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A improbidade administrativa e sua sistematização

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Agenda 27/09/2003 às 00:00

Sumário: Proêmio.; I. Dos Princípios Regentes da Probidade. 1. Introdução. 2. Princípio da Legalidade. 3. Princípio da Moralidade. 4. Princípio da Proporcionalidade.; II. Dos Atos de Improbidade. 5. Introdução. 6. Atos Administrativos. 7.Atos Legislativos. 8. Atos Jurisdicionais. 9. Da Casuística.; III. Das Sanções. 10. Das Sanções em Espécie. 11. Natureza Jurídica. 12. Dosimetria.; IV. Síntese Conclusiva ; Referências Bibliográficas


PROÊMIO

Ainda hoje, em muitos rincões de nosso País, são encontrados administradores públicos cujas ações em muito se assemelham às de Nabucodosonor, filho de Nabopolassar e que assumiu o Império Babilônico em 624 AC. Este, buscando satisfazer sua Rainha Meda, saudosa das colinas e florestas de sua pátria, providenciou a construção de estupendos jardins suspensos, tendo tal excentricidade consumido anos de labor e gastos incalculáveis, culminando em erigir uma das sete maravilhas do mundo antigo. Tal "maravilha", de flagrante inutilidade, apresenta grande similitude com os devaneios atuais, onde o dinheiro público é consumido com atos de motivação fútil e imoral; finalidade dissociada do interesse público; e em total afronta à razoabilidade administrativa, havendo flagrante desproporção entre o numerário dispendido e o benefício auferido pela coletividade, qual seja, nenhum. O administrador, tal qual o mandatário, não é o senhor dos bens que administra; assim, cabe-lhe tão somente praticar os atos de gestão que beneficiem o verdadeiro titular, o povo. Em um País onde a corrupção encontra-se arraigada, caracterizando-se como verdadeira chaga social, afigura-se sempre oportuna a tentativa de sistematização dos princípios que delineiam o obrar do agente probo. Aperfeiçoado o estudo e identificada a origem, melhores resultados serão auferidos na coibição da improbidade. O presente ensaio visa a identificar os atos de improbidade a partir da violação dos princípios regentes da atividade dos agentes públicos, relegando a casuística da Lei 8.429/92 a plano secundário. Ulteriormente, a improbidade é analisada sob a ótica dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais, já que todos os agentes públicos devem estrita obediência aos princípios norteadores do Estado Social de Direito. Por derradeiro, são tecidas considerações a respeito das sanções passíveis de aplicação aos ímprobos, em especial os critérios utilizados para a identificação da dosimetria adequada. Ante a extensão e a importância da matéria, estas breves linhas almejam despertar a atenção para algumas faces do tema ainda não examinadas pela doutrina. Espera-se, ao final, que o Ministério Público continue a cumprir, com afinco e perseverança, seu papel de defensor dos princípios basilares do Estado de Direito, atuando como algoz incansável das injustiças sociais.


I. DOS PRINCÍPIOS REGENTES DA PROBIDADE

1. INTRODUÇÃO.

A identificação dos princípios que compõem o alicerce de determinado sistema jurídico é normalmente realizada a partir de um processo indutivo, em que a análise de preceptivos específicos permite a densificação dos princípios gerais que os informam. Assim, parte-se do particular para o geral, com a conseqüente formação de círculos concêntricos - em nítida progressão dos graus de generalidade e abstração – que conduzirão à identificação da esfera principiológica em que encontram-se inseridos os institutos e, no grau máximo de generalidade, o próprio sistema jurídico. De acordo com Giorgio Del Vecchio [1], a própria compreensão das regras específicas encontra-se condicionada à identificação e análise dos princípios extraídos do sistema em que encontram-se inseridas, o que garantirá a harmonia entre este e as partes que o integram.

