Resumo: O texto contém abordagem crítica do que decidido pelo Supremo Tribunal Federal na Repercussão Geral do Recurso Extraordinário n. 724.347. Decidiu a Suprema Corte Brasileira que o candidato empossado tardiamente em cargo público efetivo, por efeito de decisão judicial, não tem direito a receber reparação pecuniária. A decisão propicia crítica, bem como requer revisão de tese de acordo com o artigo 543A, § 5º do Código de Processo Civil e 327, § 2º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chaves: Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 724.347; Responsabilidade do Estado por ato lícito; Investidura em cargo público postergada pela atuação judicial do Estado; Reparação do dano; O processo como fonte autônoma de danos..
SUMÁRIO:I – Introdução I.1 - O filtro da Repercussão Geral II – Desenvolvimento II.1 - Da Repercussão Geral RE 724.347 II.2 - Da Crítica Formal II.2.a - Da fragilidade dogmático-legal II.2.b - Da fragilidade lógico-persuasiva II.3 - Da Crítica ao Argumento Substantivo II.3.a - Da responsabilidade patrimonial do Estado – Licitude, ilicitude e antijuridicidade II.3.b - Do possível impacto financeiro III – Conclusão IV - Referências
I - INTRODUÇÃO
I.1 - O filtro da Repercussão Geral
A criação do instituto jurídico da Repercussão Geral pela Emenda Constitucional 45/2004 tem origem primária na necessidade de se resolver a ostensiva crise de funcionalidade que acomete o Supremo Tribunal Federal. A crise reflete o desfecho judiciário do fenômeno sociológico que Boaventura de Souza Santos (1993) denominou de explosão de litigiosidade – crise em grande parte causada a) pela cultura do litígio, b) pelo próprio Estado, que cria o ordenamento jurídico, mas recusa-se a se submeter espontaneamente a ele, e - considerada a competência do Supremo Tribunal Federal, exercida em sede de recurso extraordinário, c) pela existência de uma Constituição analítica.
Com o novel instituto, o acesso à jurisdição da Suprema Corte, por meio de recurso extraordinário, dependerá, além do preenchimento dos demais requisitos legais, regimentais e sumulares, da demonstração, em tópico apartado da petição recursal, da transcendência e da relevância da tese que se pretende ver apreciada, ou seja, demonstrar que o recurso extraordinário contém questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico e que estas ultrapassem os interesses subjetivos da causa, nos termos do art. 543-A, § 2º, do Código de Processo Civil.
A par da opção incontrastável do Poder Constituinte originário por Constituição analítica e rígida, é intuitivo que o produto da opção traz, a reboque, um amplo leque de matérias de hierarquia constitucional e que mais dia, menos dia, as lides constitucionais desafiariam a jurisdição da Suprema Corte. Assim, o filtro processual introduzido pela Emenda Constitucional 45/2004, o estreito crivo por ele criado e o elevado grau de afetação que é inerente a uma repercussão geral impõem aos membros do Supremo Tribunal Federal um ônus qualificado no seu processo de produção, sob pena de, a pretexto da aplicação do filtro, propiciar-se o fechamento do protocolo da corte, em caso de desajuste, imprecisão ou inadequada seletividade da tese proclamada. O atual modelo do filtro da Repercussão Geral permite esta distorção, pois, fixada a tese pelo Supremo Tribunal Federal, é definitiva e irrecorrível para esta corte a decisão a quo que, a pretexto do juízo de admissibilidade, aplica a repercussão geral a recurso extraordinário então interposto (AI 760358 QO - Relator Min. GILMAR MENDES – Tribunal Pleno).
II - DESENVOLVIMENTO
II.1 - Da Repercussão Geral RE 724.347
Apreciando a Tese 671, o Supremo Tribunal Federal decidiu em Repercussão Geral que o candidato empossado em cargo público, por efeito de decisão judicial, não tem direito a reparação pelo retardamento da investidura, ressalvada arbitrariedade patente. Trata-se do Recurso Extraordinário 724.347, que recebeu a relatoria do Ministro MARCO AURÉLIO e relatoria para acórdão do Ministro ROBERTO BARROSO. Assim foi ementado o Acórdão:
“Ementa: ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INVESTIDURA EM CARGO PÚBLICO POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL. 1. Tese afirmada em repercussão geral: na hipótese de posse em cargo público determinada por decisão judicial, o servidor não faz jus a indenização, sob fundamento de que deveria ter sido investido em momento anterior, salvo situação de arbitrariedade flagrante. 2. Recurso extraordinário provido” (RE 724347 – Relator Min. MARCO AURÉLIO - Relator p/ Acórdão Min. ROBERTO BARROSO – Tribunal Pleno – Pub. 13/05/2015).
