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Concessão de serviço de televisão por radiodifusão, liberdade de expressão e produção de conteúdos por terceiros ou em regime de coprodução

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3.  Veiculação de conteúdo de autoria de terceiros, em coprodução, pela concessionária do serviço de televisão por radiodifusão

A Lei n. 4.117/1962 estabelece as obrigações das concessionárias dos serviços de radiodifusão de sons e imagens quanto à programação dos conteúdos do seguinte modo:

“Art. 38. Nas concessões, permissões ou autorizações para explorar serviços de radiodifusão, serão observados, além de outros requisitos, os seguintes preceitos e cláusulas: (...) d) os serviços de informação, divertimento, propaganda e publicidade das empresas de radiodifusão estão subordinadas às finalidades educativas e culturais inerentes à radiodifusão, visando aos superiores interesses do País. (...) h) as emissoras de radiodifusão, inclusive televisão, deverão cumprir sua finalidade informativa, destinando um mínimo de 5% (cinco por cento) de tempo para transmissão de serviço noticioso.”

As letras d e h do artigo 38 não proíbem a concessionária do serviço de televisão por radiodifusão de veicular conteúdo de autoria de terceiros e coproduzido pela própria concessionária. Trata-se de uma regra com obrigação positiva que vincula a concessionária do serviço de televisão por radiodifusão quanto à transmissão de conteúdo mínimo de serviço noticioso. Ressalte-se que não há, na Lei n. 4.117/1962, dispositivo com proibição à veiculação pela concessionária de conteúdo de programas de televisão produzido por terceiros.

Ademais, no Decreto n. 52.795/1963, que aprova o Regulamento do Serviço de Radiodifusão, não há, também, regra que proíba a veiculação de conteúdo de autoria de terceiros. O referido Decreto, no art. 67, §2º, reproduz tão-somente o dispositivo que obriga a veiculação de um mínimo de 5% (cinco por cento) do horário de programação para a transmissão de serviço noticioso.

Por outro lado, o Decreto n. 52.795/1963, em seu art. 3º, dispõe que os serviços de radiodifusão têm finalidade educativa e cultural, nos aspectos informativo e recreativo e de interesse nacional.[46] Ora, o art. 3º, do Decreto n. 52.795/1963, deve ser interpretado em conjunto com o art. 28. O art. 28, item 11, obriga a concessionária do serviço de televisão por radiodifusão a subordinar os programas de informação, divertimento, propaganda e publicidade às finalidades educativas e culturais inerentes à radiodifusão.[47]

Os dispositivos do Decreto n. 52.795/1963 (arts. 3º e 28, item 11) não proíbem a veiculação pela concessionária de radiodifusão de sons e imagens do conteúdo coproduzido com terceiro. Elas apenas condicionam, na programação, o atendimento à finalidade educativa e cultural. Além disso, a interpretação do Regulamento da Radiodifusão, na forma do Decreto n. 52.795/1963, há de ser realizada a partir do disposto na Lei n. 4.117/1962, especialmente daquelas regras que garantem a liberdade de radiodifusão da concessionária do serviço de televisão por radiodifusão. Aqui, o decreto há de ser interpretado conforme a lei, e esta conforme a Constituição.[48]


4. Direitos e deveres da concessionária do serviço de televisão por radiodifusão

Como referido anteriormente, o regime da concessão do serviço de televisão por radiodifusão de sons e imagens é definido na forma da Lei n. 4.117/1962, cujas regras dispõem sobre aspectos técnicos das atividades relacionadas à transmissão dos programas de televisão. Há, também, na Lei n. 4.117/1962, regras sobre a organização da programação de televisão, como: (i) o limite de 25% (vinte por cento) de publicidade comercial no tempo da programação (art. 124); e, (ii) a obrigação de veicular 5% (cinco por cento) de conteúdos de serviços noticiosos (art. 38, letra “h”).