A partir do método de generalização crescente referido no parágrafo anterior, o aplicador do direito será conduzido à identificação dos princípios específicos norteadores de determinado instituto; àqueles que informam certo ramo da ciência jurídica; e, ulteriormente, aos princípios que alicerçam o sistema jurídico em sua integridade. No caso específico do Direito Administrativo, objeto específico deste escrito, afora os princípios que defluem do sistema, preocupou-se o Constituinte em estatuir, de forma específica, aqueles que deveriam ser necessariamente observados pelos agentes públicos. Nesta linha, dispõe o art. 37, caput, da CR/88: "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência e, também, ao seguinte:... " Como se constata pela leitura do texto constitucional, os princípios elencados no art. 37 devem ser observados pelos agentes de todos os Poderes [2], não estando sua aplicação adstrita ao Poder Executivo, o qual desempenha funções de natureza eminentemente administrativa. Tratando-se de norma de observância obrigatória por todos os agentes públicos, seu descumprimento importará em flagrante infração aos deveres do cargo, sendo indício consubstanciador do ato de improbidade. Note-se que a letra do art. 37, § 4º, da CR/88, a qual refere-se à improbidade administrativa, não tem o condão de adstringir as sanções que advém desta prática àqueles que exerçam atividades administrativas, culminando em manter incólumes os magistrados e os legisladores ímprobos. Como será oportunamente analisado, também estes devem apresentar retidão de caráter, decência e honestidade compatíveis com as atividades que exercem.

Não obstante o extenso rol de princípios, expressos ou implícitos, que norteiam a atividade do agente público, entendemos que merecem maior realce os princípios da legalidade e da moralidade. Aquele condensa os comandos normativos que traçam as diretrizes da atuação estatal; este aglutina as características do bom administrador, do agente probo cuja atividade encontra-se sempre direcionada à consecução do interesse comum. Da conjunção dos dois extrai-se o alicerce da probidade, a qual deflui da harmonia entre a atuação estatal e os princípios que a regem, fórmula refletida no denominado princípio da juridicidade. A partir dessa construção principiológica, constata-se que os demais princípios assumem caráter complementar, incidindo em um grau de especificidade que presta grande auxílio na verificação da observância dos dois vetores básicos da probidade.

À guisa de ilustração e em caráter meramente enunciativo, tecereremos breves considerações a respeito dos princípios complementares à legalidade e à moralidade. São eles: a) princípio da impessoalidade (art. 37, caput e § 1º, da CR/88) – o autor dos atos é o órgão ou entidade, e não a pessoa do agente (acepção ativa), sendo imperativo que os atos atinjam a todos que se encontrem na mesma situação fática ou jurídica, caracterizando a imparcialidade do agente (acepção passiva); b) princípio da publicidade [3] (art. 37, caput, da CR/88) – com exceção das hipóteses expressas em lei, todos os atos do Poder Público devem ser levados ao conhecimento externo, permitindo sua fiscalização pelo povo e pelos demais legitimados; c) princípio da eficiência (art. 37, caput, da CR/88) – o Poder Público deve buscar o bem comum utilizando-se de meios idôneos e adequados à consecução de tais objetivos, assegurando um padrão de qualidade em seus atos; d) princípio da supremacia do interesse público – trata-se de princípio implícito necessário ao convívio social, segundo o qual toda a atividade estatal deve atingir uma finalidade pública, o que faz com que o interesse público se sobreponha ao individual (v. arts. 5º, XXIII, XXIV e XXV; e 170, III, V e VI, da CR/88).

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2. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE.

Desde os primórdios da civilização estavam os componentes de determinado grupamento sujeitos a padrões de conduta, o que permitia a compatibilização dos diversos interesses existentes e caracterizava-se como fator indispensável à manutenção da agregação social. Referidas normas, inicialmente estabelecidas consensualmente pelos próprios componentes do grupamento, passaram a ser ulteriormente impostas por aquele que se elevou à categoria de autoridade superior aos demais. Tinha-se, assim, a autoridade real, a qual determinava, em termos absolutos, o padrão de conduta a ser seguido. Esta forma de exercício do poder conduzia à supremacia do interesse do soberano em detrimento dos interesses individuais dos membros da coletividade, o que pode ser constatado a partir da própria forma de elaboração normativa. Com o evolver dos tempos, o flagrante descompasso existente entre o papel desempenhado pelo detentor do poder e os anseios da coletividade a si subjugada sofreu diversas mutações. Estas tiveram como marcos significativos a Magna Carta inglesa de 1215, o Petition of Rights de 1628 e o Bill of Rights de 1689, atingindo o ápice com a Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, não olvidando-se a Constituição norte-americana de 1787. Tais diplomas consagraram a existência dos denominados direitos fundamentais, estabelecendo princípios de limitação e de separação dos poderes, o que culminou em erigir o princípio da legalidade como garantia dos direitos do homem, protegendo-o contra o absolutismo dos governantes. Como matizes do mesmo tom tem-se a liberdade e a igualdade, podendo o indivíduo fazer tudo o que ao próximo não prejudique e devendo a lei ser igual para todos, seja para proteger, seja para punir.

