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Bem jurídico-penal como aquisição evolutiva

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Agenda 15/09/2015 às 17:26

O artigo apresenta uma perspectiva sobre a função do bem jurídico a partir da Teoria dos Sistemas, segundo a ótica de Niklas Luhmann.

1.

A ideia de proteção de bens jurídicos valiosos à sociedade é indissociável do direito penal contemporâneo (notadamente a partir do final do século XVIII, ante o predomínio das ideias liberais). Seja como função[1], contribuição[2], garantia fundamental[3] ou estrutura de legitimação[4], a tutela exclusiva de bens jurídicos essenciais à vida em sociedade é alicerce de toda construção dogmática do direito penal moderno.

O consenso em relação ao tema encerra-se no grau de importância a que se eleva a categoria dos bens jurídicos, ocupando papel de destaque nas mais diversas construções teóricas. Desde ‘interesses juridicamente protegido’[5], passando por ‘objetos dotados de valor para o desenvolvimento pessoal do homem na vida em sociedade’[6] ou ‘circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre’[7] e até mesmo como mera ‘garantia de vigência da norma’[8], tão divergentes são as construções propostas a respeito de seu significado e de seu exato papel na dogmática penal.

Para além das diversas concepções acerca de sua forma existencial, o Tribunal Constitucional Alemão chegou mesmo a negar a teoria do bem jurídico, alegando a impossibilidade de se defini-lo e a usurpação de função da função legislativa pela jurisdicional que supostamente resultaria de sua aplicação. A decisão é objeto de análise de Luís Greco, que examina os fundamentos básicos, destacando expressamente trechos do julgado:

Em primeiro lugar, o conceito de bem jurídico seria controverso: ‘sobre o conceito de bem jurídico não há ainda qualquer consenso’. Ou se apresentaria como um ‘conceito normativo de bem jurídico’, que não diferiria da ratio legis e, por isso mesmo, seria incapaz de limitar o legislador, ou então se apresentaria como um ‘conceito naturalístico de bem jurídico’ com pretensão de suprapositividade, o que estaria em contradição ‘com o fato de que, segundo a ordem da Lei Fundamental, é tarefa do legislador democraticamente legitimado fixar não só os fins da pena, mas também os bens a serem protegidos por meio do direito penal’. Ainda que a teoria do bem jurídico tenha importância dogmática ou politico-jurídica, ‘não fornece ela qualquer parâmetro substancial que tenha necessariamente de ser acolhido pelo direito constitucional’. Logo são citadas principalmente as investigações de Lagodny e Appel, que chegam a um resultado similarmente crítico à ideia de bem jurídico. [9]

Contrariamente a essa decisão que adota tese minoritária, mas sem atender ao afã de analisar pormenorizadamente as teorias acerca da natureza jurídica e função tradicionalmente dispensada ao bem jurídico-penal, cumpre destacar as duas principais contribuições atribuídas à construção de uma ideia racional de direito penal destinado a tutelar exclusivamente bens jurídicos essenciais à vida em sociedade: (i) a despenalização de condutas puramente ideológicas, imorais ou contra os interesses políticos dominantes, sem danosidade social e (ii) a identificação das características específicas do objeto de proteção do direito penal.

A fim de que se possam extrair tais contribuições a partir da ideia de bem jurídico-penal, deve-se abandonar uma perspectiva formalista e buscar seu conteúdo material.[10] Não basta conceituá-lo tão somente como uma ‘realidade valorada positivamente’, sob pena de se incluir em tal categoria qualquer estado, convicção ou princípio em consonância com os interesses dominantes ― ao contrário, deve-se atentar para os três elementos que constituem a ideia de bem jurídico-penal, a saber: (i) a danosidade social, (ii) a referência individual e (iii) contemplação constitucional. [11]

A danosidade social pressupõe o resgate da noção de bem jurídico do mundo abstrato e axiológico, mediante sua integração na realidade social; consiste na capacidade de uma lesão a determinado bem da vida em promover desorganização na sociedade[12]. A referência central ao indivíduo é elemento que se acrescenta como parâmetro para aferição do potencial de produção de danos sociais, na medida em que uma sociedade livre e democrática representa uma conquista evolutiva, cujo pressuposto é assegurar a expectativa de que as liberdades individuais violadas sejam penalmente reprimidas. Por fim, a necessidade de consagração, direta ou indireta, na Constituição Federal é decorrência da eficácia limitadora dos bens jurídico-penais e fundamenta-se na ideia de que só um consenso de nível constitucional pode justificar a aplicação de uma pena intensa sobre um indivíduo que frustre determinada expectativa normativa.