A interpretação das regras da Lei n. 4.117/1962 sobre a organização dos programas de televisão não pode conduzir à agressão ao direito da concessionária quanto à escolha dos conteúdos a serem veiculados. Com efeito, há aqui uma distinção fundamental para a correta interpretação da legislação aplicável à espécie: de um lado, (i) a regulação técnica do serviço de televisão por radiodifusão, como, por exemplo: infraestrutura de redes de antenas, uso do canal de frequências, potência das estações de radiodifusão, etc., autorizada pela legislação específica. De outro lado, (ii) a regulação do conteúdo da programação de televisão, algo vedado pela Constituição e pela lei setorial.[49]

A Lei n. 4.117/1962, portanto, não define o conteúdo da grade da programação da televisão por radiodifusão. Também o Poder Concedente (União), não pode definir o conteúdo da programação. Tanto que não há na lei, nem na sua regulamentação, limite à difusão de conteúdos. Se a autoridade administrativa, competente para fiscalizar os serviços de radiodifusão, definir o conteúdo da programação de televisão, poderia ocorrer censura à liberdade de expressão, à liberdade de comunicação social e à liberdade religiosa. Ressalte-se que a Constituição limita-se a atribuir à União a competência para exercer a classificação, para efeito indicativo, de programas de televisão, conforme o art. 21, inc. XVI. Essa autorização constitucional para a classificação indicativa da programação televisiva jamais possibilitará a regulação dos conteúdos dos programas de televisão; caso contrário manifestar-se-ia o cerceamento à liberdade de radiodifusão.[50]

Sobre o tema, Jónatas Machado esclarece:

“Entende-se constituir a liberdade de conformação da programação um corolário da liberdade de radiodifusão e, mais remotamente, da liberdade de expressão em sentido amplo. A liberdade de radiodifusão conhece um dos seus pontos nevrálgicos na liberdade de programação – embora esteja longe de se esgotar nela -, entendida como direito de defesa do espaço público comunicativo contra o Estado, e nalguma medida, através do Estado. (...). A soberania editorial dos operadores (de televisão) protege-os de todas as interferências por parte dos poderes públicos.” [51]

O direito da concessionária do serviço de televisão por radiodifusão à definição do conteúdo de sua programação decorre das garantias constitucionais da liberdade de expressão, da liberdade de comunicação, da liberdade de radiodifusão e da própria legislação específica aplicável ao setor de radiodifusão.

De fato, o direito da concessionária do serviço de televisão por radiodifusão à definição da programação televisiva tem fundamentos constitucionais. A emissora de televisão por radiodifusão na condição de empresa privada, com fundamento na liberdade de comunicação social, na propriedade privada, na autonomia privada e na autonomia editorial, tem o direito à gestão da produção de conteúdos e programação televisiva. Ao se basear em sua liberdade de radiodifusão (de liberdade de produção e programação), a emissora tem o direito à liberdade de contratar (escolher as pessoas contratadas, a forma de contratar e as cláusulas contratuais) e de celebrar acordos adequados à produção e à veiculação de conteúdos televisivos.[52]

A Lei n. 4.117/1962 respeita o campo reservado à autonomia privada da emissora de televisão por radiodifusão privada, quanto à gestão de seus contratos de produção e programação. Do ponto de vista normativo, a concessionária do serviço de televisão por radiodifusão tem o direito de preservar a sua linha editorial diante do conteúdo produzido em regime de coprodução com terceiros, daí a necessidade da aprovação editorial.

A concessionária do serviço de televisão por radiodifusão, portanto, não é obrigada a produzir diretamente todo o conteúdo da programação. A Lei n. 4.117/1962, recepcionada pela Constituição Federal, não estabelece este tipo de obrigação para a emissora de televisão por radiodifusão do setor privado.

