ônus a terceiros, diferentemente do ICMS, que seu ônus é arcado pelo cliente/destinatário. Para ilustrar o que estamos dizendo, analisemos um caso clássico: - Notas Fiscais Faturas de Energia Elétrica (reproduzida na sequência). A legislação do setor obrigada que o ICMS cobrado por dentro seja discriminado, em separado, na nota fiscal:

A concessionária é mera repassadora do imposto que cobra dos clientes. Se não repassar o valor ao Estado, não estaria cometendo apropriação indébita? E se fizesse isso todo o mês, ou seja, cobrasse o imposto dos consumidores de energia (seus clientes) e não repassasse ao Estado de forma contumaz, qual seria o sentido de tal cobrança? Nesta situação hipotética, seria melhor isentar do ICMS tal operação, assim o Estado não receberia nada (já não receberia mesmo devido a “inadimplência”) e não precisaria alocar servidores para cobrar os débitos e, ainda, o consumidor, de quebra, teria uma fatura bem menor a pagar: - cerca de 33% a menos: R$ 59,15 + R$ 3,00 = R$ 62,15).

O quadro 1, na sequência, compara a inadimplência no Estado com as praticadas pelos chamados devedores contumazes, em termos percentuais de valores e representatividade. Trata-se de relatório elaborado pela Administração Tributária e encaminhado ao Supremo Tribunal Federal pela Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul5 .

Quadro 1 – Inadimplência Geral do Estado X Inadimplência Devedores Contumazes

É possível verificar, pelo quadro 1, que menos de 2% dos contribuintes conseguem provocar uma inadimplência no Estado que representa 40% de todo o ICMS declarado e não repassado ao erário. Estes são os chamados devedores contumazes. No Quadro 2 temos o montante de valores devidos, por período, de todas as empresas devedoras contumazes, em fevereiro de 2014.

Destaca-se que, 62% das empresas devedoras contumazes possuem dívida com o Estado na faixa de 01 a 05 anos, período superior ao definido na Lei 13.711/11, ou seja, para ser considerado devedor contumaz precisaria deixar de recolher, no período de 1 ano (12 GIAs), oito vezes (8 GIAs). Percebe-se, ainda, que existem 20 empresas devedoras contumazes há mais de 10 anos (mais de 120 meses, ou seja, GIAs mensais declaradas com saldo devedor não repassados ao erário):

Quadro 2 – Quantidade de Empresas Devedoras Contumazes, por Período da Contumácia.

Analisando os números apresentados podemos ter uma dimensão do dano provocado por apenas 664 contribuintes, uma média de 1,5 por município existente no território gaúcho. Estes contribuintes consomem horas de trabalho da Administração Tributária, da Procuradoria do Estado, do Poder Judiciário e, ainda, estimulam os demais a cometerem o mesmo delito, afinal, precisam sobreviver diante da concorrencial desleal. Demonstrados os aspectos técnicos e quantitativos da prática contumaz de declarar os impostos e não repassar ao erário, passaremos a analisar as questões jurídicas e suas consequências dentro do direito civil, penal e financeiro.


2 ANÁLISE JURÍDICA DA CONTUMÁCIA

As demandas judiciais de credores, em geral, andam mais rápidas do que as execuções tributárias, segundo dados levantados pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ (páginas 35 a 37)6 . Porém, operadores jurídicos afirmam que o legislador teria concedido favores, vantagens e privilégios para a Administração Tributária em detrimento dos particulares, através da lei de execuções fiscais, estabelecendo, por exemplo, a desnecessidade de Procuradores Fazendários cumprirem alguns prazos ou serem notificados pelos juízes pessoalmente. Esses excessos, na prática, levaram à inoperância da execução fiscal e serviram como base de inúmeros julgados contrários à Fazenda Pública, que repetem um mesmo jargão: - “O Estado já dispõe de meios privilegiados para cobrar seus créditos tributários através da lei de execuções fiscais”. Também é comum a citação das “velhas conhecidas” súmulas nº 70, 323 e 547, do STF7 , como se toda e qualquer ação da Administração Tributária pudesse ser enquadrada nestas súmulas e, por consequência, barrada no Poder Judiciário, por inconstitucional.

Especificamente quanto à lei de execuções fiscais, paira uma grande dúvida ao Fisco de quais seriam as vantagens tão propagadas na jurisprudência. Fazendo uma análise minuciosa da lei, encontramos a necessidade de intimação pessoal do Procurador (art.25, da lei 6.830/80), a dívida não estar sujeita a concurso de credores (art.29), ou, ainda, o não pagamento de custas por parte da Fazenda (art.39). Estas poucas e únicas “vantagens” previstas na lei de execução fiscal, de 1980, em nada favorecem uma recuperação mais célere dos créditos tributários por parte do Estado. São falácias que, de tanto serem repetidas, tornaram-se verdades no meio jurídico.

O código de processo civil de 2002, por exemplo, é muito mais favorável ao credor particular que a Lei de Execuções Fiscais é para a Fazenda Pública. Um exemplo desta maior eficiência do CPC é o previsto no art.615-A, que permite ao exequente, logo depois de distribuída a execução, registrar a existência da ação em matrículas de bens em nome do devedor, dando celeridade ao processo e impedindo fraudes futuras às execuções:

“Art. 615-A. O exequente poderá, no ato da distribuição, obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução, com identificação das partes e valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, registro de veículos ou registro de outros bens sujeitos à penhora ou arresto.”

