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A (in)constitucionalidade dos arts. 400 e 222, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Penal

Agenda 06/09/2015 às 14:01

O presente estudo dedica-se a discussão acerca da inconstitucionalidade dos arts. 400 e 222, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Penal.

Resumo: O presente estudo dedica-se a discussão acerca da inconstitucionalidade dos arts. 400 e 222, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Penal, eis que os citados dispositivos legais, ao determinarem que a expedição de carta precatória não suspenderá a instrução criminal, bem como ao autorizar a realização do julgamento antes mesmo do retorno de tais cartas, utilizando, como fundamento, os princípios da eficiência e o da economia processual, violam os mais básicos direitos e garantias constitucionais. Nesse contexto, torna-se essencial discutir a (in) constitucionalidade dos mencionados dispositivos legais à luz do sistema acusatório adotado em nosso ordenamento jurídico e dos princípios constitucionais insculpidos na Constituição da Republica Federativa do Brasil.

Palavras-Chave: Direitos e Garantias Constitucionais. Princípios Constitucionais. Direito Penal. Direito Processual Penal. Sistema Acusatório.


INTRODUÇÃO

Trata-se este estudo de uma breve análise acerca da (in) constitucionalidade dos arts. 400 e 222, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Penal, que determinam as regras relativas à expedição de carta precatória, bem como à ordem de instrução probatória. Sendo assim, resulta este trabalho de um cotejo aprofundado sob a ótica constitucional, de modo a evidenciar todas as nuances cabíveis envolvendo o tema.

A estrutura sistemática do presente artigo se inicia pelo estudo dos sistemas processuais penais existentes no ordenamento jurídico, com especial destaque para o sistema adotado no Brasil, qual seja, o acusatório. A análise de tais sistemas é de suma importância para a compreensão da discussão aqui procedida, notadamente pelo fato de que em cada sistema é adotado um princípio unificador, cabendo o estudo, portanto, de sua compatibilidade com os mencionados dispositivos legais.

Em seguida, são tratadas considerações acerca do Direito Processual Penal e de sua relação com a Constituição da Republica Federativa do Brasil, passando por uma análise contextualizada dos princípios constitucionais mitigados pelos arts. 400 e 222, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Penal, quais sejam, o do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, bem como o da proporcionalidade.

Na sequência, é trazida uma breve síntese relacionada ao instituto da carta precatória, passando por seu conceito, hipótese de cabimento, bem como a sua localização na discussão do presente estudo.

E, por fim, no último tópico, foi feita uma discussão mais pontual do tema, confrontando os artigos ora debatidos com o sistema acusatório adotado pelo nosso ordenamento jurídico, bem como com os princípios constitucionais. Para tanto, foram colacionados julgados do STJ, do TRF- 4ª Região, bem como foi feito menção ao entendimento esposado por grandes doutrinadores penais.

Nessa linha, a discussão central deste artigo reside na defesa da manifesta inconstitucionalidade dos arts. 400 e 222, §§ 1º 2º, do Código de Processo Penal, pois, ao determinarem a não interrupção da instrução criminal, em razão da expedição de carta precatória, bem como ao possibilitarem a inversão da ordem probatória criminal, em decorrência, também, da expedição de tais cartas, tais artigos vão de encontro ao conteúdo de diversos princípios constitucionais insculpidos na Constituição da República Federativa do Brasil, os quais serão abordados neste estudo, além de não corresponderem aos preceitos do sistema acusatório adotado em nosso ordenamento jurídico.

Por fim, cumpre ressaltar que a metodologia utilizada no presente estudo foi a pesquisa do tipo teórico, utilizando-se como norte o método dedutivo e, sobretudo a técnica da pesquisa bibliográfica, reunindo, contudo, a mais abalizadas posições doutrinárias e jurisprudenciais.

1 SISTEMAS PROCESSUAIS

De início, antes de qualquer análise acerca dos sistemas processuais penais, cumpre esclarecer o significado da palavra “sistema” – em seu sentido jurídico – para melhor compreensão da matéria.

O doutrinador Paulo Rangel (2012, p. 47), em sua obra, dispõe que o “sistema processual penal é o conjunto de princípios e regras constitucionais de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas à aplicação do Direito Penal a cada caso concreto”.