No caso representativo desta Repercussão Geral, em sua origem, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao decidir recurso de apelação, assentou que os recorrentes, servidores públicos estatutários empossados em seus cargos por efeito de decisão judicial, têm direito a receber reparação pecuniária em valor que espelhe os vencimentos não recebidos, desde a data em que deveriam ter sido empossados até a data da investidura, “descontando-se os rendimentos eventualmente recebidos durante esse tempo em razão do exercício de outro cargo público inacumulável ou de atividade privada”.
Diante da decisão desfavorável, a União manejou recurso extraordinário, alegando violação ao artigo 37, § 6º, da Constituição Federal e argumentando a imprescindibilidade do efetivo exercício do cargo para viabilizar a retribuição pecuniária, sob pena de se propiciar enriquecimento sem causa.
Duas correntes antagônicas se apresentaram. A primeira, capitaneada pelo Ministro MARCO AURÉLIO, relator original e seguida pelo Ministro LUIZ FUX – que negaram provimento ao recurso fazendário e, a segunda, a partir da divergência aberta pelo Ministro ROBERTO BARROSO, que acolhia o recurso.
O voto do relator originário - o Ministro MARCO AURÉLIO, de perfil reconhecidamente dogmático, foi assim ementado:
“CONCURSO PÚBLICO – ÓBICE ADMINISTRATIVO ILEGÍTIMO – CONTROLE JUDICIAL – NOMEAÇÃO E POSSE TARDIAS – INDENIZAÇÃO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – CABIMENTO – ARTIGO 37, § 6º, DA CARTA DA REPÚBLICA.
Envolvidas nomeação e posse tardias, ante ato administrativo reconhecido como ilegítimo em decisão judicial transitada em julgado, incumbe ao Estado, nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, indenizar o cidadão lesado, tendo-se por critério de quantificação o que deixou de auferir no período, subtraídos valores recebidos em razão da ocupação de cargo público ou de emprego na iniciativa privada.”
Para negar provimento ao recurso extraordinário interposto pela União, o Ministro MARCO AURÉLIO argumentou que o obstáculo ao exercício legítimo do cargo público pelos servidores, tardiamente empossados, deveu-se a ato administrativo ilícito, assim reconhecido por meio de decisão judicial passada em julgado.
Afirmou, com fundamento no artigo 37, § 6º, da Constituição da República, que é dever do Estado reparar o patrimônio do cidadão, desfalcado por conta de ato ilícito praticado pela Administração Pública. Nas suas palavras, consignou o ministro relator:
“O precedente revela, a mais não poder, a caracterização, pelo Supremo, da responsabilidade da Administração e o correlato dever de indenizar quando reconhecida a ilegitimidade de ato administrativo por meio do qual se obstaculiza exercício de direito a cargo público, havendo de ser fixada a indenização a partir da soma das parcelas remuneratórias que o cidadão haveria percebido se nomeado e empossado em ocasião própria”.
Além da argumentação de ordem constitucional, ou seja, da aplicação do artigo 37, § 6º da Constituição Federal ao caso, o Ministro Relator trouxe outro argumento de ordem lógica, ou seja, de não conter os autos o pedido de pagamento de remuneração:
“A remuneração não é o objeto do pedido, mas critério para quantificar-se a reparação. A duas, porquanto a responsabilização civil se impõe, por força de norma constitucional, como maneira de minimizar efeitos patrimoniais indesejados causados por conduta de agente público. Afastar o direito à indenização implicaria, em última análise, negar vigência ao próprio preceito constitucional sem que a Carta da República preveja exceção”.
