Reiteradamente se tem propalado que a Lei de Licitações obriga a Administração a comprar produtos de baixa qualidade, face ter estabelecido a regra geral da aquisição pelo menor preço. Esse equívoco tem por causa três diferentes fatores, quais sejam a ausência de treinamento, o equívoco de que comprar pelo menor preço obriga a aceitar qualquer produto e a errada compreensão de decisões dos órgãos do controle.
Percebe-se, entretanto, que em estudo mais aprofundado da precitada Legislação, verifica-se inclusive a possibilidade jurídica da indicação e exclusão de marcas, exigência de amostras de produtos, indicação de características definidoras de qualidade do produto, dentre outros recursos que permitem que a Lei de Licitações, seja cumprida e ainda que o processo licitatório seja realizado com qualidade.
O referido equívoco tem por causa três diferentes fatores:
I - Ausência de treinamento
Essa crítica, como muitas outras, poderia ser resolvida com o simples treinamento dos servidores responsáveis pela aplicação desse diploma legal.
De fato não se pode conceber que sejam encarregados de dar cumprimento a uma legislação complexa servidores sem prévio conhecimento do assunto, normalmente já sobrecarregados de tarefas múltiplas. Nesse sentido merecem destaque decisões dos Tribunais de Contas que vêm determinando o treinamento dos servidores da Administração quando evidente o erro, sem má-fé, por simples desconhecimento das normas em vigor.(1)
Um bom treinamento é o que capacita juristas ou não a explorarem a potencialidade da norma, rumo à eficácia da Administração.
II - Equívoco de que comprar pelo menor preço obriga a aceitar qualquer produto
A crítica apontada no preâmbulo também não procede, quando examinada com a acuidade necessária à Lei de licitações.
Em vários dispositivos, a Lei no 8.666/93 aponta como vetores da atuação administrativa a possibilidade de indicar a qualidade do produto. A Administração tem o dever de indicar o objeto pretendido na licitação, inclusive com as características necessárias à qualidade satisfatória.
O que se não admite é a restrição injustificada, porque afeta o princípio basilar da licitação, qual seja a isonomia entre os interessados.
Cabe mencionar alguns desses dispositivos, a título de exemplificação.
- no caso de serviços, a qualidade pode ser licitamente indicada no projeto básico, ao definir, com precisão, o objeto pretendido pela Administração, desde que justificada à luz do interesse público. O conceito de projeto básico está no art. 6º, inc. IX; a obrigatoriedade de sua elaboração antes da licitação é exigida no art. 7º, § 2º, inc. I; a obrigatoriedade de publicar o projeto básico junto com o edital está no art. 40, § 2º, inc. I, todos os dispositivos da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade do trabalho executado deve ser aferida em cada etapa, como providência indispensável ao início da etapa seguinte, nos termos do art. 7º, §1º, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade do produto, a indicação de marcas ou características exclusivas ou sem similaridade é expressamente admitida, quando for tecnicamente justificável, por exceção à regra geral, conforme art. 7º, §5º, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade é um dos requisitos na elaboração de projetos, expressamente traduzida em durabilidade, facilidade na execução, conservação e operação, funcionalidade, adequação ao interesse público e segurança, nos termos do art. 12, incs. I, II e V, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade na fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras e serviços foi objeto de preocupação do legislador quando autorizou a realização de concurso para assistência do executor do contrato, conforme art. 13, inc. IV, c/c 67, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade de uma compra é garantida quando o legislador exige "a adequada caracterização do objeto", na dicção do art. 14, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade foi traduzida pelas expressões "compatibilidade de especificação técnica e de desempenho", estabelecida no art. 15, inc. I, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade também é assegurada quando o legislador exige "a especificação completa do bem ", no art. 15, § 7º, inc. I, da Lei nº 8.666/93;