Nessa linha, os sistemas processuais existentes no ordenamento jurídico são formados por um conjunto de princípios e regras coordenados entre si e que funcionam dentro de uma estrutura organizada.

Nesse particular, convém esclarecer que cada sistema processual penal é formado por um princípio unificador, ou seja, por uma ideia, a qual servirá de parâmetro para a criação de todas as regras existentes em cada sistema.

Após tais considerações, passemos à análise dos três sistemas processuais penais existentes no ordenamento jurídico: sistema inquisitivo, sistema acusatório e sistema misto ou acusatório formal.

1.1 Sistema Inquisitivo

O sistema inquisitivo surgiu na Roma Antiga e se consolidou durante a Idade Média, com a sua utilização pela Igreja Católica, diante da necessidade de investigar e punir os crimes contra a fé católica.

Naquela época, a própria Igreja exercia a atividade persecutória e, através do sistema inquisitivo, os hereges eram punidos pelos membros do clero.

O Estado, portanto, reunia para si o poder de reprimir a prática dos delitos, não admitindo que tal poder fosse estendido ou delegado aos particulares.

No sistema inquisitivo as funções de acusar, defender e julgar ficam concentradas nas mãos do Juiz da causa. A ideia central desse sistema é a de que o Julgador é o gestor central das provas, sendo o investigado mero objeto do processo.

Nesse sentido, vejamos os ensinamentos de Paulo Rangel (2012, p. 47) sobre o a matéria em questão:

Portanto, o próprio órgão que investiga é o mesmo que pune. No sistema inquisitivo, não há separação de funções, pois o juiz inicia a ação, defende o réu e, ao mesmo tempo, julga-o. […] No sistema inquisitivo, o juiz não forma seu convencimento diante das provas dos autos que lhes foram trazidas pelas partes, mas visa convencer as partes de sua íntima convicção, pois já emitiu, previamente, um juízo de valor ao iniciar a ação.¹

Em continuidade, na linha de ensinamento do eminente doutrinador acima referenciado, no sistema inquisitivo o próprio juiz instaura o processo e, utilizando-se de todos os meios de provas, lícitos ou não, busca convencer as partes acerca de sua convicção a respeito dos fatos.

As características desse sistema são: a) concentração das funções de acusar, defender e julgar, nas mãos do magistrado; b) o réu é considerado mero objeto do processo e não sujeito de direitos; c) o processo é sigiloso; d) ausência de contraditório e de ampla defesa; e, e) a confissão é “a rainha das provas”.

1.2 Sistema Acusatório

No sistema acusatório, ao contrário do sistema inquisitivo, há nítida separação das funções de acusar, defender e julgar. Aqui, tais funções são conferidas a pessoas distintas, possibilitando o exercício do contraditório e da ampla defesa.

Vejamos a linha de ensinamento do doutrinador Paulo Rangel (2012, p. 49) sobre o tema em deslinde:

O sistema acusatório, antítese do inquisitivo, tem nítida separação de funções, ou seja, o juiz é órgão imparcial de aplicação da lei, que somente se manifesta quando devidamente provocado; o autor é quem faz a acusação (imputação penal + pedido), assumindo, segundo nossa posição (cf. Item 1.7, supra), todo o ônus da acusação, e o réu exerce todos os direitos inerentes à sua personalidade, devendo defender-se utilizando todos os meios e recursos inerentes à sua defesa. Assim, no sistema acusatório, cria-se o actumtriumpersonarum, ou seja, o ato de três personagens: o juiz, autor e réu.

O sistema acusatório surgiu na Grécia Antiga e Roma Republicana, sendo que, nesse período, o particular era o responsável pela acusação. Em seguida, o Estado ou a Igreja passaram a assumir a função acusatória. Posteriormente, com o advento da Revolução Francesa, a vontade do Estado ou da Igreja deu lugar aos preceitos da Lei, restringindo-se, dessa forma, a interferência destes na esfera individual dos particulares.

No sistema acusatório, o juiz deixa de instaurar o processo de ofício e distancia-se das partes, eis que, aqui, o órgão julgador é dotado de imparcialidade, a fim de se preservar os princípios do contraditório, da ampla defesa, bem como o da igualdade entre as partes do processo.

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Nessa linha, contrariando os preceitos defendidos no sistema inquisitivo, o réu passa a ser sujeito de direitos, sendo-lhe conferido todas as garantias constitucionais que lhe são outorgadas.