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Com o ato de outorga da concessão, a concessionária de televisão detém o direito de explorar o serviço de radiodifusão. Dessa maneira, ela tem o direito de decidir sobre a gestão da produção e da programação de televisão. Vale dizer, a concessionária detém a autonomia para decidir por produzir internamente seus programas ou produzir em regime de coprodução, assegurada a sua responsabilidade pelo controle do conteúdo editorial. Trata-se do exercício da liberdade interna da empresa de radiodifusão quanto à auto-organização e à definição das linhas de programação.[53] Nesse aspecto, prevalece a autonomia privada da concessionária (e a liberdade interna da empresa de radiodifusão), o que lhe garante, por sua vez, a autonomia quanto à gestão da produção e da programação de televisão.[54]

A Constituição Federal, em seu art. 221, §1º e §2º, ao tratar da propriedade das empresas de radiodifusão, garante aos brasileiros, obrigatoriamente, a gestão das atividades, bem como a responsabilidade editorial sobre o conteúdo programação.[55] Isto é, a regra constitucional condiciona a gestão da empresa de televisão privada por radiodifusão - responsabilidade pela administração e orientação intelectual - a cargo privativo de brasileiro nato ou naturalizado há mais de dez anos.[56] Afora essa questão, não há regra constitucional que proíba a veiculação, pelas concessionárias do serviço de televisão por radiodifusão, de conteúdo produzido por terceiros, no regime de coprodução.

Daí a necessidade de vinculação da interpretação da legislação ao princípio da estrita legalidade, no sentido de que somente a lei (desde que proporcional) pode criar obrigações para a concessionária do serviço de televisão por radiodifusão. De lege ferenda, a questão da veiculação do conteúdo cultural-religioso pela concessionária do serviço de televisão por radiodifusão pode ser, em tese, modificada e debatida no âmbito do Congresso Nacional, mediante propostas de alteração da legislação da radiodifusão do setor privado.[57] Expectativas de mudança da lei da televisão por radiodifusão do setor privado são legítimas, mas somente o Congresso Nacional detém a competência constitucional para mudar a legislação dos serviços de televisão por radiodifusão e, isso, nos estritos limites autorizados pelo Constituinte.


5. Regime constitucional da TV privada por radiodifusão: os direitos fundamentais à liberdade de expressão, à liberdade de comunicação, à liberdade de culto religioso e à liberdade de radiodifusão

A Constituição Federal, em seu art. 5º e incisos, estabelece direitos, liberdades e garantias fundamentais individuais e coletivos. Tais normas constitucionais são aplicáveis às pessoas naturais e às pessoas jurídicas.

Desse modo, cumpre saber se a veiculação de programas de televisão com conteúdo cultural-religioso está protegida no âmbito normativo da liberdade de expressão (art. 5º, inc. IV), da liberdade de comunicação (art. 5º, inc. IX) e da liberdade de culto religioso (art. 5º, inc. VI).

5.1. Liberdade de expressão (art. 5º, inc. IV) e Liberdade de comunicação (art. 5º, inc. IX)

O serviço de televisão por radiodifusão tem como finalidade a veiculação de programas com conteúdos audiovisuais inseridos em uma grade de programação. A expressão e a comunicação de programas de televisão com conteúdo cultural e religioso encontram-se protegidas no âmbito normativo das liberdades de expressão e de comunicação. Há plena proteção constitucional à difusão de programas de televisão que expressem e comuniquem ideias, pensamentos, opiniões e sentimentos religiosos, bens culturais, etc. Não há restrição constitucional à veiculação por emissora de televisão por radiodifusão desta espécie de conteúdo.

Sobre a precedência das liberdades de pensamento e de expressão, diante de outros bens constitucionais, na ADPF 130, o Ministro Relator Carlos Ayres Britto registrou: “Liberdades que não podem se arredar pé ou sofrer antecipado controle nem mesmo por força do Direito-lei, compreensivo este das próprias emendas à Constituição, frise”.[58]

Os contratos privados, celebrados entre a concessionária de televisão por radiodifusão e entidade religiosa para a veiculação e coprodução de programas de conteúdo cultural-religioso, estão protegidos no âmbito normativo das liberdades de expressão e de comunicação, ambas garantidas pela Constituição Federal. Assim, a negação do direito à veiculação de programas de televisão, com conteúdo cultural-religioso, implica em ofensa à liberdade de expressão e à liberdade de comunicação.

