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A influência de Beccaria na Lei nº 9.455/97

Agenda 30/10/2003 às 00:00

Sumário: 1. Intróito: O legado de Beccaria para a Humanidade; 2. Dos conceitos e da finalidade precípua da tortura; 3. Breve digressão sobre a evolução histórica da tortura; 3.1. Da tortura instituída; 3.2. Da progressiva rejeição da tortura, graças à influência de Beccaria, à sua plena vigência na clandestinidade; 4. Requisitos legais do crime de tortura; 5. Das modalidades legais de tortura; 6. Natureza jurídico legal do crime de tortura; 7. Conclusão; 8. Bibliografia.


1.Intróito: O legado de Beccaria para a Humanidade

A tortura é um tema por demais envolvente: para uns causa repugnância e/ou desprezo; para outros, seduz. Destarte resolveu-se escolher este tema tão fascinante e expor um breve estudo sobre como a humanidade visualiza a tortura antes e depois de Cesare Beccaria. É inegável a grandiosidade da contribuição deste homem não só para o Direito Penal, bem como para a própria humanidade, será esta uma das, senão a principal constatação ao final deste estudo.

Beccaria era um homem à frente de seu tempo e com sua obra "Dos Delitos e Das Penas", em 1764, influenciou bastante o mundo jurídico então vigente e tornou-se um marco, por ser a primeira vez que se insurgiu contra a tradição jurídica, em nome da humanidade e da razão; tendo sofrido forte influência de Rosseau, Diderot e Buffon. Além de ter exercido forte influência na reformulação da legislação jurídica da época, estabeleceu conceitos fundamentais/essenciais para as legislações que sucederam, tais como: a necessária proporcionalidade das penas em relação aos delitos cometidos e a condenação da tortura como instrumento de obtenção da confissão (prova do crime), sua obra marcou o declínio da era institucional da tortura, uma vez ter levantado a tese da injustiça e ineficácia desta.

A seguir, tratar-se-á do conceito, da finalidade e da evolução histórica, incluindo o marco que representou o pensamento de Beccaria sobre a tortura para a história humana. Por fim, tratar-se-á da visão atual, presente na Lei 9.455/97 (Lei da Tortura), apesar de se estar bem ciente de que a tortura continua viva e ardente, ainda hoje, na clandestinidade, empregada, dentre outros motivos, como meio para obter confissões, ou mesmo em razão de discriminação racial, religiosa, econômica, ou de qualquer outra natureza.


2.Dos conceitos e da finalidade precípua da tortura

Estabelecer um conceito sobre tortura, não é fácil. Existem diversas modalidades (física, sexual, psicológica, química), entretanto todas contêm a mesma essência: agem contrariamente à vontade do indivíduo, infligindo-o uma profunda e angustiante dor.

Diversos são também os motivos que levam o ser humano a torturar outro: pode ser com o intuito de obter uma confissão ou uma delação, finalidade esta probatória ou processual; pode servir de castigo, tortura punitiva; ou ter cunho discriminatório, racial, religioso, ou outro qualquer. Afinal, não faltam pretextos para se torturar um ser humano.

O dicionário de Aurélio define a tortura com uma única palavra: "suplício/tormento"(FERREIRA, 1985: 472). No entanto, é um vocábulo impregnado de significação. Outrossim, a enciclopédia Delta Larousse é sintética: "violenta dor física a que se submete alguém"(DELTA, 1982: 2044). Tudo é muito pouco para definir uma palavra capaz de gerar ações tão desumanas, degradantes e humilhantes ao ser humano.

A Convenção contra a Tortura e outros tratamentos ou castigos cruéis, desumanos ou degradantes, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, aos 10 de dezembro de 1984, define a tortura da seguinte forma:

"qualquer ato através do qual se inflige intencionalmente dor ou sofrimentos severos, seja físico ou mental, sobre uma pessoa com propósitos tais como obter dela ou de uma terceira pessoa informação ou uma confissão, punindo-a por um ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou é suspeita de ter cometido, ou intimidando ou constrangendo a pessoa ou uma terceira pessoa, ou por qualquer razão baseada em qualquer forma de discriminação, sentimento ou aprovação de uma autoridade pública ou outra pessoa agindo em uma capacidade oficial".