Na linha do que externamos acima, reproduzimos parte do voto do Desembargador Irineu Mariani, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, proferido no Incidente de Inconstitucionalidade nº 70048229124. Ainda que o voto tenha sido contrário ao regime especial de fiscalização – REF, instituído pelo Estado do Rio Grande do Sul, posição da qual discordamos, reproduzimos a parte que interessa ao presente estudo:

“[...] A meu ver, a tese de que para cobrar o imposto o Estado dispõe dos meios próprios já está superada, atropelada e patrolada pela realidade dos fatos. É preciso aumentar os controles administrativos sobre os devedores contumazes, antes que a dívida fique impagável. Quando, então, vêm os planos de longos parcelamentos com dispensa de multa e juros, com massivo descumprimento, vêm as dissoluções irregulares de sociedades, ou “golpe na praça”, como escreve Fábio Ulhoa Coelho, e o crédito, a final, vai para as calendas gregas. Enquanto isso, o Estado não tem condições de cumprir minimamente as suas funções básicas na educação, na segurança, na saúde, preocupantemente judicializada, e também não paga os precatórios. E todos o criticam por isso, inclusive os devedores contumazes. E o Judiciário, num academicismo de há muito superado, com preocupações com os devedores contumazes, aqueles que embolsam o dinheiro do ICMS que cobram de todos nós, e ali fora, para não usar aquela expressão do Ministro do STF, “a grita sobe ao céu da gente”, como escreveu Camões. [...].”

O Desembargador Mariani bem expôs a fragilidade da execução fiscal, nas suas palavras “atropelada e patrolada pela realidade dos fatos”. Pior que não dispor de meios para cobrar seus débitos, é ver barradas pelo Judiciário quaisquer tentativas de melhorias na recuperação destes passivos, como redirecionamentos de execuções que exigem formalidades e provas de difícil produção, falta de penalização da conduta, decisões contrárias a solidariedade passiva, arrolamentos de bens ou contrárias a dispositivos criados para estancar as fraudes, como Regimes Especiais de Fiscalização - REFs.

Ao apreciarmos decisões proferidas no TJRS e por Ministros de Tribunais Superiores, na área civil, verificamos uma incoerência, quando comparamos o entendimento sobre os efeitos do ICMS na área civil e na área criminal, pelo menos no que diz respeito ao repasse do ônus do imposto ao destinatário. Defendemos aqui uma reavaliação da atual jurisprudência criminal pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul nas situações em que ocorre a prática contumaz de sonegação, uma vez que é flagrante a intenção do empresário em não recolher o imposto devido. Tal inadimplência não se dá de forma ocasional ou por fatores alheios à gestão empresarial.

Na esfera cível há decisão, em recurso repetitivo, que reconhece a impossibilidade de repetição (restituição do ICMS) dos valores cobrados pelo contribuinte de direito (vendedor das mercadorias) quando ele repassa o ônus do imposto ao contribuinte de fato (consumidor/cliente), se não tiver autorização deste último para pedir repetição dos valores. O próprio STF já reconheceu que somente com a prova da assunção do ônus tributário, o contribuinte de jure pode ajuizar a ação de repetição de indébito, neste sentido temos a Súmula nº 346 do STF: “Cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte ‘de jure’ não recuperou do contribuinte ‘de facto’ o ‘quantum’ respectivo”.

Especificamente no caso de consumidores de energia elétrica, o Superior Tribunal de Justiça – STJ - não só reconheceu o repasse do ônus financeiro do ICMS, em decisão proferida em recurso repetitivo, como autorizou o ajuizamento de ações pelos consumidores finais para discutir a tributação de suas faturas e pedir restituição de valores pagos a maior, recurso especial nº 1.299.303. Este entendimento não se aplica as operações com outras mercadorias, já que para estas outras a regra segue no sentido de que apenas o contribuinte “de direito” e não o “de fato” pode discutir a tributação e a repetição de valores pagos à maior, desde que autorizados pelo cliente/destinatário/contribuinte “de fato”, conforme recurso especial nº 903.394, decisão também proferida sob o rito dos recursos repetitivos.

As duas decisões, apesar de contraditórias quanto ao sujeito ativo para propor a ação discutindo a tributação de mercadorias, assumem que o ônus financeiro é do destinatário: - A decisão proferida no Resp. nº 903.394 permite a discussão/restituição pelo contribuinte “de direito” desde que exista autorização do contribuinte “de fato” ou comprovação do não repasse do ônus financeiro; Já o Resp. nº 1.299.303 permite o ajuizamento da ação e pedido de restituição de imposto pago a maior diretamente pelo consumidor final de energia elétrica (contribuinte “de fato”). Abaixo reproduzimos uma, dentre tantas outras decisões proferidas na esfera civil, sobre o assunto:

“ÁREA CIVIL - TRIBUTÁRIO - ICMS - REPETIÇÃO DE INDÉBITO - MAJORAÇÃO DA ALÍQUOTA DE 17% PARA 18% - INCIDÊNCIA DO ART. 166 DO CTN. 1. A Primeira Seção decidiu em inúmeros julgados pela necessidade de comprovação, por parte do contribuinte de direito, de que não repassou ao contribuinte de fato o encargo financeiro do tributo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, de que está por ele autorizado a pleitear a repetição do indébito. Recurso especial improvido (STJ - REsp: 880195).”