5.2. Liberdade de culto religioso (art. 5º, inc. VI)

A Constituição protege a liberdade de culto religioso em seu art. 5º, inc. VI. Dois aspectos da garantia fundamental merecem análise. De um lado, a proteção às pessoas que participam no local do culto religioso, em ambiente público ou ambiente privado. A norma constitucional de proteção à liberdade religiosa tem a finalidade de evitar quaisquer impedimentos ou perturbações aos atos de culto.[59] Ao Estado corresponde, portanto, o dever de proteger o exercício da liberdade de culto religioso, independentemente do ambiente onde ocorra o exercício desta liberdade constitucional.

De outro lado, a norma constitucional de proteção à liberdade de culto religioso é aplicável à transmissão do culto religioso por emissoras de televisão por radiodifusão privadas. O âmbito normativo do art. 5º, inc. IV, da CF, é amplo o suficiente para proteger o exercício de liberdade de veiculação de programas de televisão culturais-religiosos. A difusão dessa espécie de programa televisivo é uma forma de concretização da liberdade de comunicação religiosa de ideias, opiniões e sentimentos religiosos e de possibilidade de propagação da fé das pessoas.

Segundo Jónatas Machado:

“Num contexto constitucional de liberdade religiosa e de separação das confissões religiosas do Estado, em que a religião é um dos elementos de uma sociedade civil dinâmica e aberta, a iniciativa privada e a autonomia contratual podem e devem ser colocadas ao serviço da liberdade religiosa.” [60]

5.3. Da Comunicação Social. Garantias constitucionais à livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação: a proibição à censura na veiculação de programas com conteúdo cultural-religioso pela concessionária do serviço de televisão por radiodifusão

A Constituição, no capítulo da Comunicação Social, consagra a ampla proteção à liberdade de pensamento, criação, expressão e informação, nos meios de comunicação social. Segundo a Lei Fundamental, a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição (art. 220, caput). Em outro dispositivo, a Constituição veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística (art. 220, §2º).

Sobre a vinculação entre a Comunicação Social e a liberdade de expressão e de comunicação, o Min. Relator Carlos Ayres Britto decidiu na ADPF 130:

“O que faz de todo o capítulo constitucional sobre a comunicação social um melhorado prolongamento dos preceitos fundamentais da liberdade de manifestação do pensamento e de expressão em sentido lato. Comunicando-se, então, a todo o segmento normativo prolongador a natureza jurídica do segmento prolongado; que é a natureza de 'DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS', tal como se lê no título de n. II, da nossa Constituição.”[61]

Com efeito, na referida ADPF 130, o STF concluiu, com fundamento no art. 220, §1º, pela não recepção da Lei de Imprensa pela Constituição de 1988. O dispositivo dispõe que nenhuma lei poderá causar embaraço à plena liberdade de informação jornalística. Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes, a respeito da interpretação do dispositivo constitucional, assim se manifesta: “Ao mesmo tempo em que prescrevem a não restrição dessas liberdades, tais textos não apenas permitem, como obrigam a intervenção legislativa no sentido de sua promoção e efetividade”.[62]

Note-se que, no caso dos serviços de televisão por radiodifusão, com regime constitucional próprio em razão de sua peculiar natureza técnica (distinto do regime da imprensa em geral), a Constituição trata da sua disciplina por meio de lei federal. No caso, a Lei n. 4.117/1962, como dito, é o veículo legislativo do regime jurídico do serviço de televisão por radiodifusão do setor privado.

A atividade de veiculação de programas de televisão de conteúdo cultural-religioso de autoria de entidade religiosa, em regime de coprodução com a concessionária de televisão por radiodifusão, encontra-se protegida no âmbito normativo do caput do art. 220. De acordo com esse dispositivo constitucional, não pode ocorrer restrição ao pensamento, à criação, à expressão e à informação. Daí o fundamento para a proteção da produção e da veiculação por emissoras de televisão do conteúdo cultural-religioso. Desse modo, a proibição administrativa, legislativa ou judicial da veiculação, pela concessionária do serviço de televisão por radiodifusão, de programas com conteúdo cultural-religioso, caracteriza censura de natureza ideológica.