- a manutenção da qualidade foi objeto de expressa disposição, quando foi determinado que se observassem as condições de guarda e armazenamento que não permitissem a deterioração do material, na redação do art. 15, § 7º, inc. III, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade dos bens adquiridos foi objeto de preocupação, no momento do recebimento, quando o legislador instituiu a comissão de recebimento nos termos do art. 15, § 8º, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade foi assegurada também quando se permite exigir do licitante a qualificação técnica para execução do objeto, no art. 30, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade na execução do objeto também foi assegurada com a possibilidade de a Administração indicar a relação de máquinas, equipamentos e pessoal técnico considerados essenciais para o cumprimento da obrigação, na forma do art. 30, § 6º, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade foi traduzida como a possibilidade de exigir dos licitantes a metodologia da execução, que pode ser avaliada pela Administração, na fase da habilitação, nos termos do art. 30, § 8º, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade na execução de determinado objeto deve ser anotada no registro cadastral, para referência nas futuras contratações, na forma do art. 36, § 2º, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade exigida no edital, se desatendida na proposta do licitante, implica a desclassificação desta, pelo que se depreende do art. 43, inc. IV, c/c 48, inc. I, da Lei nº 8.666/93;
- a verificação da qualidade do objeto pode ser motivo de diligência da comissão de licitação, na forma do art. 43, § 3º, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade pode ser licitamente indicada, quando aferível por critérios objetivos e respeito ao princípio da igualdade, nos termos do art. 44, § 1º, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade do objeto pretendido pode vir até a justificar a utilização de outro tipo de licitação, como "técnica e preço" ou "melhor técnica", como dispõe o art. 4, § 1º, e 46, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade na execução do objeto é garantida pelo dever da Administração de designar "especialmente" para cada caso um fiscal ou executor, necessariamente entre os agentes da Administração, na forma do art. 67, da Lei nº 8.666/93;
- a qualidade, no recebimento do objeto, foi assegurada pelos procedimentos específicos do art. 73, da Lei nº 8.666/93;
III - A errada compreensão de decisões dos órgãos do controle
Desde o advento do Decreto-Lei nº 2300/86, os Tribunais de Contas e os órgãos de controle interno assumiram relevância na interpretação das normas relativas a licitações e contratos.
Tal fato repousa em três fundamentos:
a) primeiro, que de acordo com o art. 79, § 2º, do mencionado diploma, os Tribunais poderiam expedir normas visando explicitar a aplicação do tema. Embora essa competência tenha sido considerada inexercitável, de acordo com o voto do eminente Ministro Ivan Luz, pois implicaria o exercício de competência normativa por órgão não integrante do Poder Legislativo, a jurisprudência foi sendo sistematizada e observada como precedente de julgamento pelos próprios Tribunais;
b) segundo, porque os órgãos de controle agem de ofício e julgam anualmente o conjunto de atos praticados, entre os quais as licitações e contratos. Os órgãos do Poder Judiciário só atuam quando provocados, escapando-lhes a aferição da legalidade da imensa maioria dos atos;
c) terceiro, porque a Lei no 8.666/93, no art. 113, renovou a ênfase da ação do controle ao permitir lhe sejam permanentemente contrastados os atos dessa matéria.
Nada obstante esse fato, as decisões da maioria dos Tribunais de Contas não alcança o caracter pedagógico que pretendem essas Cortes em virtude de:
a) a forma de redação dos acórdãos, seja pela concisão, seja pelo emprego de vernáculo técnico, não consegue estabelecer comunicação com os que são responsáveis de fato pela prática de atos de licitação e contratos;
b) o veículo utilizado para comunicar as decisões, o Diário Oficial, estigmatizar-se pelo volume de informação e sua assistematização;
c) não haverá separação por assunto tratado, exigindo do interessado trabalho de pesquisa e avaliação da relevância dos temas tratados, na maioria das vezes incompatíveis com os outros misteres da comissão de licitação.
Esses aspectos acabam por gerar equívocos na interpretação das decisões, e o temor, pela gravidade das penas impostas, de adotar determinações, decisões ou recorrer do que é deliberado.
IV - A possibilidade jurídica de indicar marcas
Cumpre examinar detidamente a questão da possibilidade ou não da indicação de marca, sem antes porém, firmar o entendimento de que equivale à indicação de marca, a indicação do produto com características exclusivas. No segundo caso, se está mascarando uma condição essencial da aquisição, decorrendo portanto, as mesmas conseqüências que poderão advir, se o fato for irregular.