A respeito desta Convenção supracitada, percebe-se que o termo tortura não inclui a dor ou o sofrimento resultante, inerente ou acidentalmente, de sanções legais, assim não há ataque algum à prática de tratamentos punitivos fruto de um direito positivo, tal como a pena de chibatada existente na China e em países do Oriente Médio.

Apesar da dificuldade de se estabelecer um conceito exato sobre tortura, tentar-se-á criar a nossa própria definição: tortura é qualquer tratamento degradante, infligido por um ser humano em outro, capaz de provocar dor física ou psicológica, podendo ou não deixar seqüelas permanentes no indivíduo. O mais importante, no entanto, não é estabelecer conceitos; mas, sim, repudiar qualquer que seja o tipo da tortura, independentemente da finalidade para a qual foi empregada, uma vez que nada é capaz de justifica-la.


3. Breve digressão sobre a evolução histórica da tortura

A história da tortura [1] poderia ser dividida, basicamente em três fases (Cf. MATTOSO, 1986: 35-36). A primeira fase é a das atrocidades tribais da dita barbárie pré-clássica. A segunda é a tortura institucionalizada das tiranias e impérios antigos, mediervais e modernos – as colônias. A terceira é a tortura, quase sempre clandestina, das Repúblicas e das Ditaduras contemporâneas. Esta tem sido a divisão, embora um tanto simplificada, adotada pelos historiadores Alec Mellor, francês, e Ryley Scott, inglês.

Na primeira fase, a tortura funciona como ritual de iniciação à vida adulta e à religião, ou de vingança contra os inimigos capturados. O dever do guerreiro era agüentar com bravura e firmeza, sem gritar, nem implorar piedade, e assim, os torturadores procuravam torná-la o mais dolorosa possível, a fim de fazer a vítima fraquejar. Como resultado, a iniciação de um guerreiro em sua tribo, acabava, muitas vezes, em morte, citar-se-ão exemplos: tribos da Guiana iniciavam seus meninos com um dança de açoitamento, aboríngenes da Oceania e nativos da África oriental mutilavam os órgãos genitais, dentre outros rituais primitivos de iniciação à vida adulta.

"As mais antigas civilizações, como a egípcia, babilônica, assíria e persa, tiveram seus castigos devidamente catalogados e classificados. Cerca de 2000 anos antes de Cristo, a chamada pena de talião (olho por olho, dente por dente) já estava presente no código de Dungi (o rei sumério da lei sumária), que inspirou o código de Hamurábi (rei babilônico), que por sua vez teria inspirado a legislação hebraica (Tora ou Pentateuco) e gregas (código turiano, por exemplo)"(MATTOSO, 1986: 37).

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Entre os gregos, a tortura probatória era aplicada tantos aos escravos, quanto aos estrangeiros e cidadãos livres. Demóstenes a descreve como "um meio seguro de obter evidência" (MATTOSO, 1986: 38). Os romanos por sua vez, grandes conquistadores, aperfeiçoaram a herança grega incrementando, praticamente, todos os tipos de suplícios da antiguidade. A tortura probatória, em Roma, era denominada quaestio (Cf. MATTOSO, 1986: 38-39). São exemplos de tormentos empregados pelos romanos: tormentum ignis (do fogo), tormentum famis (da fome), tormentum sitis (da sede), dentre outros.

Dentre as penas capitais, havia a crucificação, que era um método de asfixia lenta e gradual. Muitos foram os cristãos crucificados: Jesus, São Pedro e Santo André, são exemplos. Com a perseguição aos seguidores de Cristo, abriu-se uma nova faceta para a tortura probatória: "em vez da confissão de um crime, o que se exigia era a renegação da fé" (MATTOSO, 1986: 40).

3.1. Da tortura instituída:

A segunda fase é a personificação da tortura institucionalizada com a Santa Inquisição. O termo inquisitio, também significa inquérito, investigação ou interrogatório e tornou-se sinônimo dos Tribunais do Santo Ofício. Destarte, revelou-se uma nova faceta da tortura: a intimidação.

Vale a pena ressaltar que a tortura não era monopólio da igreja; uma vez que, ainda na Idade Média, os Estados europeus incorporaram torturas probatórias e/ou punitivas. A Igreja reprovava a tortura feita por tribunais civis e exigia a imunidade do clero aos suplícios judiciários.