Após tais considerações, cumpre esclarecer que nosso ordenamento jurídico adota o sistema em tela, uma vez há clara separação das funções de acusar, defender e julgar, conferidas, respectivamente, ao Ministério Público – e, excepcionalmente ao particular –, à defesa do acusado, que, ressalte-se, lhe é constitucionalmente assegurada, e, também, ao Juiz da causa.

Sendo assim, a inversão da ordem probatória, possibilitada pelos arts. 400 e 222, § 1º, do Código de Processo Penal, desnatura o próprio sistema acusatório adotado pelo nosso ordenamento jurídico, uma vez que ele é incompatível com a possibilidade de a acusação produzir as suas provas em último lugar, tomando conhecimento de todo o conjunto probatório produzido, inclusive com a produção de prova pessoal do próprio acusado.

1.3 Sistema Misto ou Acusatório Formal

O sistema processual misto ou acusatório formal guarda relação com os sistemas inquisitivo e acusatório, uma vez que suas características encontram-se relacionadas com ambos os sistemas.

Nessa linha, este sistema é marcado pela existência de duas fases, quais sejam: a fase da instrução preliminar e a fase judicial. A primeira, possui caráter inquisitório, pois o juiz é quem preside o procedimento, colhendo provas e informações que possibilitem a deflagração da ação ao juízo competente. A segunda, por sua vez, é marcada por traços do sistema acusatório, uma vez que as funções de acusar e julgar são conferidas a pessoas distintas, quais sejam, ao Ministério Público – em regra –, bem como ao Juiz, possibilitando às partes o exercício do contraditório e da ampla defesa.

2 O PROCESSO PENAL E A CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

A Constituição da República Federativa do Brasil, constitui marco inicial para a aplicação de todas as normas jurídicas, incluídas, aqui, portanto, as normas de direito processual penal.

O intérprete das normas processuais penais, para melhor aplicação do Direito aos casos concretos, deve analisar o ordenamento jurídico inicialmente através das normas hierarquicamente superiores, até as normas hierarquicamente inferiores, principalmente porque na seara penal a discussão central gira em torno do direito de liberdade do cidadão, o qual se apresenta como um bem juridicamente protegido pela Constituição da República Federativa do Brasil.

Ante tais considerações, cumpre mencionar que, para melhor analisar a constitucionalidade ou não dos arts. 400 e 222, §§ 1º e 2º, do CPP, torna-se imperioso tecer alguns comentários acerca de certos princípios e garantias constitucionais.

2.1 Devido Processo Legal

O ordenamento jurídico pátrio estabelece a vedação de que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

É o que se observa do art. 5º, inciso LIV, da Constituição da Republica Federativa do Brasil, senão vejamos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal

Nessa linha, este princípio constitui uma limitação ao Estado do seu direito de punir, eis que determina que ninguém será julgado antes do esgotamento de todas as vias de defesa inerentes ao processo. No ponto, vejamos os ensinamentos dos doutrinadores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2011, p. 66):

O devido processo legal é o estabelecido em lei, devendo traduzir-se em sinônimo de garantia, atendendo assim aos ditames constitucionais. Com isto, consagra-se a necessidade do processo tipificado, sem a supressão e/ou desvirtuamento de atos essenciais. […] A pretensão punitiva deve perfazer-se dentro de um procedimento regular, perante a autoridade competente, tendo por alicerce provas validamente colhidas, respeitando-se o contraditório e a ampla defesa.

O princípio do devido processo legal é visto sob dois vieses: formal e material. Pelo aspecto material, o princípio do devido processo legal garante ao indivíduo a própria existência do processo, eis que constitui um meio indispensável para o exercício da jurisdição penal. Noutro giro, através do aspecto formal, este princípio estabelece a legalidade do processo, ou seja, dentro dos limites previstos na Constituição.

O princípio do devido processo legal, que serve de fundamento para todos os demais princípios, vincula não só o Poder Judiciário, mas também o Executivo e, principalmente, o Poder Legislativo, que não pode legislar de forma ilegal ou arbitrária.

Ante todo o exposto, tem-se que legislar sobre a expedição e cumprimento de carta precatória, determinando a não suspensão da instrução criminal, bem como autorizando a realização do julgamento antes do seu retorno e, assim, violando direitos e garantias constitucionais, em razão de uma suposta eficiência processual, bem como de uma economia do dinheiro público, é, de plano, inconstitucional, em razão do princípio do devido processo legal.