Inaugurando a divergência, o Ministro ROBERTO BARROSO, louvando-se no parecer ofertado pelo Procurador Geral da República, proferiu voto no sentido do provimento do recurso extraordinário interposto pela União, adotando como argumento central a impossibilidade de enriquecimento ilícito, pois o acolhimento do pedido dos servidores públicos recorridos implicaria o pagamento de vencimentos sem o respectivo exercício funcional. Secundariamente, o Ministro ROBERTO BARROSO sustentou “o possível impacto financeiro da decisão a ser tomada”.
Ressaltou-se em seu voto, entretanto, a reparação em situações de patente arbitrariedade, como “descumprimento de ordens judiciais, litigância meramente procrastinatória, má-fé e outras manifestações de desprezo ou mau uso das instituições, ocorrem fatos extraordinários que exigem reparação adequada”.
A argumentação prevalecente na Repercussão Geral do Recurso Extraordinário 724.347 predispõe o “standard” a crítica e esta se revela não apenas possível, mas, necessária, pela constatação da existência de dupla ordem de fragilidades argumentativas. A primeira é de ordem formal e diz respeito à legitimidade do exercício do jus dicere, reclamando abordagem pela ótica dos pressupostos dogmático-legais, assim como pelo prisma da aptidão lógico-persuasiva da decisão, ambas inerentes à função jurisdicional. Quanto ao aspecto material, é possível apontar a firme inadequação entre o conteúdo da tese vencedora e o argumento constitucional eleito para tanto, qual seja, o artigo 37, § 6º da Constituição Federal.
II.2 - Da Crítica Formal
II.2.a - Da fragilidade dogmático-legal
“Não há Estado sem poder” (TEMER, 2003, p. 117) e na repartição orgânica do poder estatal, no tocante ao ato formal e materialmente jurisdicional, o órgão judicante, diferentemente do que ocorre nos demais Poderes, não retira sua legitimidade do mandato popular (BONAVIDES, 1996, p. 116). Retira-a diretamente da Constituição da República. Bem por isto, o órgão judicial não está sujeito a “accountability” no âmbito da opinião pública. Não é inerente à investidura do membro Poder Judiciário o mandato popular, por meio do qual é possível e permitido aos seus detentores proceder a escolhas tipicamente governamentais, e, dentre elas, escolher, inclusive, o que é ruim, para se evitar uma escolha trágica.
Diferentemente, no processo de decisão, o órgão judicial investido em suas funções busca legitimidade na eleição de critérios decisórios dogmáticos e científicos e por isto o processo de seleção para a investidura dos membros do Poder Judiciário pressupõe a sindicância pública do domínio de conhecimentos e habilidades técnicas e científicas por parte do candidato. Longe de representar qualquer exercício de retórica, a realidade exposta tem por objetivo tão somente lembrar que o produto da função jurisdicional é resultado do emprego de método científico dogmático-legal (ex: pressupostos processuais e condições da ação) e a sua legitimidade decorre de argumentação lógico-dedutiva sustentável e sustentada por necessária e objetiva racionalidade (ex: fundamentação das decisões).
Pois bem. Como dito, a decisão proferida na Repercussão Geral 724.347 viabilizou a crítica por dois ângulos formais distintos: o primeiro é de ordem dogmática-legal e o segundo de caráter lógico-persuasivo.
Quanto ao primeiro aspecto, o ponto de partida é o caráter inequivocamente extra-petita dos votos vencedores. Com efeito, como exposto pelo Ministro MARCO AURÉLIO ao relatar o caso, os servidores públicos recorridos ingressaram com ação ordinária visando reparação pecuniária, em valor que espelhe os vencimentos não recebidos, desde o momento em que deveriam ter sido empossados até a data da investidura e o fizeram com fundamento no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, ou seja, na regra que veicula a responsabilidade civil do Estado.
Apesar do pedido certo formulado pelos autores da ação ordinária, consistente em reparação de natureza civil, por conduta estatal ensejadora de dano, a estrutura argumentativa dos votos vencedores cuidou de coisa diversa, qual seja, consistiu na impossibilidade de deferir o pagamento de vencimentos a servidor público sem o respectivo desempenho das funções.
Todavia, há de se levar em conta a diferença substancial entre o pedido de reparação civil, formulado com fundamento na regra da responsabilidade patrimonial do Estado pelo dano e pedido de pagamento de vencimentos, que tem sede legislativa diversa e inequívoco caráter funcional-estatutário.