5.4. Da liberdade de radiodifusão da empresa concessionária do serviço de televisão

A base constitucional da liberdade de radiodifusão decorre do âmbito normativo das liberdades de expressão em sentido amplo e da liberdade de comunicação social.[63] A liberdade de radiodifusão assegura o exercício de direitos, liberdades e garantias necessárias à produção dos programas de televisão e à programação. A liberdade de radiodifusão está a serviço da comunicação social que atenda o maior número de pessoas, das mais diversas classes sociais, etnias e dos mais variados tipos de interesses. Portanto, a liberdade de radiodifusão é a regra que deve prevalecer, sendo exceções as restrições ao seu respectivo exercício, cuja existência e vigência estão condicionadas à previsão legislativa. Assim, segundo esclarece Jónatas Machado: “A realização da liberdade de radiodifusão encontra-se relacionada com os demais direitos fundamentais, como sejam os direitos de propriedade, iniciativa económica, liberdade contratual, bem como as liberdades de estabelecimento e de prestação de serviços.”[64]

Na Constituição, a norma que trata da competência legislativa da União (art. 21, inc. XII, letra "a"), serve para disciplinar o regime de acesso e de prestação do serviço de radiodifusão, desde que compatível com o núcleo essencial da liberdade de radiodifusão e com o bloco de constitucionalidade. Nesse sentido, as restrições ao exercício do serviço de televisão por radiodifusão, prestados por uma empresa privada, devem ser limitadas à proteção de direitos e interesses protegidos no âmbito constitucional.

No âmbito infraconstitucional, há o reconhecimento do exercício da liberdade de radiodifusão na forma da Lei n. 4.117/1962. Essa lei, que define o regime da concessão da radiodifusão, condiciona o exercício da liberdade de radiodifusão da concessionária e, estabelece, inclusive, as infrações e penalidades aplicáveis. Assim, é reconhecida a liberdade interna da empresa de radiodifusão quanto à gestão da produção e da programação de televisão, conforme seu estatuto editorial, pois a liberdade de radiodifusão é de titularidade da empresa privada de radiodifusão.

Sobre essa questão, José Alexandrino explica:

“A produção económica de programas e a recepção ou consumo de programas e mensagens gozam de um âmbito alargado: a primeira, por não se verem razões especiais que a devam condicionar; a segunda, por beneficiar da proteção concedida pela liberdade de recepção e pela garantia institucional do pluralismo.”[65]

Nesse mesmo sentido, o âmbito normativo dos direitos à liberdade de expressão de radiodifusão e de liberdade de programação assegura à empresa de televisão por radiodifusão a possibilidade, nas palavras de J. J. Gomes Canotilho e Jónatas Machado, de “emitir qualquer programa, independentemente do seu conteúdo ou qualidade, sendo esta matéria reserva da empresa de radiodifusão”. Segundo os autores: “Subjacente a esta reserva de actividade televisiva, ou reserva de empresa de radiodifusão, está a garantia da liberdade de conformação da programação dos operadores e o princípio da liberdade perante o Estado, em matéria de comunicação social”.[66]

Sobre o exercício da liberdade de radiodifusão pelas concessionárias dos serviços de televisão por radiodifusão, cabe destacar o voto do Ministro Relator Carlos Ayres Britto, na ADPF n. 130:

“Atente-se para as novelas da televisão brasileira e demais programações em canal aberto. Não há censura prévia quanto à exposição de capítulos, cenas, fatos, mas os temas polêmicos ou de mais forte quebra de paradigmas culturais são retratados com perceptível cuidado.”[67]

No âmbito infraconstitucional, a Lei n. 4.117/1962, em seu art. 52, preceitua que a liberdade de radiodifusão não exclui a punição dos que praticarem abusos no exercício. Há também a previsão, em seu art. 72, de que a autoridade que impedir ou embaraçar a liberdade de radiodifusão ou da televisão fora dos casos autorizados em lei, incidirá, no que couber, na sanção do art. 322 do Código Penal.[68] O Decreto n. 52.795/63, em seu art. 169, repete o teor da regra de proteção à liberdade de radiodifusão contra interferências abusivas de autoridades.

A título conclusivo, há um regime de concessão especial aplicável ao serviço de televisão por radiodifusão privado, delimitado na Lei n. 4.117/1962, que reconhece a liberdade de radiodifusão da empresa concessionária e que lhe assegura o direito à definição dos conteúdos da programação de televisão.