Este fato, relativo à jurisprudência firmada em recurso repetitivo, ou seja, entendimento amplamente majoritário na esfera civil, confronta diretamente com o entendimento Judicial de Juízos Criminais e alguns doutrinadores. Para estes últimos, o imposto destacado nas notas fiscais, à titulo de ICMS, não teria seu ônus repassado aos consumidores/destinatários. O entendimento delineado no Habeas Corpus nº 70004886602, de 2002, julgado pela 4ª Câmara do TJRS, seguiu a premissa de que este imposto destacado e cobrado, devido à necessidade de compensação pelos créditos relativos às operações anteriores (entradas de mercadorias), não necessariamente deveria ser recolhido ao Estado, pois era preciso apurar o quanto realmente era devido ao final do período de apuração, sendo um imposto embutido no preço, sem repasse do ônus ao destinatário. Neste sentido, parte da decisão proferida no julgado proferido em 2002 (grifos meus):

“VOTO Des. Vladimir Giacomuzzi (Relator) – (...)

Depois de tecer substanciosas considerações a respeito da matéria, assim responde o Professor Carrazza a sua própria indagação:

“(...) Nem se diga – como querem alguns – que, tendo sido o ICMS destacado na nota fiscal, o comerciante tem o dever de repassar aos cofres públicos a quantia que recebeu do consumidor final (que não é o contribuinte de iure do imposto). É que este destaque em nota fiscal do ICMS, não se reveste da menor liquidez, com relação à obrigação tributária. Apenas expressa o montante correspondente ao imposto naquela quantia cobrada, calculado “por dentro”, do qual o emitente da nota ainda deve compensar os créditos que tenha contra o Fisco, para, só depois, quando for o caso, recolher o tributo. O nãorecolhimento do ICMS não caracteriza, repetimos, nenhuma conduta delituosa: muito menos a definida no art. 2º, II, da Lei 8137/90.

Lembramos que o recolhimento do ICMS dá-se após o preenchimento, pelo próprio comerciante, da “GIA” (“guia de informação e apuração do ICMS”). É ele que declara o valor a ser recolhido. A “GIA” deve ser entregue em prazo certo: normalmente antes da data designada para o recolhimento do tributo (cf. Anexo VI, Tabela I, do Dec. Estadual 33.118/91). Tal recolhimento dá-se ao final de cada mês, quando o contribuinte (comerciante, industrial ou produtor) apura o imposto, levando em conta o crédito e o débito escriturados em seus livros fiscais. O valor a ser recolhido não é o que foi repassado ao preço final da mercadoria, mas, sim, o apurado, pelo contribuinte, ao final do mês, após as necessárias operações de crédito e débito.

Insistimos que o montante de ICMS que integra o preço final da mercadoria, não corresponde ao valor que o contribuinte deverá recolher ao Erário. Este valor terá que ser apurado, descontando-se o que já pagou, quando da entrada da mesma mercadoria em seu estabelecimento. Esta é uma exigência impostergável do princípio da não-cumulatividade.

Não queremos, em absoluto, sustentar que o contribuinte do ICMS não pode cometer crimes contra a ordem tributária. Sem dúvida que os cometerá, pelo menos em tese, se ocultar da autoridade fiscal, fato relevante para o surgimento da obrigação de pagar tal tributo. Isto ocorrerá quando omitir declaração que tinha o dever legal de fazer à autoridade fiscal (v.g., produzindo o derramamento de ‘notas frias”), adulterando a escrita contábil, constituindo “empresas fantasmas” etc. Nenhum crime cometerá, porém, quando apenas deixar de recolher o ICMS, após ter feito corretamente todas as anotações de estilo.

Em suma, falta tipicidade na conduta do contribuinte que declara e não paga seu débito de ICMS.”

Aí está o fundamento da moção aprovada no Simpósito de Direito Tributário anteriormente referido. Neste Tribunal de Justiça, na Seção Cível, a característica do tributo também tem sido objeto de percuciente análise por parte do Senhor Desembargador Roque Joaquim Volkweiss: “...não se diga, como se costuma ouvir, que a empresa ao vender suas mercadorias, estaria cobrando do adquirente respectivo o ICMS devido em cada operação.... É (esse) raciocínio de quem desconhece a legislação pertinente ao referido imposto, que manda pagar o tributo sobre o valor da operação, vale dizer, calculado sobre o preço cobrado, diversamente, por exemplo, do imposto sobre produtos industrializados (IPI), de competência federal, em que o tributo é cobrado em separado, além do preço, não o integrando, portanto.

...Esclareça-se ... o que a empresa cobra do adquirente das suas mercadorias é preço. Tão-somente preço e não ICMS calculado sobre aquele...”.