2.2 Ampla Defesa

O artigo 5º, inciso LV, da Constituição da Republica Federativa do Brasil estabelece o princípio da ampla defesa como sendo a garantia de que aos litigantes e aos acusados em geral serão assegurados a ampla defesa (além do contraditório) com os meios e recursos a ela inerentes. No ponto, vejamos o teor do referido dispositivo constitucional:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerente

Nessa linha, cumpre destacar que a garantia da ampla defesa encontra-se diretamente relacionada ao contraditório e ambos são corolários do princípio do devido processo legal. No ponto, o doutrinador Eugênio Pacelli, em sua obra (2011, p. 45), assevera que “enquanto o contraditório exige a garantia de participação, o princípio da ampla defesa vai além, impondo a realização efetiva dessa participação, sob pena de nulidade, se e quando prejudicial ao acusado”.

Para Pacelli (2011, p. 46), “a ampla defesa realiza-se por meio da defesa técnica, da autodefesa, da defesa efetiva e, finalmente, por qualquer meio de prova hábil a demonstrar a inocência do acusado”.

Fernando Capez (2007, p. 20), buscando uma definição do que seria ampla defesa, consignou que seria o “dever de o Estado proporcionar a todo acusado a mais completa defesa, seja ela pessoal (autodefesa), seja técnica (efetuada por defensor), e o de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados”.

Ante o exposto, da análise do princípio constitucional em referência, verifica-se que a possibilidade de inversão na ordem probatória, dada pelos arts. 400 e 222, § 1º, do CPP, bem como a autorização concedida ao magistrado da causa de prolatar a sentença antes mesmo do retorno da carta precatória expedida, estabelecida pelo § 2º, do art. 222, do mesmo diploma legal, poderá acarretar sérios prejuízos à defesa dos acusados em geral, violando-se, portanto, o texto da Constituição da Republica Federativa do Brasil, diante da mitigação do princípio da ampla defesa. No ponto, ressalto que tais violações serão analisadas com maior profundidade mais adiante, especificamente no item 4.

2.3 Contraditório

O princípio do contraditório, próprio do sistema acusatório adotado pelo nosso ordenamento jurídico, encontra-se previsto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República Federativa do Brasil, e caracteriza-se como uma garantia constitucional de igualdade de oportunidades concedidas às partes atuantes no processo. Tal princípio vai muito além que simples oportunidade de manifestação, ele consubstancia-se, principalmente, na garantia dada às partes de simétrica paridade no processo.

Para Julio Fabbrini Mirabete (2005, p. 46), a garantia do contraditório é uma das mais importantes no processo acusatório. Para ele “o acusado goza do direito de defesa sem restrições, num processo em que deve estar assegurada a igualdade das partes”.

Lídia Elizabeth PeñalozaJaramillo Gama (2005, p. 108-109), em sua obra, afirma que o princípio do contraditório “é conhecido também como princípio da bilateralidade da audiência, este tratamento decorre da igualdade que deve ser proporcionada aos litigantes na audiência”.

Paulo Rangel (2012, p. 49), de maneira clara, discorre acerca do princípio em tela, senão vejamos:

A instrução contraditória é inerente ao próprio direito de defesa, pois não se concebe um processo legal, buscando a verdade processual dos fatos, sem que se dê ao acusado a oportunidade de desdizer as afirmações feitas pelo Ministério Público (ou seu substituto processual) em sua peça exordial.

O contraditório, portanto, busca a eliminação ou redução das desigualdades, jurídicas ou fáticas, entre os sujeitos do processo, ou seja, aplica-se a todos aqueles que tenham interesse jurídico na decisão judicial.

Assim, na linha da exposição aqui procedida, bem como diante dos ensinamentos dos eminentes juristas acima referenciados, resta clara que a possibilidade de inversão na ordem probatória, bem como a de prolatação da sentença antes do retorno da carta precatória expedida, resultará no enfraquecimento da igualdade defendida pelo princípio do contraditório. Em outras palavras, a inversão na ordem probatória poderá favorecer a acusação, uma vez que esta produzirá suas provas com o prévio conhecimento da linha defensiva, posicionando-se, portanto, em condição processual privilegiada. Por outro lado, a não interrupção da instrução processual, com a consequente possibilidade de prolatação da sentença, sem o conhecimento dos depoimentos das testemunhas ouvidas por carta precatória, da mesma forma, poderá beneficiar umas das partes do processo, indo de encontro com os postulados pelo princípio do contraditório, ora em análise.