A obra mais notória sobre o uso da tortura pela Igreja é "O Manual dos Inquisidores" de Nicolau Emérico. Esta obra traz o seguinte sobre a finalidade deste suplício: "aplicar-se-lhe-á a tortura, a fim de lhe poder tirar da boca toda a verdade" (EMÉRICO, 1972: 42) e a seguir complementa "tortura-se o acusado, com o fim de o fazer confessar seus crimes" (EMÉRICO, 1972: 63).

A quaestio romana (MATTOSO, 1986: 44) foi herdada pela França, que, não satisfeita, a aperfeiçoou em duas categorias: a question préparatoire (preparatória) e a question préalable (prévia). Aquela é a que ocorre antes da confissão do crime; esta é a prévia à condenação capital, com o intuíto de obter delação dos supostos cúmplices. De acordo com o grau de severidade, a question se subdividia ainda em ordinaire, que significava dose normal, e a extraordinaire, que seria a dose dupla.

Países como Inglaterra, Alemanha e Rússia também se utilizaram fartamente da tortura laica e profana, a fim de compensar a falta de uma Inquisição soberana. "Os tribunais de Inquisição não seguiam ordem jurídica alguma e os processos não obedeciam às formalidades do Direito. Estimulava-se a delação, que formalizava a peça acusatória. A denúncia oral fazia-se com as mãos sobre o Evangelho, como juramento e, a partir daí, o inquisidor tramitava o processo, mantendo oculta a identidade do denunciante. A obrigação de denunciar os hereges era permanente" (EVARISTO, 1986: 287-288).

Em suma, a Inquisição virou sinônimo de tortura e, realmente, fez jus à fama, visto as condenações à fogueira terem virado rotina e os tribunais eclesiásticos terem se espalhado por toda a Europa.

3.2. Da progressiva rejeição da tortura, graças à influência de Beccaria, à sua plena vigência na clandestinidade

Com a evolução dos tempos, a Igreja envolveu-se com as idéias humanistas e minorou os procedimentos mediervais, estabeleceu igualdade de todos perante a Justiça [2] e, assim, restringiu a prática de torturas e detenções preventivas.

"O humanista cristão João Vives, em seu comentário a De Civitatte Dei, de Santo Agostinho, rejeita decididamente a tortura: como podem viver tantos povos, inclusive bárbaros, como dizem os gregos e latinos, que permitem torturar durissimamente um homem de cujos delitos se duvida? Nós homens dotados de todo senso humanitário, torturamos homens para que não morram inocentes, embora tenhamos deles mais piedade do que se morressem: muitas vezes os tormentos são de longe, piores do que a morte..." (EVARISTO, 1986: 39).

Apesar de vários eventos terem contribuído para o declínio da era institucional da tortura, mas, talvez, o principal tenha sido a publicação da obra "Dos Delitos e Das Penas" de Cesare Beccaria, em 1764. Não só este, mas também outros iluministas, como Voltaire e Bayle, posicionaram-se contrariamente à tortura. Levantar-se-ia, então, a tese da injustiça e ineficácia da tortura. No entanto, em 3 de fevereiro de 1766, o Santo Ofício incluiu no Index de livros proibidos a magnífica e revolucionária obra de Beccaria.

Poder-se ia dividir a história da tortura antes e depois de Beccaria, este foi extremamente à frente do seu tempo: denunciou a crueldade dos suplícios e julgamentos secretos e a prática da tortura como meio de obter a prova do crime – confissão. Defendeu a nobre idéia de homens iguais e livres perante as leis. Destarte, Beccaria exerceu influência decisiva na reformulação da legislação vigente à época e estabeleceu os conceitos fundamentais das legislações que se sucederam, inclusive na atual Lei 9.455/97 (Lei da Tortura).

Segundo os ensinamentos de Beccaria (2000: 39), quando for utilizada a tortura como meio para abstrair a inocência ou culpa de um indivíduo prevalecerá a lei do mais forte: "entre dois homens, igualmente inocentes ou igualmente culpados, o mais robusto e corajoso será absorvido; o mais débil, contudo, será condenado" (BECCARIA, 2000: 39). Na síntese de seu pensamento, a tortura era vista como um meio certo de condenar o inocente e absorver o criminoso forte, tudo se resumiria à mensuração da força física do pretenso culpado. Ao inocente tão-somente restará gritar que é culpado, a fim de se cessarem os tormentos a ele infligidos; o mesmo meio usado para distinguir o inocente do criminoso, fará desaparecer qualquer distinção entre ambos. Assim, quem tem mais a perder com a tortura é o inocente que poderá terminar confessando um crime que não cometeu ou, se tiver sorte, poderá ser absolvido, mas só depois de já ter passado por vários suplícios, que não os fez por merecer.