Nesse sentido, bens jurídico-penais podem ser definidos como os bens da vida necessários para o livre desenvolvimento do indivíduo no contexto social, cuja matriz deve estar de alguma forma consagrada na Constituição Federal. A toda conduta tipificada como crime deve corresponder a remissão a um bem jurídico, não há tipo penal legítimo sem vinculação a um bem jurídico.

Conforme sintetiza, Jesús-María Silva Sánchez,

De ahí que quizá se alo mejor el integrar em uma sola ideal os aspectos de «referencia individual» y de «dañosidad social», afirmando que el objeto de protección jurídico-penal necessariamente debe expressar las condiciones que hacen posible um libre desarrollo del individuo a través de su participación em la vida social. (...) La exigencia de uma consagración constitucional, directa o indirecta, de los bienes penalmente protegibles me parece, pues, plenamente justificada. [13]

Do dever de proteção exclusiva de bens jurídicos decorre a base principiológica do direito penal e da política criminal, assim considerada a parte do sistema político que cuida da gestão e sistematização das estratégias, táticas e meios de controle social da criminalidade ― incumbindo-se de transformar a experiência criminológica em opções e estratégias concretas de controle criminal, orientando o direito penal na estabilização de expectativas normativas. [14]

De um lado, o sistema jurídico-penal é orientado pelos princípios da ofensividade (ou lesividade), insignificância e adequação social ― que em linhas gerais podem ser sintetizados na exigência de uma lesão efetiva e não consentida ao bem jurídico cuja expectativa encontra-se normatizada no tipo penal ―; de outro, o legislador em matéria criminal deve se orientar pela fragmentariedade e subsidiariedade do ordenamento jurídico-penal, levando em conta a tradicional assertiva de que o direito penal é a última ratio (intervenção mínima) ao normatizar as expectativas relacionadas à proteção dos bens jurídicos.

A tese que ora se apresenta: a ideia de bens jurídico-penais como reação à diferenciação entre direito penal e política criminal e à consequente necessidade de uma religação entre ambos os subsistemas, consubstanciando-se numa estrutura de legitimação do primeiro e num mecanismo de limitação do segundo ― desempenhando a função de acoplamento estrutural. [15]

Uma vez ressaltada a importância e repercussão do objeto do presente estudo e fincadas as âncoras no conceito de bem jurídico-penal que se entende por mais adequado, é possível passar ao exame das premissas que logicamente antecedem à abordagem da temática central. A proposta metodológica, como já se deixou transparecer, é pela teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, afastando-se porém da concepção reducionista de Günther Jakobs, a quem aparentemente sem razão tem se atribuído a transposição das ideias luhmannianas ao direito penal sob a forma do funcionalismo sistêmico.[16]

2.

O ponto de partida da teoria luhmanniana para a compreensão da sociedade é a diferenciação entre sistema e ambiente. Rompendo com o paradigma humanista, a sociedade na visão de Niklas Luhmann é um grande sistema composto por todas as formas de comunicação; os homens, enquanto sistemas psíquicos e orgânicos, são o ambiente dessa sociedade. De fato, uma leitura apressada dessa constatação poderia vinculá-la a uma forma de desvalorização do homem perante a sociedade. Todavia, registre-se desde logo que as conclusões são diametralmente opostas: Luhmann considera o ambiente sempre mais complexo do que o sistema e, ao desvincular a sociedade (sistema) do homem (ambiente), confere maior importância ao indivíduo na medida em que o liberta. Se o sistema não pode determinar o ambiente, não é a sociedade que poderá determinar o indivíduo ― valorizando sua liberdade, autonomia e reconhecendo sua imprevisibilidade. [17]

Pois bem, o homem é o ambiente do qual a sociedade é o sistema. Tal sistema social é funcionalmente diferenciado em diversos subsistemas, tais o direito, a política e a economia; cada subsistema possui seu próprio código, operação, programa e função, o que possibilita que funcionem simultaneamente.

São sistemas autopoieticos, que se autorreproduzem, operacionalmente fechados e cognitivamente abertos: cada subsistema social é diferenciado funcionalmente, possuindo um código próprio para reprodução de suas operações que lhe confere unidade e fechamento operacional; mas, paradoxalmente, esse fechamento operativo no processamento de suas operações é condição para sua abertura cognitiva às referências do ambiente e dos demais (sub)sistemas.

Essa ideia é central para a compreensão da função desempenhada pelos bens jurídicos no âmbito do direito penal e da política criminal. O fato de subsistemas sociais diferenciados funcionalmente operarem de maneira fechada, processando internamente suas operações com um código próprio e exclusivo, é condição para que cognitivamente estabeleça conexão a referências externas, reagindo de acordo com sua frequência interna.