5.5. Princípios da Produção e Programação das emissoras de televisão no art. 221 da Constituição

A Constituição, no capítulo da Comunicação Social, estabelece os princípios da produção e programação das emissoras de televisão (art. 221).

Um dos princípios aplicáveis aos serviços de radiodifusão de sons e imagens é a preferência por finalidades culturais na produção e programação (art. 221, inc. I). Outro princípio, que orienta a produção e a programação das concessionárias do serviço de televisão por radiodifusão, é o da promoção da cultura nacional e regional, com o estímulo à produção independente para sua divulgação (art. 221, inc. II). Um terceiro princípio a ser seguido pelas emissoras de televisão, em sua produção e programação, consiste no respeito aos valores éticos da pessoa e da família (art. 221, inc. IV).[69]

A produção e a programação da televisão por radiodifusão ostentam dimensão cultural relevante. A televisão por radiodifusão é uma fonte de acesso à cultura, daí a relevância da abertura da concessionária do serviço de radiodifusão à produção de programas de autoria de terceiros.

5.6. Penalidades das Leis n. 8.987/1995 e n. 8.666/1993 não se aplicam à concessionária do serviço de televisão por radiodifusão

Como referido anteriormente, os serviços de televisão por radiodifusão de sons e imagens estão submetidos a regime de concessão especial. Há um ordenamento jurídico setorial sobre os serviços de televisão por radiodifusão, devido à especialidade da matéria, reconhecida na Constituição.[70] Vale dizer, os serviços de televisão por radiodifusão estão submetidos a um Direito setorial especial, diverso do Direito geral, como é o caso do direito administrativo clássico.

Com efeito, a partir do critério da especialidade que orienta a aplicação das leis, há a prevalência da lei específica sobre os serviços de televisão por radiodifusão. Ademais, a especialidade do tratamento normativo dos serviços de televisão por radiodifusão decorre da própria Constituição Federal.[71] Em síntese, as normas setoriais dos serviços de radiodifusão devem prevalecer sobre as normas gerais das concessões de serviços públicos.

A Lei n. 8.987/1995 dispõe sobre o regime geral de concessão e permissão de serviços públicos. Esta lei é expressamente clara quanto à sua não incidência sobre os serviços de radiodifusão de sons e imagens. Observe-se a literalidade do texto legal: “Art. 41. O disposto nesta Lei não se aplica à concessão permissão e autorização para o serviço de radiodifusão de sons e imagens”.

Portanto, extrai-se expressa e diretamente, do art. 41 da Lei n. 8.987/1995 a exclusão de sua aplicação à concessão dos serviços de radiodifusão. Sendo assim, esta lei determina a prevalência do regime de concessão especial do serviço de radiodifusão, na forma da Lei n. 4.117/1962. Desse modo, é impossível juridicamente a interpretação no sentido de se aplicar as penalidades da Lei n. 8.987/1995 à concessionária do serviço de televisão por radiodifusão.

Por outro lado, a título ilustrativo, a Lei Geral de Telecomunicações, seguindo a lógica da regulação dos serviços por ordenamento setorial especial, dispõe sobre seu exclusivo âmbito de incidência nas concessões, permissões e autorizações do serviço de telecomunicações. A Lei Geral de Telecomunicações expressamente excluiu a aplicação das Leis n. 8.666/1993 e Lei n. 8.987/1995 sobre os serviços de telecomunicações.[72] Vale dizer, a especialidade da matéria (telecomunicações, que demanda a sua regulação em legislação setorial), exclui a incidência do regime geral de concessões e licitações.