Estatuído o princípio da legalidade e sedimentada a concepção de que a existência do Estado se destina à consecução do bem-estar geral, tornou-se incontroverso que o princípio da autonomia da vontade é inaplicável aos atos dos agentes públicos. Na lição de Almiro do Couto e Silva [4], "a autonomia da vontade resulta da liberdade humana, que não é uma criação do direito, mas sim um dado natural, anterior a ele. O direito restringe e modela essa liberdade, para tornar possível sua coexistência com a liberdade dos outros. Sobra sempre, porém, uma larga faixa que resta intocada pelo Direito. A Administração Pública não tem essa liberdade. Sua liberdade é tão somente a que a lei lhe concede, quer se trate de Administração Pública sob regime de Direito Público, de Direito Privado ou de Direito Privado Administrativo." Estabelecida a norma de conduta pelo órgão competente, traduzindo-se a mesma como a vontade geral da coletividade [5], estão os detentores do poder público coarctados aos limites objetivos da mesma, sendo-lhes defeso, salvo expressa autorização legal, inserir elementos de ordem subjetiva em sua atuação.

Devendo o Estado submeter-se à ordem jurídica, todos os atos do Poder Público devem buscar seu fundamento de validade em norma superior. Os atos administrativos devem ser praticados com estrita observância dos pressupostos legais; a atividade legislativa somente produzirá comandos normativos válidos em havendo harmonia com a Constituição da República; e a atividade jurisdicional, não obstante o livre convencimento do julgador, deve manter-se adstrita às normas constitucionais e infraconstitucionais, sendo defesa a prolação de decisões dissonantes do sistema jurídico. Como consectário lógico do Estado Social de Direito, o princípio da legalidade [6] encontra previsão expressa no art. 37, caput, da CR/88, sendo cogente a observância do mesmo por parte da Administração Pública de qualquer dos Poderes. No direito privado é permitido aos particulares a prática de todos os atos que não lhes sejam por lei vedados; no direito público, porém, somente serão válidos os atos praticados em conformidade com a tipologia legal, sendo imprescindível a existência de norma autorizadora. Como regra geral, a lei garante ao particular a prerrogativa de praticar determinado ato, sendo ampla a possibilidade de valoração; para o agente público, ao revés, tem-se o dever de praticar o ato em estando presentes os substratos que o legitimam, mantendo-se sua liberdade adstrita aos lindes delimitados pelo legislador. A inobservância do princípio da legalidade acarreta a nulidade do ato [7], a qual pode ser perquirida através de ação popular (art. 2º, "c" e parágrafo único, "c" da Lei 4.717/65). Desta forma, a ilegalidade do ato apresenta-se como relevante indício da consubstanciação da improbidade, já que o agente inobservou o principal substrato legitimador de sua existência e norteador da atividade estatal.

3. PRINCÍPIO DA MORALIDADE.

O conceito de moral é eminentemente volátil, sendo norteado por critérios de ordem sociológica que variam consoante os costumes e os padrões de conduta delimitadores do alicerce ético de determinado grupamento. Moral, por conseguinte, é noção de natureza universal, apresentando conteúdo compatível com o tempo, o local e os mentores de sua concepção. Com o evolver das relações sociais e a paulatina harmonização dos interesses do grupamento, foi inevitável a formulação de conceitos abstratos, os quais condensam, de forma sintética, a experiência auferida com a convivência social, terminando por estabelecer concepções dotadas de certa estabilidade e com ampla aceitação entre todos. Assim, entende-se por moral o conjunto de valores comuns entre os membros da coletividade em determinada época; ou, sob uma ótica restritiva, o manancial de valores que informam o atuar do indivíduo, estabelecendo os deveres deste para consigo.