Assim é que política(-criminal) e direito(-penal) devem ser analisados como subsistemas da sociedade. Se a sociedade tem como operação a comunicação, os dois sistemas são constituídos pela parcela própria de comunicação que lhes determina o seu código, de modo que ambos são partes distintas, mas inseparáveis, do sistema social. Inseparáveis, pois partes de um todo que lhes confere unidade e interdependência em níveis diferentes; distintas, porque produzem suas próprias estruturas, operações e fronteiras.

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Em linhas gerais, o sistema político opera mediante o código governo/oposição, sendo a produção legislativa um programa dirigido a um fim, de acordo com uma lógica de inclusão generalizada. Já o sistema jurídico opera de acordo com o código conforme/não conforme o direito, sendo o programa normativo essencialmente condicional. A decisão do legislador é programante e a decisão judicial é programada; comunicações referentes ao código governo/oposição são políticas, as que dizem respeito ao código direito/não direito são jurídicas.

Assim é que se pode afirmar ser a função da política a tomada de decisões coletivamente vinculantes, materializadas em programas legislativos e mediante o código governo/oposição, que atua por mecanismos tais as eleições políticas. O centro de diferenciação organizativa do sistema político é o Estado, enquanto no sistema jurídico o lugar é ocupado pelos Tribunais.

A função do direito, por sua vez e no contexto da teoria luhmanianna dos sistemas, é a generalização congruente de expectativas normativas.

3.

Diversas foram as funções atribuídas ao fenômeno do direito pelas tantas teorias que se propuseram a tratar do assunto. Das perspectivas mais idealistas até a proposta aparentemente tímida de Niklas Luhmann, pode-se identificar um leque de funções que ao direito foram incorporadas segundo as correntes dominantes de pensamento que se sucederam ao longo do tempo.

Ilustrativamente, é de se destacar a teoria de Norberto Bobbio segundo a qual cumpriria ao direito uma função quádrupla. De um lado, teria o direito uma função repressiva e preventiva ― na medida em que comina sanções às ações socialmente indesejáveis, coibindo violações (a posteriori) e resguardando (a priori) os interesses eleitos normativamente. De outra parte, ao direito não cumpriria apenas a missão de impedir atos socialmente indesejáveis, mas teria uma função promocional e premial ― recompensando (a posteriori) e incentivando (a priori) a realização de atos socialmente desejáveis. [18]

Não se pretende negar as demais visões, tampouco desqualifica-las. Ao contrário, convém registrar a complementariedade de todas as concepções doutrinárias sobre o tema. Na esteira do pensamento de Celso Fernandes Campilongo, não se há de negar que,

como afirma o próprio Luhmann em diferentes trabalhos, a teoria dos sistemas talvez tenha a capacidade de observar coisas que outras teorias não vêem. A recíproca é verdadeira. De outros prismas teóricos também será possível visualizar e descrever coisas que, provavelmente, não são realçadas pela teoria dos sistemas. Não há, portanto, nenhuma pretensão hegemônica na opção aqui realizada ou, ainda menos, de desqualificação de outras propostas. [19]

Pretende-se fixar em linhas gerais o conceito de função do direito resultante da teoria luhmanniana e anotar uma crítica, ainda pouco explorada, ao desvirtuamento em que Günther Jakobs incorre ao importar a metodologia de Niklas Luhmann para explicar a dogmática penal.

De forma coerente com sua proposta metodológica, Luhmann afirma que o problema que se afigura diante do descortinamento de uma função do direito só pode ser solucionado em relação ao sistema maior que é a sociedade. Para tanto, seria necessário identificar qual problema da sociedade se resolve mediante o processo de diferenciação de normas especificamente jurídicas e de um determinado ordenamento. [20]

A resposta a essa questão residiria no fato de o direito solucionar um problema temporal referente à comunicação social, consistente em identificar e assegurar determinadas expectativas em relação à contingência do futuro.

Naturalmente, não são descartadas funções outras que o direito acaba por assumir no exercício de estabilização das expectativas normativas ao longo do tempo. Todavia, fossem identificadas todas as funções eventualmente incorporadas e tal pluralidade levaria a uma ambiguidade na delimitação do direito, pois ‘cuando se trata del processo de diferenciación de um sistema social, sólo la suposición de uma única función conduce a alcances inequívocos’. [21]

A função que faz com que o direito se diferencie dos demais (sub)sistemas sociais é a ‘generalização congruente de expectativas normativas’. O conceito merece uma análise pontual, ainda que a delimitação do tema estreite qualquer possibilidade de aprofundamento.