Vale ressaltar que a Lei Geral de Telecomunicações atribui à Anatel a fiscalização dos aspectos técnicos das estações de radiodifusão de sons e imagens.[73] Daí porque a concessionária do serviço de televisão por radiodifusão, a princípio, submete-se às infrações e às sanções catalogadas na Lei n. 9.472/1997, aplicáveis pela Anatel, no aspecto técnico.[74]

 Por outro lado, a Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 8.666/1993) contém normas gerais para licitações e contratos da Administração Pública.[75] A Lei de Licitações e Contratos Administrativos aponta a solução na hipótese de conflito com legislação específica sobre concessão. Ou seja, a lei das normas gerais sobre licitações e contratos administrativos define o seu âmbito de não incidência. Segundo a Lei n. 8.666/1993: “Art. 124. Aplicam-se às licitações e aos contratos para permissão ou concessão de serviços públicos os dispositivos desta Lei que não conflitem com a legislação específica sobre o assunto”.

Como referido anteriormente, o serviço de televisão por radiodifusão é disciplinado por legislação específica, representada pela Lei n. 4.117/1962, a qual estabelece as penalidades a serem aplicadas às concessionárias dos serviços de televisão por radiodifusão. Nesse aspecto, há conflito entre a Lei n. 8.666/1993 e a legislação específica da radiodifusão, razão pela qual a aplicação exclusiva da Lei n. 4.117/1962 faz-se necessária.

Frise-se que os princípios da estrita legalidade e da tipicidade impedem a aplicação de penalidades fora das hipóteses tipificadas expressamente na lei específica que disciplina o serviço de radiodifusão de sons e imagens. Também, o princípio da segurança jurídica tem o efeito de impedir a interpretação da legislação de modo incoerente, pois isso fragilizaria juridicamente a concessionária quanto à legislação incidente sobre suas atividades e a tipificação das infrações e penalidades.

Sanções aplicáveis aos serviços de televisão por radiodifusão somente podem ser aquelas da Lei n. 4.117/1962. Interpretar a legislação federal de modo a forçar sua aplicação, para fins de incidência da legislação geral sobre concessões de serviço público e licitações e contratos administrativos, implica a negativa de vigência à legislação específica do setor de radiodifusão. Ou seja, há plena vinculação dos serviços de televisão por radiodifusão às infrações e às penalidades previstas, na forma da Lei n. 4.117/1962.[76] Com isso, ocorre a plenitude da eficácia do princípio do devido processo legal, o qual determina a incidência de sanções à concessionária do serviço de televisão por radiodifusão, previstas na referida lei setorial.

Sobre os autores
Clèmerson Merlin Clève

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Constitucional do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Professor Visitante dos Programas Máster Universitario en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo e Doctorado en Ciencias Jurídicas y Políticas da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Pós-graduado em Direito Público pela Université Catholique de Louvain – Bélgica. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Líder do NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais em Teorias da Justiça, Democracia e Intervenção da UFPR. Autor de diversas obras, entre as quais se destacam: Doutrinas Essenciais - Direito Constitucional, Vols. VII - XI, RT (2015); Doutrina, Processos e Procedimentos: Direito Constitucional, RT (Coord., 2015); Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional, RT (Co-coord., 2014) - Finalista do Prêmio Jabuti 2015; Direito Constitucional Brasileiro, RT (Coord., 3 volumes, 2014); Temas de Direito Constitucional, Fórum (2.ed., 2014); Fidelidade partidária, Juruá (2012); Para uma dogmática constitucional emancipatória, Fórum (2012); Atividade legislativa do poder executivo, RT (3. ed. 2011); Doutrinas essenciais – Direito Constitucional, RT (2011, com Luís Roberto Barroso, Coords.); O direito e os direitos, Fórum (3. ed. 2011); Medidas provisórias, RT (3. ed. 2010); A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, RT (2. ed. 2000). Foi Procurador do Estado do Paraná e Procurador da República. Advogado e Consultor na área de Direito Público.

Ericson Meister Scorsim

Advogado e Consultor em Direito Público, com foco no Direito das Comunicações (Telecomunicações e Internet). Sócio Fundador do Escritório Meister Scorsim. Mestre em Direito pelo UFPR. Doutor em Direito pela USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLÈVE, Clèmerson Merlin; SCORSIM, Ericson Meister. Concessão de serviço de televisão por radiodifusão, liberdade de expressão e produção de conteúdos por terceiros ou em regime de coprodução. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4513, 9 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42883. Acesso em: 22 dez. 2024.

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