2.4 Proporcionalidade

Inicialmente, cumpre esclarecer que os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade são visualizados de maneira distinta na doutrina, pois há divergência se tais princípios são sinônimos ou, ao contrário, se apresentam conteúdos diferentes.

Nessa linha, vejamos os ensinamentos de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2011, p. 72), sobre a divergência doutrinária em tela:

Há entendimento de que o princípio da proporcionalidade não se identifica com o princípio da razoabilidade. Enquanto o princípio da razoabilidade é denominação que representa urna norma jurídica consistente em um cânone interpretativo que conduza o jurista a decisões aceitáveis, o princípio da proporcionalidade, de origem germânica, representa um procedimento de aplicação/interpretação de norma jurídica tendente a concretizar um direito fundamental em dado caso concreto.

Assim, o princípio da proporcionalidade é visto como um meio de ponderação para aplicar ou interpretar as normas jurídicas, visando a solução de conflitos entre os direitos fundamentais. Por outro lado, o princípio da razoabilidade traduz um comando dirigido ao aplicador das normas jurídicas, para que este profira decisões aceitáveis.

Luiz Roberto Barroso (1990, p. 128), doutrinador que entende que o princípio da proporcionalidade é sinônimo do princípio da razoabilidade, preceitua que aquele é “uma espécie de parâmetro de valoração das ações do Poder Público, no sentido de verificar se as mesmas encontram-se revestidas do valor superior inerente a qualquer ordenamento jurídico, qual seja, a Justiça”.

Nesse contexto, analisando o princípio da razoabilidade com o conteúdo da Lei nº11.719/08, que revogou a regra originária o artigo 396, do CPP, passando a possibilitar a inversão da ordem de oitiva de testemunhas, bem como a autorizar a prolatação da sentença pelo Magistrado da causa, antes mesmo do retorno das cartas precatórias expedidas, observa-se que o princípio constitucional da ampla defesa (abrangidos, aqui, os princípios do contraditório e da ampla defesa) sofre uma mitigação, quando confrontado com o princípio constitucional da eficiência do processo.

Sendo assim, em nome do princípio da razoabilidade, é possível efetivar a eficiência do processo sem, no entanto, mitigar o princípio constitucional da ampla defesa, um dos mais básicos e importantes princípios constitucionais e, portanto, norteador do Direito Processual Penal.

3 CARTA PRECATÓRIA E OS ARTIGOS 400 E 222, §§ 1º e 2º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

A carta precatória encontra-se disciplinada no Código de Processo Penal a partir do artigo 351, e caracteriza-se como o instrumento pelo qual um órgão judicial requisita a outro, de igual hierarquia, o cumprimento de determinado ato necessário ao andamento do processo, o qual necessita ser realizado dentro dos limites de sua competência territorial, ou seja, a designação do ato encontra-se subordinada ao juízo de outra localidade.

O doutrinador Eugênio Pacelli (2012, p. 603), discorrendo sobre a matéria em tela, aduz que “fala-se em carta precatória porque a prática do ato é solicitada a outro juiz que não aquele em cuja jurisdição tem curso a ação principal”.

Nessa linha, cumpre destacar que, dentre as diligências que podem ser requisitadas a outro juízo, de igual hierarquia, encontra-se a inquirição de testemunhas residentes em sua comarca, conforme preceitua o art. 222, do Código de Processo Penal, senão vejamos o teor do referido dispositivo legal:

Art. 222 - A testemunha que morar fora da jurisdição do juiz será inquirida pelo juiz do lugar de sua residência, expedindo-se, para esse fim, carta precatória, com prazo razoável, intimadas as partes.

§ 1º - A expedição da precatória não suspenderá a instrução criminal.

§ 2º - Findo o prazo marcado, poderá realizar-se o julgamento, mas, a todo tempo, a precatória, uma vez devolvida, será junta aos autos.

