3. A concepção jus-naturalista de família e a distinta visualização do pátrio poder
A partir do Renascimento e da modernidade, ser chefe de família continuou significando deter um poder privilegiado e amplo, mas que já não é mais um poder superior à capacidade – cada vez mais visível – dos outros integrantes da família. A modernidade abre espaço para uma transformação lenta, mas radical, na concepção de família, já que investe pela primeira vez (especialmente no âmbito do jus-naturalismo) na idéia de igualdade entre homem e mulher quanto à capacidade para chefiar a família.
Quem mostra isso com muita ênfase desde a década de 1970 é um dos maiores historiadores do jus-naturalismo, Alfred Dufour. Num ótimo estudo publicado originalmente em 1975, mas retomado e desenvolvido anos mais tarde, denominado Autoridade marital e autoridade paterna na escola do direito natural moderno, 5 Dufour mostra que uma das maiores contribuições do jus-naturalismo foi inovar na concepção dos direitos entre os integrantes da família.
Neste estudo, Dufour mostra que tanto a relação entre homem e mulher recebeu inovações importantes no ambiente jus-naturalista, como também as recebeu a relação entre pais e filhos, ainda que em menor medida. No que diz respeito à relação entre homens e mulheres, autores como John Locke no século XVII, mas também como Christian Wolff, e seu discípulo Daniel Nettelbladt, no século XVIII, investiram na idéia de que a mulher, como o homem, detém uma autoridade natural sobre os filhos, e efetivamente equivalente à do homem.
No que respeitasse, pois, à autoridade sobre os filhos, a mulher teria os mesmos direitos que o homem, e por razões naturais diferentes daquelas que eram alegadas por Aristóteles ou por toda a tradição medieval cristã: a mulher, como o homem, é causa da existência dos filhos, e isso torna a sua autoridade natural. Esta lógica é menos restritiva do que a concepção anterior, mas é ainda, sem dúvida, um reconhecimento tímido do potencial racional da mulher, já que ela não é desenhada, ainda, como uma possível autoridade equivalente à de seu próprio marido.
No que respeita à relação paterno-filial, por outra parte, nota-se que as mudanças serão também visíveis, embora se mostrem menores do que a relativa equalização de direitos ou de autoridade entre homem e mulher. Todavia, apesar do seu menor peso, dar-se-á igualmente, nesta circunstância relacional, uma mudança suficiente para caracterizar, enfim, a concepção da relação entre pais e filhos como uma relação na qual sempre haverá uma responsabilidade dos pais em relação às necessidades dos filhos, a ponto de se poder dizer que é aí que nasce, propriamente, uma concepção articulada de responsabilidade civil na relação paterno-filial.
Esta interferência do jus-naturalismo moderno na reformulação da concepção em tela, ocorrida nos séculos XVII e XVIII, fez com que se realizasse, aos poucos, a noção propriamente jurídica de responsabilidade – que se desenvolve até se tornar responsabilidade civil, no início do século XIX – e também porque é aí, na modernidade, que a condição jurídica dos filhos dentro da família passa a ser apresentada segundo critérios que se pretendem racionais ou científicos, para além dos antigos critérios do costume.
É certo que esta concepção jus-naturalista, assim como traçada, guarda uma grande distância com respeito à concepção contemporânea ou pós-moderna. Contudo, penso que dedicar uma certa atenção à maneira como os autores modernos trabalharam o assunto, pode dizer muito à contemporaneidade, quando somos convidados a considerar a família como uma entidade real, concreta, cuja significação e cujas necessidades talvez não estejam mais definidas unicamente pela lei ou pelo arbítrio do juiz.
4. O desafio da modernidade para demonstrar, racionalmente, os fundamentos da autoridade e da dependência entre os seus componentes
Ao tratar da família, os autores modernos tinham, então, o desafio de demonstrar racionalmente quais os fundamentos da autoridade e da dependência entre os seus componentes. É claro que o tema desta autoridade em família era (como sempre é) um princípio corrente; mas, por mais consensual que fosse a idéia de autoridade marital e paterna, no plano da teoria jurídica havia sempre a necessidade de evidenciar os seus fundamentos. Um dos paradoxos originados dessa tarefa, todavia, foi a revelação, por vezes, de que uma certa prática por quase todos aceita não tinha fundamentos tão racionais, como se poderia imaginar.
Qual efetivamente seria a razão e o fundamento da existência perenizada de um pátrio poder, a significar uma autoridade dos pais sobre os filhos, garantida pelo Estado, e que permite àqueles determinar a vida destes. O que é que, enfim, impulsiona o Estado a conceder e garantir um tal poder?
A argumentação original é, novamente, a que se aperfeiçoa na noção da natureza.
Os filhos vêm ao mundo na dependência completa dos pais, e assim permanecem enquanto não se tornam, eles mesmos, adultos ou emancipados. A dependência natural é tão certa e inegável, que sequer pode ser recusada pelos pais. Perfeitamente compreensível e aceitável.
Mas a questão que insiste em não calar, e que decorre desta singela verdade versa sobre a dúvida de qual seria a origem da autoridade dos pais?