Ousamos dizer que o entendimento do ilustre Tributarista, citado pelo Desembargador Vladimir Giacomuzzi, acaba tornando-se contraditório em si mesmo. Vejamos, o ICMS é imposto indireto, conforme jurisprudência consolidada em recurso repetitivo (Resp. 903.394). Quando o tributarista conclui que, do imposto destacado com o preço final deve ser reduzido o que o contribuinte PAGOU nas entradas (operação anterior) está, de maneira inequívoca, dizendo que quem paga o imposto é o destinatário da operação comercial:

“(...) Insistimos que o montante de ICMS que integra o preço final da mercadoria, não corresponde ao valor que o contribuinte deverá recolher ao Erário. Este valor terá que ser apurado, descontando-se o que já pagou, quando da entrada da mesma mercadoria em seu estabelecimento. (...).”

Tal raciocínio desenvolvido pelo tributarista não condiz com a prática do ICMS, afinal o imposto declarado em GIA já leva em consideração os créditos pelas entradas de mercadorias, ou seja, é liquido, certo e exigível no prazo legal. Ainda, mesmo se levarmos em conta apenas o imposto destacado na nota, Carrazza externou, mais recentemente, posição em sentido contrário à inclusão do ICMS (destacado na nota fiscal de venda) na base de cálculo do PIS e da COFINS. O renomado tributarista afirmou que o ICMS não pode fazer parte do faturamento da empresa, pois não pertence ao contribuinte, que é somente o repassador do imposto ao Estado:

“O punctum saliens é que a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS leva ao inaceitável entendimento de que os sujeitos passivos destes tributos ‘faturam ICMS’. A toda evidência, eles não fazem isso. Enquanto o ICMS circula por suas contabilidades, eles apenas obtêm ingressos de caixa, que não lhes pertence, isto é, não se incorporam a seus patrimônios, até porque destinados aos cofres públicos estaduais ou do Distrito Federal.(...) Portanto, a integração do valor do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS traz como inaceitável conseqüência que contribuintes passe a calcular as exações sobre receitas que não lhes pertence, mas ao Estado-membro (ou ao Distrito Federal) onde se deu a operação mercantil (art. 155, II, da CF). A parcela correspondente ao ICMS pago não tem, pois, natureza de faturamento (e nem mesmo de receita), mas de simples ingresso de caixa (na acepção ‘supra’), não podendo, em razão disso, comporta a base de cálculo que do PIS, quer da COFINS.”8

Atualmente, a discussão quanto a inclusão ou não na base de cálculo da PIS/COFINS está praticamente vencida em prol dos contribuintes. Neste sentido foi o julgamento do recurso extraordinário nº 240.785, no qual os Ministros do STF entenderam, por maioria de sete votos contra dois contrários, que o ICMS não deve ser incluído na base de cálculo da COFINS.

Quanto ao entendimento do Desembargador Roque Joaquim Volkweiss, também citado no voto do Desembargador Vladimir Giacomuzzi, no julgado de 2002, não nos parece ser o mesmo demonstrado em outra ação, apelação nº 70002226769, em parte reproduzida abaixo (grifos meus):

“Ora, se a MERCUR, ao vender embalagens às apelantes, tributou as operações respectivas, destacando o imposto nas notas fiscais de vendas, óbvia e indiscutivelmente embutiu ela, no preço cobrado das apelantes, o respectivo montante, cobrando-o dos seus adquirentes, daí se concluindo que o custo delas foi, para estes, evidentemente maior, na mesma proporção. Esse custo maior (valor do imposto destacado na nota fiscal), é, sem sombra de dúvida, creditável pelo adquirente, que necessariamente o levou em conta, como custo seu, na etapa ou operação (saída) seguinte, integrando-se na cadeia produtiva e de circulação do bem, de tal forma que o consumidor final é quem o terminou suportando em caráter definitivo. Esse critério, uma vez aplicado na circulação da mercadoria, se torna irreversível, porque, sendo o ICMS imposto indireto, seu ônus ou encargo financeiro é, por sua natureza, sempre transferido pelo fornecedor ao adquirente em cada etapa da cadeia circulatória do bem. Assim, tendo a MERCUR cobrado das apelantes o imposto, mediante destaque na nota fiscal de venda, e tendo elas, por sua vez, se creditado do valor respectivo e tendo-o levado em conta para o cálculo do custo das suas próprias mercadorias, a situação se tornou definitiva e irreversível, só podendo aquela repeti-lo, nos termos do art. 166 do CTN, se provar que não o repassou a terceiros, o que, como visto, não lhe será possível fazer, jamais. Assim, insofismavelmente indevido e incabível foi o levantamento do depósito judicial, pela empresa MERCUR, se feito, como dito nos autos, eis que indiscutivelmente pertencente ao Estado, como melhor se verá. (...)