§ 3º Na hipótese prevista no caput deste artigo, a oitiva de testemunha poderá ser realizada por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, permitida a presença do defensor e podendo ser realizada, inclusive, durante a realização da audiência de instrução e julgamento.

Da análise do dispositivo legal acima transcrito, especialmente de seus §§ 1º e 2º, verifica-se que a expedição de carta precatória não possui o condão de suspender a instrução criminal, nem, tampouco, constitui obstáculo para a prolação da sentença criminal.

Por outro lado, o art. 400, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.719/08, passou a permitir, de forma expressa, a inversão na ordem de oitiva das testemunhas de acusação e de defesa, bem como da tomada de declarações do ofendido. Atente-se:

Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.

Quanto a esse aspecto, convém ressaltar que, muito embora o dispositivo legal acima mencionado não se refira expressamente à possibilidade de inversão da ordem do interrogatório do réu, o qual, de acordo com o citado artigo, deve ser o último ato da instrução probatória, o artigo 222, § 1º, do CPP, ao determinar que a expedição de carta precatória não suspende a instrução criminal, também autoriza, ainda que de forma implícita, a prematura produção de prova pessoal do acusado.

Nesse contexto, após a conceituação do instituto da carta precatória, bem como das previsões contidas nos arts. 400 e 222, §§ 1º e 2º, do CPP, em relação à inquirição de testemunhas residentes fora da comarca, cumpre analisar as implicações de ordem constitucional que o citado dispositivo legal pode acarretar, as quais serão analisadas no próximo tópico.

4 DA (IN) CONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 400 E 222, §§ 1º e 2º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: CONFRONTO COM O SISTEMA ACUSATÓRIO E COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Após as explanações feitas em relação aos sistemas processuais penais, bem como no tocante a alguns princípios constitucionais, todos analisados à luz dos artigos ora debatidos, cumpre analisar, de uma maneira geral, a inconstitucionalidade dos citados dispositivos legais.

O entendimento acerca da inconstitucionalidade reside no fato de que a possibilidade de não suspensão da instrução criminal, bem como a autorização de prolação da sentença criminal, ambas em decorrência da expedição de carta precatória, ferem flagrantemente os princípios constitucionais relativos ao contraditório, à ampla defesa, e ao devido processo legal.

O princípio do devido processo legal, nesse particular, sofre séria restrição em razão da previsão contida nos arts. 400 e 222, §§ 1º e 2º, do CPP, pois, como visto, a não suspensão da instrução criminal, em decorrência da expedição de carta precatória, viola direitos e garantias constitucionais, bem como os postulados do sistema acusatório, ante a permissão de inversão da ordem probatória, com a consequente possibilidade de ocorrência de prejuízos para o Réu.

Nesse sentido, cumpre destacar que o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus nº 225.757/SP, já reconheceu a existência de manifesto prejuízo para o Réu, em decorrência da inversão da ordem de oitiva de testemunhas, determinando, portanto, a anulação do processo para que as mencionadas testemunhas sejam novamente ouvidas. No ponto, atente-se ao trecho extraído do Voto do Ministro Relator Sebastião Reis Júnior:

[…] Destarte, tem-se demonstrado o efetivo prejuízo que a oitiva das testemunhas de defesa antes da oitiva das testemunhas de acusação provocou à defesa técnica do paciente, o que violou as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, razão pela qual deve o processo ser anulado, determinando-se sejam as testemunhas de defesa novamente ouvidas, por ser medida de justiça! Em um primeiro momento, demonstrado está, ao meu ver, a possibilidade de que a oitiva de testemunhas de defesa após a oitiva de testemunhas de acusação cujos depoimentos, em princípio, corroboram o que foi alegado por ocasião da denúncia, causa prejuízo efetivo à Defesa, o que impede a inversão da ordem prevista no art. 400 do CPP. […] (Sem grifos no original).

Guilherme de Souza Nucci (2012, p. 522), por sua vez, entende que, “entre a expedição da carta precatória e a data da audiência é preciso tempo razoável para a precatória estar de volta”.

É, inclusive, no mesmo sentido o posicionamento do TRF- 4ª Região. Atente-se:

[…] Entretanto, demonstrado que foram designadas datas próximas para a oitiva das testemunhas arroladas em comarcas diversas, mostra-se salutar a suspensão temporária dos interrogatórios do acusado, a fim de evitar ulterior alegação de ofensa aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório; […]. (TRF- 4ª Região, HC 2009.04.00.041265-2/PR, 8ª TURMA, Rel. Des. PAULO AFONSO BRUM VAZ, julgado em 25/04/2009).