De acordo com a clássica concepção de Maurice Hauriou [8], plenamente difundida entre os juristas pátrios, a moralidade administrativa é distinta da moral comum, tratando-se de uma moral jurídica que é caracterizada como "o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração". Não é suficiente que o agente permaneça adstrito ao princípio da legalidade, sendo necessário que obedeça à ética administrativa, estabelecendo uma relação de adequação entre seu obrar e a consecução do interesse público [9]. Enquanto a moral comum direciona o homem em sua conduta externa, a moral administrativa o faz em sua conduta interna, de acordo com os princípios que regem a atividade administrativa. Marcel Waline [10] critica a posição de Hauriou, concluindo que a violação à moralidade administrativa permite sancionar as violações ao espírito da lei que respeitem a letra desta; mas, em verdade, a violação ao espírito da lei ainda é uma violação à lei, logo, o desvio de poder advindo de um ato imoral também é uma forma de ilegalidade. Em verdade, a imoralidade conduziria à ilegalidade, sendo absorvida por esta.

Expostas, em síntese, as concepções de Hauriou e Waline, cumpre estabelecer nosso entendimento a respeito do princípio da moralidade. Em um primeiro plano, cumpre dizer que não vislumbramos uma dicotomia absoluta entre a moral jurídica e a moral comum, sendo plenamente factível a presença de áreas de tangenciamento entre as mesmas, o que possibilitará a simultânea violação de ambas. Sob outra ótica, constata-se que os atos ilegais sempre importarão em violação à moralidade administrativa, concebida esta como o regramento extraído da disciplina interna da administração; no entanto, a recíproca não é verdadeira. Justifica-se, já que um ato poderá encontrar-se intrinsecamente em conformidade com a lei, mas apresentar-se informado por caracteres externos em dissonância com a moralidade administrativa, vale dizer, com os ditames de justiça, honestidade, lealdade e boa-fé que devem reger a atividade estatal. Ao valorar os elementos delineadores da moralidade administrativa, é defeso ao agente público direcionar seu obrar por critérios de ordem ideológica ou de estrita subjetividade; ao interpretar e aplicar a norma, deve o agente considerar os valores norteadores do sistema jurídico, ainda que os mesmos se apresentem dissonantes de sua visão pessoal. O princípio da moralidade administrativa, em que pese não ter tido previsão expressa na Carta de 1967, há muito encontra-se arraigado no ordenamento jurídico pátrio, sendo considerado princípio implícito regente da atuação administrativa [11]. Hodiernamente, o princípio tem previsão expressa no art. 37, caput, da CR/88, sendo requisito de legitimidade da atuação do agente e de validade do ato administrativo; logo, sua inobservância pode acarretar a anulação do ato por meio de ação popular (art. 5º, LXXIII, da CR/88) ou de ação civil pública (arts. 129, III, da CR/88 e 25, III, "b", da Lei 8.625/93).

Os atos administrativos devem apresentar plena adequação ao sistema normativo que os disciplina e ter sua finalidade sempre voltada à consecução do interesse público. Assim, a partir da presença de determinada situação fática, deve o agente público, nos limites de sua competência, praticar o ato administrativo que se adeqüe à hipótese. Esta adequação, por sua vez, deve ser demonstrada pelo mesmo com a exteriorização dos motivos que o levaram a praticar o ato, o qual deve necessariamente visar uma finalidade pública. Não obstante presentes os elementos do ato (competência, finalidade, forma, motivo e objeto) e a plena compatibilidade entre os mesmos e a lei, em muitos casos será vislumbrada a inadequação dos motivos declinados e da finalidade almejada com a realidade fática e o verdadeiro elemento volitivo do agente. Para que o ato praticado em consonância com a lei esteja em conformidade com a moralidade administrativa, é imprescindível que haja uma relação harmônica entre a situação fática, a intenção do agente e o ato praticado, sendo analisadas no contexto deste a motivação declinada e a finalidade almejada.