Ou, em outros termos, por que a dependência dos filhos equivale a uma dominação por parte dos pais, a uma autoridade destes sobre aqueles, enfim?
O pátrio poder, justamente, não é um poder acidental, involuntário. Ele é exercido pelos pais como dominação sobre os filhos. Já que é uma dominação, talvez o pátrio poder não envolva nenhum componente afetivo. Ao menos, nenhum componente positivamente afetivo, como a generosidade com respeito aos filhos.
Ao contrário, talvez o seu sentido seja sempre, ou prioritariamente, negativo, no sentido de um aproveitamento ou ‘usufruto’ dos filhos, um exercício desenvolvido – talvez – mais em benefício dos próprios pais, do que para a alegria ou proveito dos filhos. Por que isso? Porque, de ponta a ponta, na relação entre pais e filhos simbolizada pelo pátrio poder, os filhos não têm poder nenhum.
A idéia de pátrio poder, assim, pressupõe algo semelhante à antiga concepção da subordinação da mulher ao homem: ela é devida segundo a natureza. Ela é devida porque a parte dominada na relação é mais fraca, é mais débil... Numa palavra, é dependente da outra.
Talvez.
Mas o que causa esta dependência, de fato? A natureza, como se fosse uma condição sem conserto ou mudança? Ou as circunstâncias, como se fosse uma condição determinada unicamente pela maior força do dominador?
Se a reflexão nos fizer passear os olhos para a história da condição feminina, facilmente observar-se-á que a causa da dependência reside exatamente na segunda opção: o que historicamente determinou, às mulheres, a ausência de direitos e a submissão ao patriarcado foi uma circunstância de imposição pela força, reiterada pelos costumes e pelas instituições, ao mesmo tempo que endossada pelo próprio direito.
Desde a Antigüidade, o homem é caput de sua mulher e das mulheres de sua família. Não porque tenha sido um desejo das mulheres. Mas elas sempre viveram em um mundo dominado por instituições patriarcais, cuja estrutura não permitia a própria modificação.
O mesmo pode ser descrito para a situação dos filhos.
Desde sempre, e com mais forte razão, os pais – mas principalmente o pai – são caput dos infantes. Em parte, por causa de uma concreta dependência dos filhos, que não têm nem forças, nem meios, nem principalmente experiência para emancipar-se na vida. Mas, em parte porque a família foi sempre constituída como um domínio particular de quem o instaurou. O círculo familiar, no qual o chefe de família é senhor dos membros da família, funciona como uma monarquia particular, como bem lembraria Cesare Beccaria, no capítulo 26 de seu tratado Dos delitos e das penas.
A definição tradicional e jurídica de família, então, e por todos os motivos, está muito longe da definição de uma relação afetiva. Ela define diretamente uma espécie muito particular de domínio e dominação.
Na família marcada pelo pátrio poder, como compreender, assim, algum fundamento natural ou racional para a responsabilidade dos pais diante dos filhos?
Se esta responsabilidade, desde o início, diz respeito a uma dependência dos filhos em relação aos pais, então ela é determinada mais pelos filhos do que pelos pais?
Ou determinada mais pelo Estado do que pelos filhos?
Num ou noutro caso, não é, certamente, uma responsabilidade determinada pelos próprios pais, porque não cabe a eles decidir a sua validade ou não. Se lhes coubesse, não seria, então, responsabilidade. Seria assunção volitiva de obrigação.
Há, concretamente, uma condição de dependência dos filhos em relação aos pais que é, sim, uma dependência natural, em dois sentidos: primeiro, porque os pais são causa dos filhos; segundo, porque os filhos, para se manterem, precisam do auxílio dos adultos; e como só existem porque seus pais os deram à existência, são estes que devem ser encarregados da sua subsistência.
A obrigação primeira dos pais em relação aos filhos é, certamente, a transmissão da cultura. Lévi-Strauss esclarece que, para que se passe da natureza (os meros impulsos, o simples biológico, nossa parte mais animal) para a cultura (o humano, o criado), para que se passe do individual para o social, são necessárias três interditos básicos: canibalismo, parricídio e incesto. Dada a condição humana de indefensão, para que os filhos sobrevivam, as suas necessidades vitais primeiras serão satisfeitas pela mãe, por um período relativamente prolongado em relação às outras espécies animais.
Os filhos, assim, são um encargo natural trazido pela união dos pais: o nascimento dos filhos obriga os pais a manterem os próprios filhos, como se os filhos fossem, de certa forma, uma culpa deles próprios, que não incumbe ao Estado assumir. Ou seja, mesmo nos termos em que os filhos dependem dos pais para sobreviver e se desenvolver, não cabe, à luz do viés da Antigüidade que está em foco, tentar enxergar, aí, nenhuma relação afetiva.
Se ela ocorrer também, tanto melhor, é um excedente. Aos olhos do Estado, a relação entre pais e filhos é a de uma sociedade causada por vontades completamente particulares, que não têm poder nem legitimidade para transferir sua causalidade ao Estado, se este não o desejar. Porque causam os filhos, os pais causam, conjuntamente, todos os gastos envolvidos na sua manutenção e desenvolvimento.