Cumpre destacar, ainda, o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, sobre a matéria em estudo:

APELAÇÃO CRIME. ESTELIONATO. PRELIMINARES DE NULIDADE SUSCITADAS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO NESTE GRAU DE JURISDIÇÃO. CARTAS PRECATÓRIAS. INTIMAÇÃO DA EXPEDIÇÃO. OPORTUNIZAÇÃO DE REINTERROGATÓRIO APÓS O RETORNO DAS DEPRECATAS CUMPRIDAS. 1 - Na forma da Súmula 273 do STJ, só configura nulidade absoluta a ausência de intimação das partes quanto à expedição da carta precatória, a qual, na hipótese, aconteceu. Nulidade inocorrente. 2 - A Lei 11.719/08 trouxe alterações legislativas, que culminaram com modificações no procedimento comum. Dentre elas, o art. 400do CPP, pelo qual o interrogatório do acusado passou a ser o último ato da instrução, consagrando-se, assim, os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Assim, a não observância de tal regra configura cerceamento de defesa. 1ª PRELIMINAR REJEITADA. 2ª PRELIMINAR DE NULIDADE ACOLHIDA. APELAÇÃO PREJUDICADA. (Apelação Crime Nº 70051196616, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francesco Conti, Julgado em 30/01/2013 – sem grifos no original).

Assim, não se pode mitigar o princípio do devido processo legal, inclusive os seus corolários, quais sejam, contraditório e ampla defesa, bem como o princípio da proporcionalidade, em nome de uma suposta eficiência do Estado, uma vez que o Réu não pode ser penalizado pelos problemas enfrentados pelo Poder Judiciário, o qual deve buscar dar efetividade ao princípio da eficiência sem, no entanto, comprometer os direitos fundamentais do Acusado.

CONCLUSÃO

O presente artigo objetivou questionar o procedimento adotado para a expedição de carta precatória, diante das previsões contidas nos arts. 400 e 222, §§ 1º e 2º, do CPP, os quais estabelecem a possibilidade de inversão da ordem probatória, bem como a autorização de prolatação da sentença antes mesmo do retorno de tais cartas, uma vez que estes procedimentos podem configurar manifesto prejuízo tanto para a acusação, como para a defesa do acusado.

Nesse contexto, para demonstrar a manifesta inconstitucionalidade dos citados dispositivos legais, foi feita breve explanação acerca dos sistemas processuais penais existentes no ordenamento jurídico, com especial destaque para o sistema acusatório adotado no Brasil, além da análise dos princípios constitucionais violados, do conceito do instituto da carta precatória, da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, além do entendimento esposado por doutrinadores considerados referência em matéria de Direito Penal e Processual Penal.

Portanto, após o estudo acima procedido, firmou-se o entendimento de que os arts.400 e 222, §§ 1º e 2º, do CPP, constituem afronta ao sistema acusatório adotado em nosso ordenamento jurídico, bem como aos princípios consagrados na Constituição da Republica Federativa do Brasil, encontrando-se eivados, portanto, do vício da inconstitucionalidade.

Sendo assim, estando em confronto os princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, com o princípio da eficiência processual, entendemos que os primeiros devem se sobrepor ao último, por constituírem os mais básicos direitos do cidadão consagrados constitucionalmente.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:. Acesso em: 16 fev. 2014.

_______. Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 16 fev. 2014.

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Abstract: The present study was developed to discuss about the unconstitutionality of arts. 400 and 222, §§ 1 and 2 of Criminal Procedure Code, by the way when those cited legal provisions determine that dispatch of the precatory letter does not suspend the criminal investigation, allow the accomplishment of the trial even before the letter gets back, just using as basis principles of efficiencyand procedural economy, that judicial proceedings violate the most basics rights and constitutional guarantees. By this context, must be essential to discuss about the (un) constitutionality of those legal provisions underthe accusatory system used in our legal system and constitutional principles established by the Federative Republic of Brazil’s Constitution..

Keywords: Rightsand. Constitutional Guarantees. Constitutional principles. Criminal Law. Criminal Procedure Law. Accusatory system.

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