Por ‘generalização’ pretende-se estabelecer que o critério para a compreensão do sistema jurídico não pode ser individual ou subjetivo, ocorrendo independentemente de eventos individuais. O termo ‘congruente’ refere-se à generalização da estabilidade do sistema em três dimensões: (i) temporal, tratando as desilusões e fruto da positivação; (ii) social, atuando em prol da legitimidade e de um mínimo de consenso, tratada pela institucionalização de procedimentos; e (iii) material, em busca de coerência e integralidade, obtida pelo tipo de programação comunicativa do direito material que fixa o sentido da generalização. Já as ‘expectativas normativas’ são aquelas que oferecem possibilidades de reação em caso de frustração; ao contrário das expectativas cognitivas, às quais se renuncia em caso de decepção. É dizer que normativas são as expectativas que ‘resistem aos fatos, não se adaptam às frustrações ou, na linguagem de Luhmann, não estão dispostas à aprendizagem’. [22]

Assim, considerada a imprevisibilidade ante o futuro e inserido num sistema social que se materializa numa rede operacional de comunicação, o direito ― embora não seja instrumento hábil a assegurar um determinado comportamento, pois uma norma jurídica pressupõe essencialmente a possibilidade de descumprimento ― tem como função identificar as expectativas que possuem respaldo social, estabilizando-as inclusive contra os fatos ao garantir a possibilidade de reação em caso de frustração.

Embora numa primeira análise pudesse parecer tímida a função atribuída ao direito pela teoria luhmanianna, ao se busca o traço individualizador da diferenciação de um sistema social específico está se enaltecendo a contribuição que esse (e apenas esse) sistema pode oferecer, uma vez conformado aos seus limites operacionais.

Não é demais repisar que individualizar o direito pela função que o diferencia dos demais sistemas sociais não significa fechar os olhos para as contribuições que o direito pode oferecer. Niklas Luhmann insiste nesse ponto ao ressaltar a diferença entre função e contribuição[23] que o direito proporciona: a função de estabilizar as expectativas com a certeza normativa é o que diferencia o direito como sistema social, não obstante possam ser identificadas diversas contribuições sociais também proporcionadas pelo direito.

O que faz com que sejam contribuições e não diretamente sua função é a exclusividade dessa e a existência de equivalentes funcionais para aquela, pois ‘la diferencia entre función y prestación está, por conseguiente, em el radio de acción de las equivalentes funcionales’. [24]

As principais contribuições do direito segundo a teoria luhmanniana são (i) a orientação das condutas socialmente desejadas e (ii) a solução de conflitos. Em momento algum se verifica a negação de que o sistema jurídico desempenhe essas tarefas ou o desprezo por tais contribuições; todavia, por haver equivalentes funcionais que propiciam respostas extrajurídicas para ambos, o direito não pode ser individualizado em sua diferenciação sistêmica por tais referências. O sistema jurídico obviamente cumpre essas tarefas, embora não sejam elas a possibilitar a delimitação operacional necessária ao funcionamento regular dos sistemas.

A estruturação de bens jurídicos também oferece contribuições, já ressaltadas: tais a despenalização de condutas puramente ideológicas, imorais ou contra os interesses políticos dominantes, sem danosidade social e a identificação precisa das características específicas do objeto de proteção do direito penal.

Estabelecer as fronteiras de cada sistema, atuantes com seu próprio código e por suas próprias estruturas, possibilita a diferenciação funcional e a demonstração de que a mútua dependência entre os sistemas sociais pressupõe que sejam sistemas diversos. Ilustrativamente, a normatividade diferencia o sistema jurídico do sistema político: embora sejam mutuamente dependentes ― a política fundamentando seu poder no direito, que por sua vez se estabiliza como técnica imperativa utilizando-se de mecanismos de execução da política ― cada (sub)sistema opera com seu próprio código, por suas próprias estruturas e no interior de suas próprias fronteiras.

A função do direito segundo a teoria luhmanniana não parece ter sido bem compreendida por Günther Jakobs. Embora se diga que o autor seja responsável pela importação da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann para o direito penal[25], sua proposta é irremediavelmente reducionista quando comparada às ideias ora expostas.