E assim o afirmo porque, quando da ação judicial que ajuizou ela contra o Estado, deveria ter, sob pena de assumir as consequências, ressalvado aos adquirentes dos seus produtos que o numerário sob discussão vinha sendo judicialmente depositado, sem incluir, obviamente, mediante destaque nas notas de venda, o valor respectivo no preço dos seus produtos. Do contrário, estará ela tirando proveito econômico/financeiro da situação, se locupletando sem causa justificada, pelo indevido levantamento judicial do mesmo numerário que cobrou das suas adquirentes. E, o pior de tudo isso, é que esse imposto acabou sendo suportado pelos consumidores finais das embalagens, o conhecido ¨contribuinte de fato¨, que, como sempre, não tem condições de se inteirar da matéria.”9

Outro grande tributarista, Hugo de Brito Machado, em artigo publicado na Revista dos Tribunais, em maio de 1998, sob o título "Algumas questões relativas aos crimes contra a ordem tributária", também externou posicionamento, na época, de que o ICMS não era cobrado do destinatário/cliente, sendo parte integrante do preço da mercadoria. Neste artigo, fez referência, para defender sua tese, à jurisprudência que era majoritária nos tribunais à época, de que o ICMS era base de cálculo de contribuições federais:

“(...) No que diz respeito ao ICMS, pode-se acrescentar ainda um argumento: tal imposto não é cobrado do adquirente da mercadoria, posto que ele integra o preço desta. Tanto assim é que a jurisprudência já entendeu ser o valor do ICMS parte integrante da base de cálculo de contribuições que incidem sobre o faturamento ou receita bruta das empresas.” In RT 751/453 – 466.

Em artigo mais recente, Hugo de Brito Machado parece ter retificado sua posição anterior, em dois aspectos: O ICMS não faz parte do valor da mercadoria ou serviço e, não deve ser incluído na base de cálculo do PIS e COFINS, atuando o contribuinte de direito como mero repassador do tributo:

“Conforme o previsto no preceito constitucional em comento, a base de cálculo é única e diz respeito ao que faturado, ao valor da mercadoria ou do serviço, não englobando, por isso mesmo, parcela diversa. Olvidar os parâmetros próprios ao instituto, que é o faturamento, implica manipulação geradora de insegurança e, mais do que isso, a duplicidade de ônus fiscal a um só título, a cobrança da contribuição sem ingresso efetivo de qualquer valor, a cobrança considerada, isso sim, um desembolso.” Hugo de Brito Machado em artigo publicado sob o título: Cofins — Ampliação da base de cálculo e compensação do aumento de alíquota, em CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS — PROBLEMAS JURÍDICOS.

Como demonstrado, parece não subsistir mais o “alicerce jurídico” que dava sustentabilidade a atipicidade da inadimplência do ICMS dentro do direito penal, basta ver a evolução da jurisprudência e doutrina na área civil.

Ainda, no que diz respeito ao faturamento, o próprio legislador procurou excluir expressamente a substituição tributária da base de cálculo da COFINS (e do PIS/PASEP), nos termos do art. 3º, § 2º, I, da Lei 9.718/98. Mas ambos, ICMS “próprio” e de Substituição são cobrados dos destinatários da operação comercial. Ambos são calculados “por dentro”, sendo o primeiro na primeira operação e a substituição calculada “por dentro” das operações posteriores (base de cálculo presumida). O que queremos dizer com isso é que concordamos com tributaristas e juristas quando dizem que ambos não podem fazer parte do faturamento da empresa para fins de base de cálculo da PIS/COFINS. Porém, torna-se inadmissível e pouco defensável que a inadimplência do ICMS “normal” não seja apropriação indébita. O contribuinte cobra de seus clientes, na nota fiscal, os valores do imposto (seja o “normal” ou substituição) e acaba tendo um ingresso momentâneo de receita (que não é faturamento) e que deverá repassar ao Estado, como responsável pela retenção. Mesmo que tenha créditos por entradas e que venha a abater parte do débito, o saldo devedor, tanto relativo ao ICMS “normal” como relativo à substituição, deverá obrigatoriamente ser repassado ao erário público, pois é valor líquido, certo e exigível, no prazo legal.

Há uma diferença gritante entre o preço das mercadorias (custo mais margem de lucro) e seu valor de comercialização com o imposto. É lógico que o imposto aumenta o valor a ser cobrado e quem arca com seu ônus é o destinatário. Defender ao mesmo tempo que o ICMS é um preço, para fins penais, porém não é faturamento, para fins de PIS/COFINS, é como transformar o ICMS em uma partícula-onda e o direito em física quântica.

Não nos resta dúvida que a interpretação, até então majoritária sobre o crime previsto no art.2, II, da Lei 8.137/90 e sua relação com o ICMS “próprio” (imposto declarado em GIA como devido – saldo devedor) não mais se sustenta, diante das decisões e posicionamentos recentes, tanto de doutrinadores, como dos Tribunais Superiores. Iria além, diria que o contribuinte que cobra e não repassa o ICMS ao Estado, de forma contumaz, até poderia ter este valor onerado pela PIS e COFINS, já que, especificamente neste último caso, de fato estaria faturando ICMS, ou melhor, aumentando arbitrariamente seu lucro líquido, as custas dos clientes, já que cobra e não repassa o valor a quem de direito.