De fato, ordinariamente, pagamento de vencimentos constitui exclusiva retribuição por trabalho efetivamente prestado. Entretanto, fosse este o pedido formulado na ação ordinária, a fundamentação reclamaria o exame da legislação infraconstitucional, no caso, o artigo 40, da Lei 8.112/90, vez que os litigantes recorridos integram a Administração Pública federal. Conforme dispõe o dispositivo em referência, “Vencimento é a retribuição pecuniária pelo exercício de cargo público, com valor fixado em lei.”
Percebe-se que esta não foi a lide submetida ao crivo do Poder Judiciário. Para decidir este objeto, faltaria à Corte Suprema o pressuposto da previsão constitucional expressa da competência para o julgamento do recurso extraordinário. Os votos vencedores, ao afirmarem nuclearmente a inexistência de direito à reparação pecuniária, por ausência da prestação laboral, inequivocamente incorreram em duplo vício, seja o vício da incompetência jurisdicional, seja o vício do julgamento extra-petita.
Como se percebe, o viés argumentativo apontado não apenas fragiliza, mas infirma a decisão abordada, pois - obtida em julgamento extra-petita, torna-a também ilegítima, por não advir de processo decisório alicerçado em argumentação dogmático-legal.
II.2.b - Da fragilidade lógico-persuasiva
Superando a abordagem estritamente dogmática e legal, é possível também formular crítica pelo ângulo lógico-persuasivo, considerado o alerta feito inicialmente, ao propósito de um específico método de produção de decisões judiciais, informado por uma incontornável racionalidade argumentativa.
Com efeito, partindo-se do argumento central contido na Repercussão Geral, no sentido de que a ausência de prestação laboral afasta o direito à reparação pecuniária, é possível apontar contradição insuperável, capaz de lhe subtrair a consistência lógico-argumentativa, necessária à legitimidade do ato decisório estatal, bem como a sua validade como decisão judicial, observada esta pela ótica do imperativo constitucional da motivação válida (racional).
Como é sabido, a independência dos órgãos judiciais materializa-se, dentre outras coisas, pelo exercício do livre convencimento motivado, que se expressa pela necessária fundamentação das decisões judiciais, a teor do artigo 93, IX, da Constituição Federal. Se o Ordenamento Jurídico consiste em sistema de normas e valores articulados por perfeita racionalidade, é correto afirmar também que a fundamentação das decisões judiciais deva expressar uma perfeita, ou, no mínimo, uma aceitável racionalidade, sob pena de incorrerem em a) patologia constitucional da ausência, insustentabilidade ou insuficiência de motivação e, b) ilegitimidade como ato judicial estatal.
Pois bem, sem maior esforço interpretativo, observa-se que o argumento vencedor, invocado pelo Ministro ROBERTO BARROSO, no sentido de que a ausência de prestação laboral afasta o direito à reparação pecuniária contém fundamento visivelmente insustentável, do ponto de vista lógico, para negar o pedido de reparação de danos materiais.
Ora, do ponto de vista da lógica ao menos razoável que deve qualificar os atos decisórios jurisdicionais, como se poderia eleger simultaneamente o resultado da conduta estatal, ou seja, a impossibilidade de efetivo exercício no cargo público, como sendo também a causa excludente do dever de indenizar (reparar)? Tal construção lógica, que serviu de fundamento para erigir toda a árvore argumentativa da repercussão geral de que se trata, por exalar contradição evidente, não passa pelo rigoroso crivo na necessária motivação, se por esta se deve entender argumentação racional, idônea a justificar a decisão adotada.
II.3 - Da Crítica ao Argumento Substantivo
Ultrapassando a abordagem formal da decisão proferida na Repercussão Geral do Recurso Extraordinário 724.347, que diz respeito à sua legitimidade e sustentabilidade lógica, é possível também examinar a questão pelo seu desacerto material, ou seja, pela sua contrariedade a valores constitucionalmente consagrados na Carta Magna.