Segundo a teoria de Günther Jakobs, ‘el Derecho penal tiene por misión garantizar la identidade de la sociedad’ [26] ou, melhor explicando em outra obra, ‘el derecho penal garatiza la vigência de la norma, no la protección de bienes jurídicos’. [27] Nota-se a preocupação do jurista em desvincular a função do direito penal da proteção de bens jurídicos; todavia, afasta-se também da teoria luhmanniana ao reduzir a função do direito penal à garantia de vigência da norma, adotando uma concepção tanto mais positivista do que funcionalista. [28]

Convém destacar que o próprio Niklas Luhmann refuta expressamente a possibilidade de identificação entre estabilização das expectativas normativas no tempo e garantia de vigência da norma, já que “la referência temporal del derecho no se se encunetra, pues, ni la vigencia de las normas (que se dividen em variables e invariables), ni em la historicidade inmanete del derecho[29]

4.

Não é demais repetir que a teoria luhmanniana adota sociedade como sinônimo de comunicação, desde as primeiras formas de civilização até os dias de hoje. O que as distingue ao longo do tempo é a evolução do processo comunicativo, não como sinônimo de desenvolvimento ou progresso, mas resultante de um aumento das oportunidades comunicacionais.

A ampliação do processo de comunicação não é pré-determinado, controlável ou planejado; é, antes, fruto da confluência de inúmeros eventos e escolhas que poderiam ter resultado em tantas outras possibilidades de realização quantas forem as oportunidades imagináveis para a ocasião. O futuro é essencialmente contingente e incontrolável, não pode ser conhecido de véspera.

Ensina Raffaele de Giorgi que a única coisa que sabemos do futuro é que não repetirá o passado, pois o passado não se apresenta novamente e aquilo que volta a ser é sempre e de qualquer modo diverso. Portanto, a única possibilidade em relação ao futuro é ‘decidir, vale dizer, arriscar’. [30]

Considerando o aumento crescente e contínuo das possibilidades de comunicação e a imprevisibilidade natural do futuro, durante o processo de decisão (ou, nas palavras de Raffaele de Giorgi, de se arriscar) devem ser fixados critérios que produzam e selecionem eventos. Os resultados obtidos proporcionam uma redução do universo de comunicações possíveis, ao que se denomina de redução da complexidade. Mas é essa redução pontual o que, paradoxalmente, permite a sociedade se reproduzir e expandir a sua complexidade. [31]

A partir da teoria luhmanninana, a comunicação se constitui de forma paradoxal, é dizer, os paradoxos são constitutivos da sociedade. Os sistemas diferenciados funcionalmente operam mediante códigos comunicativos paradoxais: tais governo/oposição (política), ter/não ter (economia), conforme/não conforme ao direito (direito). Assim, ‘o sistema é a unidade dessa diferença, construída e fechada pelas operações comunicativas assentadas nesse código’. [32]

Em outros termos, a unidade que constitui o sistema jurídico é sempre paradoxal: o sistema é composto por duas faces, uma indicada e outra subentendida. Os paradoxos são circularidades que, não sendo desenvolvidos, bloqueiam as operações do sistema a que dão forma. São ocultados pela introdução de uma distinção, que no sistema jurídico-penal se materializa no binômio direito/crime.

Assim é que, conforme a base da observação se encontre de um ou outro lado, podem ser construídas teorias das mais variadas natureza seja a respeito do crime, quer sobre o direito penal:

“pode-se justificar, assim, tanto a pena de morte ― uma macabra incivilidade ―, como sua abolição; pode-se inventar o zero tolerante, ou mesmo, como na Itália, pode-se encher os cárceres de extracomunitários; podem-se inventar princípios constitucionais do justo processo ou justificar o inferno processual de Guantánamo”. [33]

Visando à manutenção das expectativas normativas, toda comunicação deve fixar no tempo o sentido dos signos comunicacionais para que se desenvolvam as futuras comunicações. Trata-se essa fixação de sentido do que a teoria dos sistemas chama de semântica, vale dizer, o estabelecimento da correspondência entre significante e significado para o uso destinado a repetições futuras: o sentido das palavras, dos conceitos e das afirmações verdadeiras. [34]

Transportando o raciocínio para o direito penal, na construção de uma semântica que viabilize a produção de sentido e a construção e evolução da sociedade, a oscilação da observação entre direito e crime produz autovalores. Tal oscilação opera como função recursiva, que se aplica a si mesmo, tornando os autovalores entidades que possuem existência própria, sujeitas a observações filosóficas, jurídicas, sociológicas, políticas etc.; adquirem características ontológicas, são universalizados e tornam-se realidade. Esses autovalores são chamados de bens jurídicos (pelo direito) e de desvio (pelo crime). [35]

Nesse cenário, os bens jurídico-penais afiguram-se como estruturas que atuam com uma função específica em cada um dos sistemas sociais diferenciados: direito penal e política criminal; de forma paradoxal, possibilitam (internamente) e limitam (externamente) a influência recíproca. Compõem o ponto de intersecção entre os dois sistemas, constituindo e simultaneamente tornando invisível o acoplamento estrutural entre ambos. [36]

5.