Apesar de formalmente extinta, a tortura entra, no século XX, em sua terceira fase: a do apogeu extra-oficial ou clandestino. Ainda hoje, é grande a influência de Beccaria nas legislações vigentes, no entanto, a tortura ainda sobrevive, principalmente nos países subdesenvolvidos e/ou nos em via de desenvolvimento. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 condena a prática da tortura (art.5.º), fundamentada na dignidade da pessoa humana e nos direitos humanos [3]. Vige, também, a Lei 9455/97 (Lei da Tortura) que afirma o seguinte no art. 1.º, §6.º : "o crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia". No entanto, são poucos os casos de tortura oficialmente registrados no Brasil, uma vez que quem é torturado sente-se quase sempre intimidado para denunciar os culpados; não é tão-somente uma questão de falta de coragem, mas também de medo de represálias por parte dos torturadores ou de membros das organizações/corporações da qual estes últimos, normalmente, fazem parte.

Quem é torturado quer esquecer o suplício, quem torturou quer a impunidade de uma legislação que vige, mas não obtém a eficácia social almejada [4]. A ineficácia da Lei da Tortura deve-se sobretudo à tolerância dispensada à prática deste tormento, o qual mascara o conflito de duas força poderosas: a luta do homem pela dominação de seus semelhantes, por poder e prestígio, e os direitos humanos [5].


4. Requisitos legais do crime de tortura

1.º Sujeito ativo com poder de controle sobre sujeito passivo (vítima);

2.º No art. 1.º, I, da Lei 9.455, o crime é comum, uma vez que o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa;

3.º No art. 1.º, II, do supracitado diploma legal, o crime é próprio, porque apenas as pessoas na posição de guarda, poder ou autoridade podem praticá-lo;

4.º É imprescindível ser a vítima ser humano;

5.º Necessita estar viva, cadáver não pode ser torturado;

6.º A ilegalidade do constrangimento infligido na vítima.


5. Das modalidades legais de tortura

Em 7 (sete) de abril de 1997, passou a viger a Lei n.º 9.455 (Lei da Tortura), esta não só define legalmente o que deve ser considerado como tortura, bem como estabelece as finalidades de tal ato e cria até tipificação jurídica para a tortura agravada (art 1º, § 4º, incisos I, II e III), na qual a pena deverá ser aumentada de um sexto até um terço, caso o crime seja cometido por agente público; se for cometido contra criança, gestante, deficiente e adolescente ou se o crime for cometido mediante seqüestro. Outrossim, há a tortura qualificada, com um aumento na pena de reclusão, que é de dois a oito anos, estabelecida para a figura típica da tortura simples, no art 1º, caput, desta lei ora analisada, se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, uma vez que, neste caso, a pena em abstrato passará a ser de quatro a dez anos de reclusão; caso o resultado seja a morte, a sanção aumentará mais ainda, com a reclusão de oito a dezesseis anos.

Há também a figura da tortura imprópria, no art 1º, §2º, da Lei da Tortura, segundo a qual quem ficar omisso em face deste delito, quando tinha o dever de evitá-lo ou de apurá-lo, incorre em pena de detenção de um a quatro anos. Observa-se que do sujeito ativo, deste parágrafo, esperar-se-ia conduta capaz de evitar o crime ou de averiguar os fatos e apurar o ocorrido, não sendo necessário ter sido ele o causador do resultado, bastando ter se omitido, quando deveria agir. Destarte, a pena, neste caso, não será de reclusão; mas, sim, de detenção.

A definição legal do crime de tortura, bem como a finalidade pela qual é aplicada, está presente no art 1º, da Lei 9.455/97:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I-constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a)com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b)para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c)em razão de discriminação racial ou religiosa.

II-submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena- reclusão, de dois a oito anos.


6. Natureza jurídico-legal do crime de tortura

O crime de tortura é comissivo, via de regra, no entanto há uma exceção: é omissivo em relação às autoridades que não evitam, nem determinam, a apuração do fato, quando tinham o dever legal de o fazer (art. 1.º, §2.º, da Lei 9.455/97), crime este anteriormente classificado como tortura imprópria.

É de dolo específico, o agente tem a intenção de torturar desde o princípio, ou de preterdolo, quando o resultado vai além da simples tortura e quase sempre é assim.