Não podemos deixar de citar que há autores que defendem, há um bom tempo, que há prática de crime quando o imposto é destacado na nota fiscal, cobrado do consumidor e não repassado ao Estado. Neste sentido, cumpre trazer à baila a lição de Guilherme de Souza Nucci:

"Análise do núcleo do tipo: deixar de recolher (não pagar), no prazo estipulado em lei, determinado valor de tributo (ou contribuição social, que, como já dissemos anteriormente, também é tributo), aos cofres públicos (ao fisco). A particularidade deste tipo penal é justamente o prévio desconto ou a cobrança de terceiro do mencionado valor, apropriando-se do que não lhe pertence. Ex.: o comerciante (sujeito passivo da obrigação, por imposição legal), cobra do comprador o ICMS referente à mercadoria vendida, mas não repassa a quantia ao tesouro. Ou, ainda, o empregador desconta parcela do imposto de renda do salário de seu funcionário e não a repassa aos cofres da União."10

Outra questão importante e passada despercebida por alguns juristas é o fato de que a apropriação indébita, no caso das contribuições previdenciárias, que em nada diferem do ICMS em termos de repasse/desconto do cliente/empregado, possui uma tipificação específica no código penal, art.168-A, ou seja, tanto é crime a apropriação de valores cobrados, que o legislador majorou as penas para este tipo penal específico, possivelmente devido às repercussões sociais da falta deste recolhimento, bem como ser uma prática comum, em tempos passados.

A Jurisprudência reconhece o crime de apropriação indébita das contribuições previdenciárias, quando declaradas e não recolhidas, cuja pena varia de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa, nos termos do art.168-A, do Código Penal. Não poderia ser diferente no caso do ICMS, cuja legislação específica se dá no art.2º, II, da Lei 8.137/90, ou seja, o empresário não provando que a inadimplência se deu por dificuldades financeiras (momentâneas) está praticando crime, devidamente tipificado, ao declarar o imposto e não repassá-lo ao Estado. No caso do art.2º, II, a pena é de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.

O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina e o Superior Tribunal de Justiça, em alguns de seus julgados, já se manifestaram sobre a conduta criminal de contribuintes do ICMS, que reiteradamente deixam de repassar ao erário o imposto cobrado, (grifos meus):

“Não há falar em inconstitucionalidade do tipo legal previsto no art. 2.º, inciso II, da Lei n.º 8.137/90. O caso em apreço – relação eminentemente de direito público entre o Estado e o responsável pelo recolhimento e pagamento de tributo – não se equipara ao do devedor civil, razão pela qual nenhuma inconstitucionalidade há na escolha legislativa pela criminalização da conduta, cominando pena de prisão. [...]” (HC 200.331-SC, 5.ª T., REL. LAURITA VAZ, 19.09.2013).”

“EMENTA HABEAS CORPUS IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO PREVISTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO. 1. NÃO CABIMENTO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL. RESTRIÇÃO DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. EXAME EXCEPCIONAL QUE VISA PRIVILEGIAR A AMPLA DEFESA E O DEVIDO PROCESSO LEGAL. 2. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INVIABILIDADE. MEDIDA EXCEPCIONAL. 3. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. INEXISTÊNCIA DE DOLO. IMPOSSIBLIDADE DE RECONHECIMENTO NA VIA ELEITA. EXAME APROFUNDADO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. 4. ATIPICIDADE DA CONDUTA. TESE NÃO APRECIADA PELO TRIBUNAL A QUO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. 5. ORDEM NÃO CONHECIDA. [...]

2. O trancamento da ação penal, por ser medida de exceção, somente cabe nas hipóteses em que se demonstrar, à luz da evidência, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou outras situações comprováveis de plano, suficientes ao prematuro encerramento da persecução penal, hipóteses que não se verificam no presente caso. Para a caraterização do ilícito de sonegação fiscal, consistente em deixar de recolher ao erário, no prazo e modo legal, valor do tributo do ICMS, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação, é necessária a vontade livre e consciente, dolo direto, de não repassar à Fazenda Pública os valores a ela devidos no tempo recomendado, exatamente a hipótese dos autos.

3. A alegação de falta de dolo, por certo, demanda necessária e aprofundada incursão no conjunto fático-probatório dos autos, providência própria das instâncias ordinárias e incompatível com os estreitos limites do habeas corpus, remédio constitucional caracterizado pelo rito célere e cognição sumária. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.

4. A questão relativa a atipicidade da conduta não foi submetida ao Tribunal de origem, o que impede a apreciação do tema por esta Corte, sob pena de incorrer em indevida supressão de instância.

5. Habeas corpus não conhecido.

Brasília (DF), 12 de março de 2013 (data do julgamento). MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator”HABEAS CORPUS Nº 235.406 - SC (2012/0046719-6).”

“VOTO DO EXMO. SR. MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIOR (RELATOR):

[...] Na espécie dos autos, verifica-se que o próprio paciente (contribuinte) declarou o débito por meio de GIA, ou DIME, remetendo-a ao Fisco estadual, apenas deixando de recolher, no prazo legal, o ICMS devido ao Erário estadual, consoante o trecho a seguir descrito da sentença condenatória (fl. 29 – grifo nosso): O ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços) tem como fato gerador as operações relativas à circulação de mercadorias e serviços, o que obriga sejam escrituradas em livros próprios todas as suas entradas e saídas no estabelecimento do contribuinte, a qualquer título.

Assim, deve o contribuinte remeter à Repartição Fazendária de seu domicílio uma via da Declaração de Informação do ICMS e do Movimento Econômico – DIME, onde informa o saldo apurado em cada período, devendo o imposto ser recolhido até o 10º (décimo) dia do mês seguinte àquele em que ocorreram os fatos geradores. Destarte, a consumação deste delito ocorre no dia seguinte àquele em que o ICMS deveria ter sido recolhido ao Estado. [...]