A legitimidade do sistema jurídico está intimamente ligada ao exercício de sua função. Se na sociedade diferenciou-se um sistema cuja função é a estabilização de determinadas expectativas sociais, tal sistema existirá legitimamente sempre que se oriente ao desempenho de sua função. Especificamente ao direito penal cabe operar com expectativas referentes à danosidade social, pois é o ramo do direito que essencialmente cuida da cominação das sanções mais gravosas.

O sistema jurídico penal não apenas estabiliza expectativas que se dirigem aos indivíduos de uma sociedade, mas também deve cuidar das expectativas que se dirigem ao próprio sistema e cuja violação é igualmente perturbadora. Parece, como já ressaltado em linhas anteriores, que Günther Jakobs despreza esse segundo aspecto ao identificar a função do direito penal tão somente como a garantia de vigência das normas.

Para o cumprimento dessa expectativa dirigida ao próprio sistema, o direito penal se utiliza de estruturas de legitimidade, por meio das quais da coerência e limita suas operações. Tais estruturas são mecanismos de orientação que possibilitam distinguir se o direito penal está agindo nos limites que sua função autoriza, materializando-se num critério de aferição de sua legitimidade.

Essas estruturas sociais estão intimamente ligadas à noção de expectativa e não são resultados de um planejamento, mas simplesmente se diferenciam evolutivamente, otimizando a operação própria do sistema ‘de modo de no ter que perguntarse nuvamente caules son todas sus possibilidades de operación, Em otros términos, la formación de estructuras permite que el sistema dé por sentadas determinadas reacciones sin necesidad de grandes perdidas de energia’.[37]

Assim é que, embora não se possa dizer que o direito penal tenha como função a proteção de bens jurídicos ― uma vez que, insista-se, ao direito em si não é reconhecida a missão de proteger quaisquer bens sociais; mas, antes, de estabilizar expectativas sociais normativamente ao longo do tempo ―, a ideia de proteção exclusiva de bens jurídicos materializa-se numa estrutura que desempenha a função de permitir que o sistema jurídico penal encadeie comunicações legitimamente.

Nesse sentido,

cada vez que una sentencia limita la intervención puitiva em consideración al bien jurídico protegido, la estrutura «bien jurídic» está cumpliendo su función, (...) [pois] es uma estrutura que se actualiza em determinadas operaciones del sistema y que limita su intervención.

Sistema legítimo é sinônimo de sistema cuja operação coincide com o cumprimento de sua função, de modo que a generalização congruente de expectativas normativas está diretamente vinculada à proteção exclusiva dos bens jurídicos mais valiosos à sociedade. Um sistema jurídico-penal incapaz de oferecer certezas mínimas para a vida em sociedade é um sistema inútil e que desproporcionalmente dispõe das sanções mais gravosas, desprendendo-se de sua utilidade social e tornando-se ilegítimo.

6.

A história do direito penal confunde-se com a própria história da humanidade. Surge com o homem e acompanha-o através do tempo, pois ‘o crime, qual sombra sinistra, nunca dele se afastou’.   É instintiva a reação humana contra agressões sofridas, ainda que de início não houvesse preocupação com a proporcionalidade ou mesmo com a justiça. [38]

Tradicionalmente são contempladas algumas fases históricas, de acordo com a natureza da pena cominada aos transgressores das normas sociais de natureza penal. Inicialmente foi o tempo da vingança privada, semelhante ao que ocorre nas espécies animais, de modo puramente pessoal e sem intervenção de terceiros. Num segundo momento, passou-se à vingança divina, mediante a existência de um poder religiosamente justificado de impor normas de conduta e castigo aos homens. Sucede a esse período a etapa da vingança pública, momento que corresponde à ascensão da figura de um Estado que se propõe a garantir a ordem social mediante a cominação de penas cruéis às infrações que atentassem contra a segurança das classes dominantes.

Aos idos da Idade Média, prosperava como regra a vingança pública no direito ocidental. O soberano concentrava as funções públicas e arbitrariamente impunha penas desumanas, no contexto do absolutismo monárquico.

O iluminismo do século XVIII conduz a uma mudança de paradigma, que inevitavelmente repercutiria em todo sistema social. Mediante o predomínio da razão e da valorização do ser humano, verifica-se a tendência de uma diferenciação sistêmica entre política e direito (por conseguinte, entre política criminal e direito penal), funções anteriormente concentradas na figura de um soberano.