É possível licitamente, indicar a marca do produto pretendido? O saudoso mestre Hely Lopes Meirelles, em escólio a dispositivo similar do Estatuto de Licitações anterior asseverava que "continuamos entendendo, portanto, que, a aquisição de produto de marca determinada, com exclusão de similares é possível em três hipóteses: para continuidade de utilização de marca já existente no serviço público; para adoção de nova marca mais conveniente que as existentes; para padronização de marca ou tipo no serviço público. O essencial é que a Administração demonstre a efetiva vantagem de determinada marca ou tipo, para continuidade, adoção ou padronização em seus órgãos e serviços com exclusividade"
Prosseguindo salienta aquele autor que há várias razões para que seja adotada marca de produto, mas há necessidade de adequada demonstração da vantagem da decisão e do interesse público, que não pode basear-se "em predileções ou aversões pessoais do administrador". (2)
A insegurança para definir ostensivamente uma marca é por isso mesmo compreensível, mas não pode inibir a ação do agente público, quando essa for a alternativa mais adequada para alcançar com eficiência e eficácia a satisfação do interesse público. Mas quais as cautelas e limites que devem contornar a decisão?
A resposta poderia encontrar seu equacionamento nas seguintes diretivas
a) a palavra marca aparece apenas três vezes na Lei, sendo que em todas vedando-se a sua indicação, e, apenas em uma, admitindo-se como exceção. No art. 15 §7º, inciso I, e no art. 25, inciso I, veda-se a indicação de marca, e, no art. 7º, § 5º, admite-se, em caráter excepcional, em duas hipótese. Uma, quando se tratar de acaso tecnicamente justificável, e a outra quando se tiver em conta a execução por administração contratada, regime de execução vetado na sanção da Lei, e, portanto, inexistente; (3)
b) a justificativa para a indicação de marca deverá, como se insere no único dispositivo que baliza o assunto, amparar-se em motivos de ordem técnica como tal entendido o alinhamento de fatores impessoais e que tenham um fundamento científico;
c) a especialização do conhecimento humano e o fato de que várias áreas da ciência constituem, na atualidade, profissões regulamentadas por diplomas legais, (4) são fatores que indicam que a justificativa técnica deverá preencher os rigores da lei, devendo ser documentada, quando se tratar de área de ciência autônoma, mediante laudo pericial circunstanciado. Em se tratando de equipamento eletrônico, por um engenheiro da especialidade que não apenas descreva a característica pretendida e considerada essencial para a Administração, quanto demonstre que as outras marcas não a ostentam, acrescentando inclusive porque essa peculiaridade é essencial;
d) o rigor recomendado para a justificativa resultará em proveito do agente que o adota, na medida em que tornará transparente a motivação do ato e reforçará a fundamentação da decisão. Ademais, nessa seara é imperioso que a demonstração das razões do convencimento fiquem documentadas porque está se afastando da órbita princípio da isonomia, fundamental em sede de licitações;
e) o laudo pericial deve fazer parte integrante do processo que declara a inexigibilidade, ou ficar junto do edital original quando for o caso de realização do processo licitatório;
f) se o parecer técnico indicar ser necessário adotar determinada marca, deverá a Administração indicá-la ou apresentar as respectivas características exclusivas daquela determinada marca? A resposta deverá levar em consideração o fato concreto, mais, em princípio, parece mais razoável que sejam indicadas as características que levaram à designação da marca, fazendo alusão à mesma, seja entre parênteses, seja anunciando as características e anunciando a marca seguida da expressão ou similar. Tal recomendação tem por fundamento o fato de que, não raro, os meios técnicos são surpreendidos com um produto novo que apresenta características similares e, às vezes, melhores do que o já conhecido. Contudo, se mesmo existindo outra similar, a Administração só se satisfizer com a marca, essa deverá ser expressamente indicada, ao invés das características exclusivas, posto que não deve o Administrador praticar ato simulado;
g) a mera indicação de marca pode ou não levar à inexigibilidade de licitação. Haverá inexigibilidade se, na localidade, só houver um fornecedor daquele produto e, do contrário, será a mesma obrigatória.
Em todas as oportunidades que teve de examinar a descrição do objeto com características exclusivas ou com indicação de marca, tanto o TCU, como o TCDF e vários outros Tribunais (TCE/PR,v.g.) buscaram confrontar a razoabilidade dessa restrição à competitividade com o interesse público. Com sabedoria e cautela equacionaram os princípios da isonomia na medida da desigualdade indispensável à satisfação eficiente do interesse púbico.