II.3.a - Da responsabilidade patrimonial do Estado – Licitude, ilicitude e antijuridicidade
Na base da regra emergente do regime jurídico geral da responsabilidade aquiliana está a prática de um ato ilícito. Consoante o artigo 186 do Código Civil. “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
No âmbito da Constituição Federal, o artigo 37, § 6º, consagra a regra da responsabilidade estatal e diferentemente do que ocorre no direito privado, em que é pressuposto da responsabilidade a prática de um ato ilícito, quando se trata da responsabilidade do Estado, “no direito administrativo ela pode decorrer de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem a pessoas determinadas ônus maior do que o imposto aos demais membros da sociedade” (DI PIETRO, 2009, p. 638). A propósito consignou o saudoso Prof. Celso Ribeiro Bastos que “O Estado, na verdade, hoje responde por qualquer ato causador de dano.” (1996, p. 190).
É certo dizer, com esteio no artigo 37, § 6º da Constituição Federal, que o plano da antijuridicidade abarca tanto a ilicitude quando à licitude das condutas, sempre que da ação resultar dano, como se depreende da norma em questão, cuja descrição normativa não contém o ato ilícito. Objetivamente, “É que não nos podemos esquecer de que a função da responsabilidade civil é privilegiadamente reparadora: o propósito principal é o de reparar danos e não o de sancionar condutas” (CORTEZ, 2000, p. 54).
E não poderia ser de outra forma, pois, no que pertine ao regime jurídico de direito público, diferentemente do particular, que se lhe faculta fazer tudo que não seja proibido, a Administração pública só pode fazer o que a lei determina. E assim pode ocorrer que o agir no seu exclusivo universo de atuação possível, ou seja, na enormidade de atos e fatos a ela cometidos por lei, a potestade pública cause dano ao particular. Assim ocorrendo, sob a ótica do artigo 37, § 6º, da Lei Maior, nasce, por igual, o dever de reparar o dano.
Então se pode afirmar que o acerto ou o desacerto da decisão abordada não reclama saber a licitude ou ilicitude da causa petendi – ou causa remota (THEODORO JUNIOR, 1998, p. 64), qual seja, do ato administrativo que impediu a posse dos candidatos ao cargo público licitado. Afinal, a ilicitude do ato administrativo restou configurada e foi procedida a investidura no respectivo cargo público.
O que há de ser respondido é se, à luz do artigo 37, § 6º, da Lei Maior, a questão revolve-se somente com a posse dos candidatos litigantes, considerando-se que da atuação judicial na defesa do interesse primário da Administração pública - ainda que formalmente legítima, decorreu longo lapso temporal e que devido a ambos os fatores – a resistência da fazenda pública e o transcurso do tempo – os litigantes foram impedidos do exercício de seus cargos públicos por longo período.
Do ponto de vista de seu destinatário, o cargo público efetivo é um complexo de bens e direitos e que tem como marco inicial de sua fruição o instante, a partir do qual, o seu titular pode ou deveria no cargo ser investido. E apenas para exemplificar podem ser citados o direito líquido e certo à nomeação (RE 598099 - Relator Min. GILMAR MENDES – Tribunal Pleno -, Repercussão Geral – Mérito – Pub. 03/10/2011), à remuneração, à contagem do tempo de serviço para fins previdenciários (vide emendas constitucionais 20, 41 e 47), o direito à estabilidade, às progressões na carreira, às vantagens funcionais que têm como fator de apuração o elemento tempo de serviço, dentre outras, dependendo do regime jurídico estatutário ao qual o servidor esteja atrelado.
Com efeito, quem decide empreender o ingresso em cargo público efetivo confia na promessa do edital do concurso. Para tanto investe tempo, recursos financeiros, morais e emocionais, abdica da vida social e, não raras vezes, do convívio com a própria família, tudo para viabilizar o projeto de vida, como bem retratou o Ministro MARCO AURÉLIO dos autos do emblemático Recurso Extraordinário 598.099:
“Os candidatos, disse então, almejando melhoria, quer sob o ângulo profissional, quer sob o ângulo econômico, quase sempre dedicam-se com exclusividade aos estudos. Um concurso público é uma verdadeira via crucis, especialmente quando em jogo cargos de difícil acesso, como são os compreendidos no âmbito da magistratura, do Ministério Público, das Defensorias e das Procuradorias estaduais. Desligam-se das atividades que viabilizam o próprio sustento, passando a depender dos familiares, cuja convivência, ainda que de forma momentânea, sacrificam em face da eleição de um objetivo maior. Por outro lado - ressaltei-, vem à balha o princípio da boa-fé, nos parâmetros constantes das normas regedoras do concurso, procedimento que é antecedido da análise nas chances havidas. Confiam no todo poderoso Estado – Recurso Extraordinário 192.568, Segunda Turma”.