Assim, com a individualização das funções legislativas e jurisdicionais em matéria penal exsurge a necessidade de uma religação entre os sistemas: papel ocupado pela ideia de bens jurídicos.

Em sua tradicional obra que inaugura o período humanitário do direito penal, Cesare Bonesana, exalta a necessidade de se observar a proporcionalidade na cominação das penas às condutas criminosas, atentando para o fato de que tanto mais grave deverá ser a sanção quanto mais tendente à destruição da sociedade for a conduta praticada: eis o gérmen da ideia de proteção exclusiva de bens jurídicos reservada ao direito penal e à política criminal.

Em suas palavras, competiria ao legislador ‘ser um habilidoso arquiteto, que saiba igualmente utilizar todas as forças que podem colaborar para firmar o edifício e debilitar todas as que possam arruiná-lo’. [39] É curioso comparar a referência que Cesare Bonesana faz à construção de um edifício, remetendo ao que ora se afirma tratar-se do acoplamento estrutural entre direito penal e política criminal (bem jurídico), com o que Niklas Luhmann diria séculos após sobre o acoplamento estrutural mais geral, entre direito e política (Constituição): ‘a invenção da Constituição, e que de todo modo a ela se coligam fragmentos de tradição, é a chave de retorno desse edifício. E a partir daí é reorganizado o material estrutural estrutural e semântico disponível naquele momento.[40]

7.

A evolução do direito é compreendida pela teoria dos sistemas com fundamento na metodologia utilizada por Charles Darwin para explicar a evolução das espécies, sendo considerada uma teoria geral da evolução que pode ser aplicada nos mais diversos campos. Niklas Luhmann optou pela teoria darwiniana por partir de um conceito teórico da diferença, coerentemente com as bases em que se sustenta a sua teoria dos sistemas. [41]

O mecanismo de evolução do direito parte de um tríplice mecanismo: variação, seleção e estabilização. A variação corresponde à multiplicação de expectativas normativas conflitantes, a seleção consiste no processo de decisão das expectativas admitidas no sistema e a estabilização se dá mediante a regulamentação e programação condicional das expectativas normativas válidas.

Com o termo ‘evolução’ não se pretende significar progresso ou melhora, mas o aumento da complexidade ― não de forma contínua e ininterrupta, mas um modo de alteração estrutural compatível com transformações bruscas e largos períodos de estancamento. Variação, seleção e estabilização de decisões atuam perante o sistema jurídico, num processo de contínua circulação das possibilidades e alternativas de escolha, operando autonomamente e com base em suas próprias estruturas, de modo a reduzir e manter sua complexidade.

Ante essas considerações, afigura-se o incremento de complexidade alcançado com a separação e a conexão entre sistema político(-criminal) e sistema jurídico(-penal). Em outros termos: a inovação da ideia de proteção de bens jurídicos torna possível, a um só tempo, uma solução jurídica para o problema da autorreferenciabilidade do sistema político e uma solução política para o problema da referenciabilidade do sistema jurídico. Possibilita-se a conexão de referências externas através de operações internas: o direito assegurando expectativas concretamente, a política decidindo de forma vinculante coletivamente.

A partir do momento que o sistema político-criminal resolve os problemas de sua própria referenciabilidade com a remissão aos bens jurídicos, emprega consequentemente o direito penal. Esse emprego do direito só é viável, todavia, porque os sistemas não são congruentes, não se sobrepõem nem mesmo em uma medida mínima, mas, ao contrário, o sistema político pode se servir do sistema jurídico mediante heterorreferenciabilidade e, portanto, mediante o recurso a um outro sistema funcional:

“A relação entre o sistema político e o jurídico assemelha-se mais com a das bolas de bilhar que, apesar da contínua freqüência com que se entrechocam, cada uma continua a percorrer o seu caminho separado, do que com a de gêmeos siameses somente capazes de se moverem conjuntamente.” [42]

Tendo em vista a dependência dos dois sistemas em face da legislação positiva (destacando-se o princípio da estrita legalidade, que assume protagonismo no campo do direito penal), do aparato coercitivo e da questão criminal, é muito difícil perceber nitidamente a distinção entre política criminal e direito penal. Todavia, são ambos sistemas fechados, autopoieticos e estruturalmente acoplados. Uma operação puramente política nunca terá relevância jurídica se não for dotada dessa qualificação pelo sistema jurídico, e vice-versa. Ilustrativamente, pensemos num ordenamento que tenha descriminalizado o uso de determinada droga sem a consequente descriminalização do tráfico da mesma substância; ora, é imprescindível uma operação político-criminal que venha a tratar do uso dessa droga com vistas ao combate do tráfico, que circunstancialmente não será dotada de qualificação jurídico-penal.