Consuma-se com a prática da conduta prevista no núcleo verbal (ação ou omissão), independendo do resultado. Se o agente tortura para obter determinada informação, o crime já está consumado. Se obtém a informação e dela faz uso para o prática de outro delito, responde por concurso material de crimes.


7. Conclusão

O legado deixado por Cesare Beccaria influenciou e influencia desde as legislações vigentes à sua época às do mundo hodierno, uma vez que ele foi o precursor no tratamento de tortura como algo humilhante, degradante e, acima de tudo, anti-humano.

Na história brasileira, houve fases de verdadeiro terror, à época da Ditadura Militar, em que a tortura era utilizada indiscriminadamente como meio de obter a confissão de delitos, muitas vezes, imputados e, às vezes, nunca cometidos pelo suposto criminoso e, sob o pretexto da promoção do bem comum, direitos e liberdades dos cidadãos brasileiros foram aniquilados. Acreditava-se na eficácia da tortura como método de apuração de fatos considerados crimes contra a segurança nacional. E, sob tal argumento, a tortura foi intensamente utilizada nas investigações policiais e militares, tendo alguns destes resquícios da Ditadura Militar permanecido até hoje.

Doravante, desde 1997, temos a Lei da Tortura vigendo no Brasil, no entanto sua eficácia é por demais incipiente e limitada. É notório que a tortura perdura no seio dos estabelecimentos prisionais brasileiros e que pouco tem sido feito para aplacar este mal, prevalecendo a impunidade em detrimento da norma legal. Resta-nos lutar para que os direitos humanos, presente na Carta Magna, não sejam tão brutalmente desrespeitados e para que seja dada a devida importância à Lei 9.455/97, a fim de coibir o delito de tortura.


Notas

01. "O suplício faz parte de um ritual. É um elemento da liturgia punitiva, e que obedece a duas exigências. Em relação à vítima, ele deve ser marcante: destina-se, ou pela cicatriz que deixa no corpo, ou pela ostentação de que se acompanha, a ‘purgar’ o crime, não reconcilia; traça em torno, ou melhor, sobre o próprio corpo do condenado sinais que não devem se apagar; a memória dos homens, em todo caso, guardará a lembrança da exposição, da roda, da tortura ou do sofrimento devidamente constatado" (FOUCAULT, 2001: 31-32).

02. Já afirmava Piero Calamandrei: "Para encontrar a justiça, é necessário ser-lhe fiel. Ela, como todas as divindades, só se manifesta a quem nela crê" (CALAMANDREI, 2000: 4)

03. Ihering (2000:27) afirmava que "enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injustiça – e isso perdurará enquanto o mundo for mundo", ele não poderá prescindir de luta. A vida do direito é a luta: luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos." E a seguir complementa: "Todos os direitos da humanidade foram conquistados pela luta; seus princípios mais importantes tiveram de enfrentar os ataques daqueles que a eles se opunham; todo e qualquer direito, seja o direito de um povo, seja o direito de um indivíduo, só se afirma por uma disposição ininterrupta para a luta." (2000:27).

04. "As penas que vão além da necessidade de manter o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza, e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a liberdade que o soberano propiciar aos súditos" (BECCARIA 2000: 20).

05. Segundo Piero Calamandrei (2000: 268), "a justiça é um fluido vivo que circula nas fórmulas vazias da lei como o sangue nas veias".


Bibliografia:

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. São Paulo: Martin Claret, 2000.

CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Código Penal. 40.º ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou castigos cruéis, desumanos ou degradantes. Aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1984.

EMÉRICO, Nicolau. O Manual dos Inquisidores. Lisboa: Edições Afrodite, 1972.

EVARISTO, D. Paulo. Brasil Nunca Mais: Um Relato para História. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 287-288.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira S. A., 1985.

FOULCAUL, Michel. Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito. São Paulo: Martin Claret, 2000.

MATTOSO, Glauco. O que é tortura. São Paulo: Nova Cultural, Brasiliense, 1986.

Novíssima Enciclopédia Delta Larousse. v. 7. Rio de Janeiro: Delta, 1982, p.2044

Sobre a autora
Adriana de Andrade Roza

acadêmica de Direito na UFPE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROZA, Adriana Andrade. A influência de Beccaria na Lei nº 9.455/97. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 118, 30 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4313. Acesso em: 23 dez. 2024.

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