Para que seja identificada a real intenção do agente, a qual poderá revelar a verdadeira motivação do ato e o objetivo colimado com a sua prática, afigura-se impossível a penetração no psiquismo do mesmo, o que conduzirá à análise de tal elemento volitivo a partir da situação fática embasadora do ato e dos caracteres externos - ainda que não declinados - que venham a influir na sua prática. A intenção, assim, é indício aferidor da moralidade do ato, sendo também verificada a partir da compatibilidade entre a competência prevista na norma e a finalidade pretendida com a prática do ato. Na lição de Manoel de Oliveira Franco Sobrinho [12], "a qualidade moral de um ato não deixa de ser para o hermeneuta de fácil constatação. A leitura da norma em face do ato, a eficácia do ato conforme o fato, levam ao conhecimento das situações criadas e das relações estabelecidas. As distorções ficam evidentes. A intenção fica ou não fica clara. O ato afronta ou não à ordem jurídica." Quanto à situação fática, esclarece que "o fato imaginado, fantasioso, inventado, possivelmente criado, irrelevante para a sociedade, que não exterioriza acontecimento concreto, de gênese e fins políticos, estranho às formas aconselhadas pelo direito, tal fato só pode germinar reflexos não morais na ordem jurídica." [13] O ato formalmente adequado à lei, mas que vise, em sua gênese, prejudicar ou beneficiar a outrem, será moralmente ilegítimo, isto em virtude da dissonância existente entre a intenção do agente, a regra de competência e a finalidade que deveria ser legitimamente alcançada com esta. Em conformidade com a jurisprudência pátria, infringem a moralidade administrativa: a) a participação de Juiz integrante de Tribunal Regional do Trabalho em eleição destinada a compor lista tríplice para preenchimento de vaga de juiz togado quando um dos candidatos é filho do mesmo [14]; b) ato de Presidente do Tribunal Regional do Trabalho que, ante o afastamento do representante classista titular, deixa de convocar o suplente que com ele fora nomeado, "pinçando", à sua livre discrição, o suplente que substituirá o titular [15]; c) fixação da remuneração do Prefeito, Vice-Prefeito e dos Vereadores para viger na própria legislatura em que fora estabelecida, o que também importa em violação ao art. 29, VI, da CR/88 [16]; d) abertura de conta corrente em nome de particular para movimentar recursos públicos, independentemente da demonstração de prejuízo material aos cofres públicos [17]; e) alienação de lotes de terrenos pertencentes à municipalidade, contíguos a outros de propriedade do Prefeito, e posteriormente por ele adquiridos pelo valor da avaliação, acarretando a valorização da área contínua quando agregada à primitiva [18]; f) ato de Câmara Municipal que, sob o argumento de "oferecer exemplo à coletividade", reduz a remuneração dos edis para a legislatura seguinte, após a realização da eleição onde a grande maioria não foi reeleita [19]. No caso específico da moralidade dos atos legislativos, será a mesma analisada no item 7.

4. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.

A Lei 8.429/92, regulamentando o art. 37, § 4º da CR/88, elencou, de forma exemplificativa, os atos ilícitos configuradores da improbidade administrativa, tendo igualmente cominado as respectivas reprimendas. Nesta linha, foram previstas três ordens de sanções, conforme o ato importe em enriquecimento ilícito do agente (art. 9º), cause dano ao erário (art. 10) ou esteja em dissonância com os princípios norteadores da administração pública (art.11). Uma interpretação literal do texto legal conduziria à conclusão de que um agente público que anotasse um recado de ordem pessoal em uma folha de papel da repartição pública incorreria nas sanções do art. 12, II, da Lei 8.429/92, já que causara prejuízo ao erário. Situação parecida ocorreria com aquele que utilizasse um grampo da repartição para prender documentos pessoais e levá-los para a sua residência, pois estaria sujeito às sanções do art. 12, I e II, em virtude do dano ao erário e do enriquecimento ilícito. Tais exemplos demonstram, prima facie, a flagrante desproporção entre a conduta do agente e as conseqüências que adviriam da aplicação da Lei 8.429/92. Em razão disto, afigura-se necessário o estabelecimento de critérios passíveis de demonstrar a configuração da improbidade administrativa, o que será possível a partir da fixação de uma linha de proporcionalidade.