Ocorre que, mesmo tendo cobrado ou descontado o ICMS, cujo valor apurado foi declarado em GIA ou DIME (conforme o caso) e remetida ao Fisco Estadual, a empresa administrada pelo denunciado deliberadamente e por determinação deste, visando locupletar-se ilicitamente, deixou de recolher o ICMS, no prazo legal, ao erário estadual.

Ressalte-se que, após a escrituração dos valores, é de responsabilidade da empresa, por seu administrador, efetuar a integral quitação do tributo no fim do exercício mensal, sendo que o não recolhimento ocorreu, assim, por 22 vezes! [...] HABEAS CORPUS Nº 236.376 - SC (2012/0053502-0).”

Vejamos o que diz o Desembargador Irineu Mariani, da 1ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em parte de seu voto proferido quando do julgamento da apelação nº 70033756099, em 2010, quando se buscava o redirecionamento de execuções fiscais contra sócios de uma massa falida, no que diz respeito à criminalização da conduta do devedor contumaz (grifos meus):

Apelação Civil nº 70033756099

“Des. Irineu Mariani (RELATOR) [...]

3. Responsabilidade dos sócios-administradores. Penso, eminentes colegas, que, essa questão deve ser enfrentada desde logo pelo Tribunal, seja pelo princípio iura novit curia, seja porque ela tem vindo com forte carga de ilegitimidade passiva, o que pode-deve ser examinada de ofício.

Em síntese, cabe definir se o ICMS declarado em Guia Informativa de Apuração – GIA, e não repassado a quem de direito – examinei todas as execuções, e todas dizem com essa situação – caracteriza ou não infração à legislação tributária.

Afinal, cobrar ICMS do consumidor, declará-lo em Guia Informativa de Apuração, e não repassá-lo ao Estado, noutras palavras, apropriar-se do dinheiro, não caracteriza de parte dos administradores ato de infração à lei?

Há divergência tanto neste Tribunal quanto no STJ.

Entendo que caracteriza, sim, infração à lei. E note-se as peculiaridades do caso: são aproximadamente quinze milhões de reais! Onde foi parar todo esse dinheiro? Óbvio o proveito pessoal de todos os sócios e administradores.

Veja-se que o ICMS é um tributo em que o verdadeiro contribuinte é o consumidor, quem compra a mercadoria. É de seu bolso que sai o dinheiro – e por isso é chamado contribuinte de fato –, figurando o vendedor da mercadoria, chamado contribuinte de direito, apenas como repassador do dinheiro ao Estado. É bem diferente, por exemplo, do imposto de renda, em que as figuras do contribuinte de fato e de direito recaem sobre a mesma pessoa.

Ora, se em vez de repassar ao Estado, o vendedor na prática embolsa, se apropria indevidamente do dinheiro, penso que não entender isso como infração à lei por ato omissivo apenas estimula a inadimplência, uma vez que, pelo prisma de quem administra, repassar e não repassar não faz diferença, e o resto, bem, o resto fica por conta da informação do síndico (hoje administrador) de que a massa não tem como pagar, ou das dissoluções, quase sempre irregulares, onde não é encontrado absolutamente nada.

Mas, a final, como fica o dinheiro cobrado da população? É, a vingar a tese da irresponsabilidade do administrador, e também dos sócios quando for o caso, só nos resta parodiar, cum grano salis, aquele Ministro nos tempos dos Planos Econômicos em relação à diferença a menor creditada nas cadernetas de poupança: “O gato comeu.”

Impressiona-me que a uma conduta desse naipe queira-se reduzir tudo a expressões do tipo “simples inadimplemento”, “mero inadimplemento”, etc.

Veja-se que o inc. II do art. 2º da Lei 8.137/90 (dispõe acerca dos delitos contra a ordem tributária), define ser crime “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; (...). Pena: detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.”

É o caso do ICMS. O sujeito passivo da obrigação cobra dos consumidores, com o compromisso de, em determinado prazo legal, recolhê-lo ao Estado. Em vez de fazê-lo, se apropria do dinheiro.

Sem dúvida, desde o momento em que os administradores em geral tiverem consciência de que o não-repassa do ICMS coloca à disposição os patrimônios pessoais, a inadimplência cairá drasticamente.

De qualquer modo, o tema é controvertido, aqui e acolá. Apenas para exemplificar, alinho decisões da 1ª Turma do STJ, examinando a matéria pelo prisma do art. 135, III, do CTN. Resp. 14.904-MG, julgado em 4-12-91: “Infringe a lei o sóciogerente que deixa de recolher, tempestivamente, os tributos devidos pela firma devedora e, como responsável tributário, pode ser citado e ter seus bens particulares penhorados, mesmo que seu nome não conste da certidão de dívida ativa.” No Resp. 8.584-SP: “Infringe a lei tributária quem sujeito ao pagamento de tributo não satisfaz no tempo, forma e lugar determinados. O não-recolhimento de ICM declarado, que integrou o preço da mercadoria vendida, se não recolhido aos cofres públicos, tipifica figura penal.” DJU de 13-05-91). No Resp. 34.429-SP: “O sócio-gerente de uma sociedade limitada é responsável, por substituição, pelas obrigações fiscais da empresa a que pertencera, desde que essas obrigações tributárias tenham fato gerador contemporâneo ao seu gerenciamento, pois age com violação à lei o sócio-gerente que não recolhe os tributos devidos.” (Rel. Min. César Rocha, DJU de 06-09-93, p. 18.019). No Resp. 68.408-0-RS: “Obrigação essencial a todo administrador é a observância do pagamento dos tributos, no prazo consignado na legislação pertinente. Em se cuidando, no caso, de débito relativo a ICMS, é de presumir que os gerentes da empresa, embora tenham recebido dos consumidores finais esse imposto, nas operações realizadas, retardaram o recolhimento aos cofres da Fazenda, com evidente infração à lei, porquanto a sonegação de tributo constitui crime tipificado em legislação específica [...].”