Considerando-se que o Estado responde por danos, ainda que estes sejam causados pelos atos lícitos de seus órgãos, para se validar a formulação extraída dos votos vencedores segundo a qual a “simples existência de um litígio judicial sobre concurso público é fato normal na vida de uma sociedade com instituições, e a defesa judicial pelo Estado de um ponto de vista minimamente razoável, dentro das regras do jogo, não gera dano indenizável”, seria necessário que, a) imediatamente à prática de ato lesivo, b) se seguisse a própria reparação, ou seja, que no domínio do tempo, entre um e outro não decorresse lapso temporal cujo transcurso não corresponda, ele mesmo, fator de dano. Ante a realidade judiciária nacional, este não é apenas um sonho distante, mas, outrossim, impossível.
Por esse prisma, o processo não pode ser encarado apenas como função da soberania estatal, como direito fundamental proclamado e consagrado na Constituição em seu artigo 5º, inciso XXXV (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), atividade esta revestida de predicamentos públicos, como o contraditório, a ampla defesa, o juiz natural e o devido processo legal. Quanto a este (o devido processo legal) e a sua pertinência ao debate que ora se apresenta, não basta que seja atendida a forma da lei para que se alcance a sua finalidade pública e política, pois, o devido (“due”) nem sempre propicia o justo:
“O devido processo legal, assegurado como instrumento indispensável à composição de litígios em juízo, não é visto apenas como uma simples forma de obter o pronunciamento judicial. Somente se entende como tal aquele que se organize e se desenvolva de maneira a cumprir a tarefa que lhe foi reservada, ou seja, a de proteger o direito subjetivo individual de qualquer lesão ou ameaça. O due processo of Law tem de ser, portanto, o processo justo”. (THEODORO JÚNIOR, 1997, p. 50).
A despeito da missão e da promessa inequivocamente transformadora da realidade, trazida com a vigência da Constituição Cidadã, a regra emergente da decisão ora examinada frustra esta promessa, ao trazer o velho status quo, agora sob a nova roupagem de repercussão geral. E é talvez, por este decepcionante pensar dentro da caixa, que esteja o Poder público governamental à vontade para descumprir a promessa e a missão do Poder Constituinte, sendo a causa primária da litigiosidade que embarga e embaraça o livre funcionamento da máquina judiciária, impedindo-a de se desincumbir de sua missão em tempo socialmente aceitável e necessariamente útil para os litigantes, tudo num desalentador círculo vicioso.
Ante o argumento judicial ora em debate, qual seja, a afirmada inexistência de dano indenizável pela “defesa judicial pelo Estado de um ponto de vista minimamente razoável”, a propósito dos embaraços comodamente criados pela Administração aos candidatos em concursos públicos e a supremacia do controle judicial, presente a chaga da morosidade judiciária - numa batalha perdida, diga-se, observado para tanto a utopia do princípio constitucional da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII – CF), a desfecho da Repercussão Geral ora comentada permite afirmar que o processo pode não apenas consistir em fonte autônoma de bens (THEODORO JUNIOR, 1998, p. 78), mas, outrossim, em fonte de danos, numa inequívoca e bem embalada violação do princípio da dignidade da pessoa humana.
A propósito da promessa, da missão, do velho status quo e da dignidade da pessoa humana, vale trazer à colação o pensamento do sempre genial Haroldo Plínio Gonçalves:
“A dignidade humana é valor que não se negocia, como realmente sempre o foi, por isso nasce a ânsia de promovê-la. Compreende-se, então, o apelo para que o Direito seja o elemento transformador da sociedade. Mas não se pode esquecer que a sociedade contemporânea não tem a pureza das primitivas, e já não aceita profetas com suas tábuas de leis. Quer fazer o seu destino e quer ser agente da sua história. Seus conflitos são trazidos à luz do dia e resolvem-se no jogo das pressões e das contradições.” (1992, p. 11).