O princípio da proporcionalidade tem sido objeto de amplos estudos no Direito Constitucional, sendo utilizado, primordialmente, na identificação da constitucionalidade das normas que buscam na Constituição seu fundamento de validade. Este princípio, embora não tenha previsão expressa na Constituição, deflui do sistema e visa evitar restrições desnecessárias ou abusivas aos direitos constitucionais, buscando a solução menos onerosa para os direitos e liberdades que defluem do ordenamento jurídico. Em linhas gerais, o princípio da proporcionalidade será observado com a verificação dos seguintes fatores [20]: a) necessidade de edição da norma, a qual deve ser indispensável; b) adequação entre o meio utilizado e o fim colimado; c) proporcionalidade em sentido estrito, o que será verificado a partir da proporção entre o objeto perseguido e o ônus imposto ao atingido. Afora estes, os quais formam a denominada razoabilidade interna, Luís Roberto Barroso [21] acrescenta a razoabilidade externa, que representa a compatibilidade entre o meio utilizado, o fim colimado e os valores constitucionais. [22]

Sob a ótica dos atos de improbidade, o princípio da proporcionalidade visa a estabelecer um critério de adequação entre o ilícito e os efeitos que a aplicação da Lei 8.429/92 pode acarretar. A prática de atos que importem em insignificante lesão aos deveres do cargo, ou à consecução dos fins visados, é inapta a delinear o perfil do ímprobo; isto porque a aplicação das sanções previstas no art. 12 da Lei 8.429/92 ao agente acarretaria lesão maior do que aquela que o mesmo causara ao ente estatal, culminando em violar a relação de segurança que deve existir entre o Estado e os cidadãos. Note-se que a "atipicidade" aqui sustentada não almeja a abertura das portas da impunidade, motivo pelo qual sua aplicação deve manter-se adstrita às hipóteses em que a consubstanciação da improbidade venha a ferir o senso comum, importando em total incompatibilidade com os fins sociais da norma e as exigências do harmônico convívio social (art. 5º, caput, da LICC). Assim, à improbidade formal deve estar associada a improbidade material, a qual não restará configurada quando a distorção comportamental do agente importar em lesão ou enriquecimento de ínfimo ou de nenhum valor; bem como quando a inobservância dos princípios administrativos, além daqueles caracteres, importar em erro de direito escusável ou não assumir contornos aptos a comprometer a consecução do bem comum (art. 3º, IV, da CR/88). Tais circunstâncias devem ser aferidas a partir da natureza do ato, da consecução do interesse público e da realidade social; o que permitirá uma ampla análise do comportamento do agente em cotejo com o fim perseguido pelo Constituinte com a edição dos arts. 15, V e 37, § 4º, qual seja, que os agentes públicos sejam justos e honestos, tudo fazendo em prol da coletividade. Constatado que a aplicação da Lei 8.429/92 apresenta nítida desproporção com o ato praticado, restará a incidência das sanções de ordem administrativa, de natureza e grau compatíveis com a reprovabilidade da conduta. Por outro lado, identificada a "tipicidade" do ato - a qual, repita-se, somente deve ser excluída em situações excepcionais – iniciar-se-á o processo de identificação das sanções cabíveis, o qual será oportunamente analisado. Tal linha de raciocínio permite estabelecer uma relação de adequação entre a conduta do agente, a Lei 8.429/92 e a Constituição da República, evitando-se o estabelecimento de reprimendas desarrazoadas [23].

Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. A improbidade administrativa e sua sistematização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 86, 27 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4284. Acesso em: 23 dez. 2024.

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