Como explicitado no voto do Desembargador Mariani, os sócios gerentes são responsáveis pela decisão de não repassar o imposto ao Estado, quando a prática é recorrente. Cobrar e não repassar o imposto, de forma contumaz, é deliberação dos gestores, cuja conduta é uma infração à lei penal e a ordem tributária. No quadro na sequência temos um resumo da prática devedora contumaz e suas consequências. Trata-se de quadro extraído de petição eletrônica (página 11) protocolada pelo Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e Lubrificantes – SINDICOM – na qualidade de Amicus Curiae do Estado do Rio Grande do Sul, na defesa da constitucionalidade da Lei nº 13.711/11, na Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI nº 4854. 11

Finalizando este segundo tópico, relativo à análise jurídica da contumácia, reproduzimos parte de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no recurso extraordinário nº 627.543, em outubro de 2013, objeto de repercussão geral, tendo em vista a similitude aos casos aqui delineados. Do voto do Ministro relator é possível extrair que inadimplentes que não manifestam interesse em regularizar seus débitos não estão em igualdade jurídica com os demais contribuintes, ferindo princípios constitucionais com o da livre concorrência, igualdade e capacidade contributiva. Tal decisão parece sinalizar a existência de um “novo ingrediente” nas discussões tributárias, qual seja, a averiguação efetiva da função social dos tributos, conjuntamente com a necessidade de preservação da ordem tributária, (grifos meus):

RELATOR MIN. DIAS TOFFOLI “[...] Como se vê, o tratamento diferenciado e favorecido se insere no contexto das políticas públicas que se prestam para dar concretude aos objetivos constitucionalmente previstos, pois, além de a lei complementar instituir um regime simplificado denominado, conforme seu art. 12, de Simples Nacional, também traz importantes regramentos diferenciados que as prestigiam e as discriminam positivamente, precipuamente no que toca às licitações públicas, às relações de trabalho, ao estímulo ao crédito, à capitalização e à inovação tecnológica, ao associativismo, às regras de inclusão, ao acesso à justiça, dentre outros benefícios.

[...] Tais considerações me levam a registrar a projeção de crescimento do número de pequenas e microempresas optantes pelo Simples Nacional - conforme indicativos do SEBRAE, a partir de dados da Receita Federal - de 2,9 milhões em 2008 para 8,5 milhões em 2014, incluídos na projeção o micro empreendedor individual. Portanto, a condicionante do inciso V do art. 17 da LC 123/06 não se caracteriza, a priori, como fator de desequilíbrio concorrencial, pois se constitui em exigência imposta a todos os micro e pequenas empresas (MPE) e ao micro empreendedor individual (MEI), devendo ser contextualizada, por representar também, forma indireta de se reprovar a infração das leis fiscais, garantindo-se a neutralidade, com enfoque maior na livre concorrência.

[...] Admitir o ingresso no programa daquele que não possui regularidade fiscal (lato sensu) e que já adiantou para o Fisco que não pretende sequer parcelar o débito, ou mesmo buscar outra forma de suspensão do crédito tributário de que trata o art. 151 do CTN, é incutir no contribuinte que se sacrificou para honrar seus compromissos a sensação de que o dever de pagar seus tributos é débil e inconveniente, na medida em que adimplentes e inadimplentes recebem o mesmo tratamento jurídico.

Dessa perspectiva, o art. 17, inciso V, da Lei Complementar nº 123/96 não viola o princípio da isonomia. Ao contrário, confirma o valor da igualdade jurídica. O contribuinte inadimplente que não manifesta seu intento de se regularizar perante à Fazenda Pública não está na mesma situação jurídica daquele que suportou seus encargos. Entendimento diverso importa em igualar contribuintes em situações juridicamente desiguais.”

Mesmo que o Acórdão supracitado diga respeito a área civil, impossível não invocar os princípios da isonomia e da livre concorrência no “espírito” do art.2º, II, da lei 8.137/90. Sem dúvidas o legislador queria impedir a falta de recolhimento do imposto declarado como devido, tipificando tal conduta pelo Direito Penal. Distorcer tal dispositivo não parece ser o melhor caminho, do ponto de vista social, econômico, concorrencial e legal.

Sobre o autor
Ricardo Fiorin

Auditor Fiscal no Estado do Rio Grande do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIORIN, Ricardo. Devedores contumazes do ICMS e a prática de crime fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4453, 10 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41856. Acesso em: 22 dez. 2024.

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