Pela clareza destaca-se o teor da seguinte recomendação do plenário do TCU dirigida ao Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas - SEBRAE:
"4.1. faça constar dos processos licitatórios a competente justificativa técnica, cujo objeto inclua bens e serviços sem similaridade ou de marca, características e especificações exclusivas, consoante o disposto no § 5º, do art. 7º, da Lei nº 8.666/93." (5)
V - Pré-qualificação de produtos para compras em larga escala
A questão da indicação da marca no sistema de registro de preços pode ser melhor equacionada até porque essa necessidade não ocorre em relação a todos os produtos e, no contexto do conjunto das aquisições, certamente assumirá o fato menor dimensão.
Contudo, para as compras de maior vulto, feitas por exemplo por um laboratório ou hospital caberá, a critério do órgão promotor da licitação, optar pela pré-qualificação dos produtos.
Essa nova idéia já foi aprovada pelo TCU quando apreciou a aquisição de portas de segurança pelo Banco do Brasil. Até então a pré-qualificação era utilizada como forma de selecionar os futuros licitantes ou contratantes, mas a partir daí reconheceu-se como correto utilizá-la para pré-qualificar produtos. (6)
Assim, para compras em larga escala de um determinado material, o órgão poderia, por exemplo:
a) convocar, por edital, todos os fornecedores de determinado produto para se pré-qualificarem visando a uma futura licitação sob pena de não serem considerados os produtos ofertados não pré-qualificados;
b) em seguida, solicitar aos fornecedores que apresentassem amostras do produto;
c) com base nos requisitos previstos no edital, promover uma avaliação dos produtos;
d) à vista dessa avaliação, selecionar, então, uma ou várias marcas que considera de desempenho satisfatório. Surgem daí duas e alternativas possibilidades:
d.1) a Administração promoverá uma licitação convencional para a compra do produto, listando expressamente as marcas selecionadas na pré-qualificação;
d.2) no edital do SRP, indicará as marcas para aquele item, que, conforme a pré-qualificação foram consideradas satisfatórias.
Na licitação, a regra é o julgamento objetivo, e a pré-qualificação, nos moldes em que o TCU apreciou, continua sendo objetiva; há chamamento público, exame de produtos com justificativas, definição do objeto; só depois há a licitação propriamente dita.
Cumpre afirmar que, como regra, o exame dos produtos deve ser feito por profissionais qualificados com o conhecimento e habilitação técnica exigida.
Por exceção, é possível considerar a possibilidade de que a amostra seja submetida a um critério objetivo, sem os mesmos rigores científicos, desde que assegurada a transparência. Por exemplo, para tinta de impressoras, seria possível considerar um teste em que, presentes representantes das marcas existentes, fossem os diversos tipos de cartucho submetidos a mesma operação, em impressoras iguais, no mesmo local. O resultado do uso seria comparado qualitativamente, além do rendimento e economicidade, elaborando-se um laudo, assinado pelo órgão e pelos representantes das marcas. Não se conhece, ainda, julgamento das Cortes de Contas considerando regular o procedimento. Nem irregular.
VI - Amostras do produto
Um dos temas polêmicos, na licitação, é a possibilidade de ser exigida ou não amostra do produto. Com freqüência, apontam os menos atentos a existência de acórdãos controvertidos sobre o assunto, nos Tribunais de Contas.
A controvérsia se esgota com o exame detido dos julgados, evidenciando a possibilidade da adoção dessa sistemática quando for observado o seguinte:
a) a descrição do produto, bem como dos critérios que serão aferidos na amostra, não pode ser subjetiva, isto é, não contrastável pelo senso comum mediano;
b) a amostra do produto não pode ser exigida como condição de habilitação do licitante, pois nessa fase são aferidas, em princípio, as condições do licitante e não do objeto que oferece;
c) a exigência da amostra encontra arrimo jurídico na primeira parte do art. 43, inc. IV, da Lei no 8.666/93, quando determina que a Comissão de Licitação deverá, na fase de julgamento da proposta, "verificar a conformidade de cada proposta com os requisitos estabelecidos no edital". Esse é o momento jurídico mais adequado para a Comissão verificar se o produto que o agente pretende oferecer é efetivamente o pretendido pela Administração;
d) a apreciação das amostras, se possível, deve ser feita em sessão pública, com a presença dos licitantes interessados. Observe-se que não há prescrição legal nesse sentido, sendo razoável a adoção do procedimento proposto com base nos princípios agasalhados pela Lei nº 8.666/93.
Uma vez testada a amostra, sempre que possível deve ser ela guardada pela Administração para confronto de sua qualidade com a dos produtos que vierem a ser entregues. (7)