A diferenciação funcional entre política criminal e direito penal não pode ser controlada nem por uma parte, nem pela outra. Todas as distinções especificamente jurídicas pressupõem um sistema que opere com esse acoplamento na qualidade de operador, como elemento de distinção, como contexto autopoietico de comunicação presente na sociedade. [43]

A atuação dos acoplamentos estruturais é precisamente sintetizada por Celso Fernandes Campilongo:

“Por meio desse acoplamento é possível oferecer ao sistema um contínuo influxo de desordem contra a qual ou o sistema mantém-se ou se modifica. Internamente aos sistemas parciais, o acoplamento admite ‘irritações’ (reação interior das estruturas do sistema a partir de seu modo particular de observar o ambiente). Desde a perspectiva externa, o sistema mantém-se indiferente ao ambiente. Modificações no sistema político podem ser captadas pelo sistema jurídico a partir dos respectivos acoplamentos estruturais. Porém, o sistema parcial percebe, reage e processa esses estímulos em conformidade com seu código e seus programas de operação, ou seja, em condições de fechamento operacional”.[44]

Os acoplamentos estruturais são aquisições evolutivas, de modo que sua formação não pode ser atribuída a causas específicas. Ilustrativamente, Niklas Luhmann identifica o mesmo processo para o acoplamento estrutural entre consciência e comunicação por meio da linguagem, para o acoplamento estrutural entre o sistema educativo e o econômico mediante os diplomas, bem como para o acoplamento estrutural entre o sistema de saúde e o econômico por intermédio dos atestados médicos e de inumeráveis outros casos em uma sociedade em alto desenvolvimento. [45]

A proteção exclusiva de bens jurídicos é fruto de um desenvolvimento evolutivo, uma aquisição evolutiva que nenhuma intenção pode apreender com precisão. Após a diferenciação do sistema social haver colocado novas exigências sociais à autodescrição tautológico-paradoxal dos sistemas funcionais e suscitado as correspondentes perturbações, a ideia de bem jurídico é a pedra angular para a reorganização do material estrutural estrutural e semântico na questão da criminaidade.

O direito penal individualiza as formas capazes de levá-lo em conta reduzindo a si próprio, mediante a legislação penal. A política criminal, ao se orientar pelo sucesso de sua ação no controle da criminalidade, também não pode renunciar ao arsenal oferecido pelo direito penal.

Os paradoxos e tautologias do direito penal (p ex. é crime pq está na lei) podem ser explicados por referência ao sistema político-criminal (p. ex: vontade do povo, estatísticas, plebiscitos do desarmamento). Os paradoxos e tautologias do sistema político-criminal (p. ex. o poder legislativo está limitado a regular as tipificações de condutas como criminosas que ele próprio cria) podem ser explicados por referência ao direito penal (p. ex, o princípio da estrita legalidade em matéria penal).

Diferente não é a lição de Santiago Mir Puig, para quem a expressão bem jurídico pode assumir um «sentido político-criminal» ou um «sentido dogmático».[46] A estrutura do bem jurídico-penal cumpre o papel de incluir e excluir perturbações recíprocas nas operações político-criminais e jurídico-penais, propiciando a autolimitação e a aferição de legitimidade de ambos. Todavia, cada um dos sistemas opera de modo não transcendente no plano das operações internas (direito produz direito e política produza política) e como um sistema autotranscendente no plano de suas observações. [47]

Sobre o autor
Fernando Hideo Iochida Lacerda

Advogado Criminal e Professor de Direito Penal e Processual Penal em curso de graduação e pós-graduação. Doutorando em Direito Processual Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Mestre em Direito Processual Penal pela mesma instituição (2013). Bacharel em Direito com título de menção honrosa, também pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2010), cursou Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na Universidade de São Paulo (2008). É professor nos cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Cogeae, da Escola Paulista de Direito e da Universidade Nove de Julho. Professor da cadeira de direito processual penal no curso de graduação em Direito da Escola Paulista de Direito e da Universidade de Mogi das Cruzes (2014). Fez estágio no Ministério Público do Estado de São Paulo (2008-2010). É membro do conselho editorial do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal, atuando especialmente na sub-área de Direito Penal Econômico.

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Texto elaborado durante o Doutorado em Processo Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Não consigo acessar meu perfil, onde publiquei dois outros textos: http://jus.com.br/954733-fernando-hideo-iochida-lacerda/publicacoes

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