O desfecho da Repercussão Geral ora em comento permite, confortavelmente, afirmar que o processo pode, presente na relação processual a fazenda pública, ainda que vencida esta, ser inequívoca e autônoma fonte de danos, e o que é pior, dano não reparável.
II.3.b - Do possível impacto financeiro
Por fim, ainda do ponto de vista da compatibilidade da decisão comentada com o Ordenamento Jurídico, cumpre verificar neste modesto trabalho se o segundo argumento elencado na divergência aberta pelo Ministro ROBERTO BARROSO - muito embora assim argumentasse em caráter meramente ancilar, qual seja, “o possível impacto financeiro da decisão a ser tomada”, é válido a justificar a conclusão a que se chegou na Repercussão Geral.
Neste prisma, por se confrontarem em sede processual o particular e a Fazenda pública, por se haver outorgado a esta um privilégio material, consistente em blindagem de seu patrimônio em face do possível impacto financeiro, impõe-se saber se a outorga deste especial tratamento, no que o ente público possui de peculiar, se a peculiaridade então especificada na regra jurídica concreta (“standard”) é justificável, considerado para tanto o princípio da igualdade.
Segundo atualizado constitucionalista Kildare Gonçalves Carvalho, referindo Paulino Jacques, “O princípio da igualdade é o que mais tem `desafiado a inteligência humana e dividido os homens” (2011, p. 695). O princípio da igualdade, encontrando-se implícito no ápice da Ordem jurídica, é o ponto de partida fundamental da política legislativa. Ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, eminentíssimo Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que o princípio da igualdade é direcionado primacialmente ao legislador, pois, a despeito da legalidade genérica (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” - artigo 5º, II, CF), não pode o legislador conferir tratamento igual ao que se apura diferente no plano da existência.
Em obra clássica, o ilustrado doutrinador elenca os critérios a partir dos quais é permitido ao legislador estabelecer distinções. A saber:
“Para que um discrímen legal seja conveniente com a isonomia, consoante visto até agora, impende que concorram quatro elementos:
a) que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto, um só indivíduo;
b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferençados;
c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;
d) que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa - ao lume do texto constitucional - para o bem público.” (1994, p. 41).
Sob a ótica da lição do renomado mestre – e se processo é igualdade, o fato é que a lei pátria já procedeu previamente aos critérios de desigualação possíveis e aplicáveis aos particulares e à fazenda pública figurantes na relação processual, estabelecidas a seu juízo de conveniência legislativa. Muito embora, hodiernamente objeto de severas críticas, dentre tais critérios podem ser mencionados a previsão em favor da fazenda pública de prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer, a impossibilidade do reconhecimento dos efeitos da confissão ficta em caso de revelia, o duplo grau de jurisdição necessário, a imprescritibilidade dos bens públicos. No tocante à validade do critério em exame, qual seja, o argumento segundo o qual o acolhimento da pretensão reparatória de que se trata ocasionaria “impacto financeiro”- deve-se ter em mente que o legislador constitucional já instituiu, neste particular, a desigualação possível em favor do Erário, ao prever a impenhorabilidade dos bens públicos, ante a reserva orçamentária prévia e obrigatória de trata o artigo 100 da Lei Maior.
Nesse quadrante, no que toca ao efeito patrimonial das decisões condenatórias passadas em julgado e proferidas em face da fazenda pública, que contêm condenações por quantia certa, no que ela tem de peculiar face o litigante genérico, a lei já procedeu ao tratamento isonômico legalmente válido, ao instituir disciplina jurídica que desconhece congênere no direito comparado (CUNHA, 1999, p. 117), para que se proceda à devida previsão orçamentária de pagamento. É o que prescreve o artigo 100, § 5º, da Constituição Federal:
“Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009). (Vide Emenda Constitucional nº 62, de 2009)
...
§ 5º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009).”
Assim, por haver a lei outorgado à fazenda pública um privilégio formal e material, benesse de que não usufrui o particular quando demandado, municiando o Erário de condições para a implementação do seu equilíbrio orçamentário, não se revela consentâneo com o princípio da igualdade o argumento desfilado na repercussão geral em comentário e oposto à pretensão dos servidores públicos litigantes, no sentido de que o acolhimento do pedido desaguaria em possível impacto financeiro das pretensões reparatórias.