Se assim é, raciocine-se: por qual motivo o Estado ou outra entidade que não os próprios pais, poderia ou deveria ser considerado co-responsável nessa criação? Se – e somente se – considerarmos que por nenhum motivo, então, de fato, a relação paterno-filial pode ser avaliada como uma relação de um senhor com seus próprios bens. Apenas isso.
Assim entendida, contudo, a relação paterno-filial não envolve, é claro, o poder paterno de decidir pela vida ou morte dos filhos (isto era coisa dos déspotas antigos), mas envolve, sim, uma precedência na determinação externa da vida dos filhos.
Quem deve decidir o destino e as preferências dos filhos, seria o caso de se perguntar – o Estado ou os pais? Ou, ao menos, quem tem precedência nessa decisão – o Estado ou os pais? Não importa qual seja a resposta que se dê, se a opção for por um dos dois – o Estado ou os pais – se estará, com isso, aceitando a idéia de que os filhos são coisa...
Na verdade, saindo enfim desse plano que concebe a autoridade paterna como pátrio poder, encontra-se o verdadeiro desafio de definir quem deve ter precedência para decidir sobre os destinos da criança ou do jovem atrelado, ainda, à vida em família.
Sem dúvida, a essência da pós-modernidade responde e estampa a concepção contemporânea mundializada, ao menos em sociedades assemelhadas à nossa: é a própria criança ou jovem, sempre, que deve ter precedência na determinação do seu destino. Sempre. Ainda que esteja sob o pátrio poder, ou sob o poder familiar, como prefere a nova Lei Civil Brasileira 6, ou ainda que esteja sob a dependência dos pais ou do Estado.
Pais e Estado – assim como toda a sociedade, afinal – não podem, em momento nenhum, tratar a criança como coisa só pelo fato de ser ela sem experiência ou sem atividade produtiva, sem maturidade espiritual ou sem autonomia material. A criança, apesar de seu estado de extrema e concreta dependência, é um ser humano como qualquer outro, é um ser desejante e emotivo como qualquer outro, que sente dor diante da crueldade alheia e revolta por não lhe ser concedida a liberdade que é capaz de administrar sozinha. E é por ser dotada desse desejo e dessa necessidade que a criança, enfim, é dotada de dignidade e assim deve ser respeitada. Não respeitar essas necessidades e negar a relevância do desejo é tratar a criança como coisa, é efetivamente ser violento com ela, o que afasta, em definitivo, qualquer relação ética com a criança. 7
Senhores.
Se é o caso de pensar a responsabilidade na relação entre pais e filhos, vale a pena pensá-la apenas pelo viés do direito ou é o caso de pensá-la a partir especialmente da ética? É o caso de pensá-la em ambos os planos, necessariamente, inclusive porque nenhum deles é válido sem o outro, na consideração da responsabilidade.
Qualquer que seja o tema proposto, a respeito da responsabilidade, ele será um tema tanto jurídico quanto ético. Numa perspectiva ética, como fica essa responsabilidade? Ela não pode, de forma alguma, negar validade ao desejo da criança. O contrário demonstrará a vida em família como uma relação de violência, justamente porque é uma relação de neutralização e de dominação apenas, o que é muito bem mostrado, entre outros autores, por Michel Foucault, em seus vários estudos sobre as relações de poder, mas especialmente a Microfísica do poder e, mais ainda, na sua última obra, a História da sexualidade. 8
Importante também é verificar que as considerações acerca da responsabilidade na relação entre pais e filhos não devem se reduzir ao fato de se averiguar quais são as obrigações que já existem, ou que decorrem desta relação por sua própria condição e estrutura natural, nem de se averiguar quais são os meios de compensação de danos na má gestão dessa autoridade paterna, por vez patriarcal.
É claro que envolve estes aspectos também, mas de forma alguma deve se restringir a eles, pois, se ficarem, as considerações, restritas a essa perspectiva técnica, talvez não se ampliem satisfatoriamente os horizontes. Talvez seja necessário – e até imprescindível – ir a um ponto outro, de estranha inversão, e verificar que é preciso conhecer o que há, nos filhos, que determina a autoridade dos pais.
Questão muito curiosa, essa, porque parece inverter a própria idéia de autoridade. Afinal, se alguém tem autoridade sobre um outro, que coisa mais extravagante haveria do que a idéia de que a autoridade é medida por quem está a ela subordinado?
De fato, a questão é extravagante.
Mas será que pode ser garantido algum resultado positivo à questão oposta, que é mesmo a questão clássica, de saber qual é o poder que a autoridade tem por sua própria vontade ou potência? Ao que parece, ela sempre foi útil para conceber a relação dos pais com os filhos como um pátrio poder, como uma relação de dominação dos filhos pelos pais. E sendo apenas isso, os benefícios ou as garantias desta relação, para os filhos, são mais produto da sorte do que das necessidades dos filhos. Ou não?
Deixo essa questão em aberto, porque o mais importante, segundo me parece, é o enfrentamento da outra questão: o que há, nos filhos, que determina a autoridade dos pais?