Com uma inovação polêmica, o Estatuto da Família foi aprovado pelo Congresso, trazendo um conceito de família que vai aquém do almejado, constituindo a entidade apenas o casal formado por um homem e uma mulher.
A medida legal trouxe revolta popular pela estreita definição na qual se cercou a pluralidade da entidade familiar, rechaçando estruturas formadas por casais homoafetivos, poligâmicos, unicelulares, ou de qualquer outra forma diferente da tradicional acepção disposta em lei.
Não abordaremos, aqui, o fato de terem sido esquecidas tais estruturas sociais e as razões legislativas de tal preferência em detrimento dos grupos familiares diversos, pois muito provavelmente cada tribo social já o fez, ou estará fazendo, nesse momento, seu discurso defensivo contra a definição legal, seja por questões de cunho histórico, político, racial, de gênero etc.
O que se coloca, aqui, é um ponto jurídico e de convergência que tangencia todos esses discursos: a intervenção estatal na vida privada da estrutura familiar.
Existe no ordenamento jurídico brasileiro um princípio conhecido como “Mínima intervenção estatal nas relações familiares”. Não se trata de mera abstração no plano das ideias ou da criatividade principiológica do Direito, que vomita, frequentemente, princípios estranhos. O referido luminar já se encontra positivado em nossa legislação de forma expressa no artigo 1513 do Código Civil:
Art. 1.513. É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.
Objetivo, o artigo é responsável por dizer exatamente o que diz. Não há muito espaço para meandros interpretativos que permitam conclusão diversa senão a de que descabe ao Estado propor seu poder de império sobre a intimidade sagrada da família, revolvendo as estruturas afetivas com a frieza das normas.
O legislador ordinário de 2015, entretanto, esqueceu o que escrevera em 2002 e se contradisse.
Nesse ponto, vale destacar, não é admissível que voltasse atrás no que legislara em outra época, mesmo porque lhe faltam poderes para mudar o ordenamento jurídico nesse aspecto. Afinal, não podemos esquecer que a sacralidade da família e a repulsa a toda forma de intervenção sobre ela encontra guarida, principalmente, na Constituição Federal. É a Carta Magna que, em seu artigo 226, deixa clara a pluralidade de estruturas familiares da sociedade brasileira, as quais, sendo tão heterogêneas, não foram sequer por ela, a matriz legislativa orientadora do direito brasileiro, conceituadas ou limitadas. Vejam-se os parágrafos do artigo 226 abaixo:
- 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
- 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
Interessante notar o “também” colocado no §4º, em complemento ao parágrafo anterior, o qual não está ali por acaso. Trata-se de evidente intenção legislativa constitucional de criar um rol aberto à estrutura familiar, declarando à sociedade que a lei não seria capaz de criar limites à instituição da família. Lembremos: “É função da interpretação desvendar o sentido do texto constitucional; a interpretação é, assim, uma maneira pela qual o significado mais profundo do texto é revelado, para além mesmo do seu conteúdo material” (SILVA, 2010, p. 15).
Porém, o mais importante se encontra mesmo, no caput do artigo 226, ao estabelecer a família como a base da sociedade. Nessas palavras, traz a Constituição, como proferido pelo STF na ADIN n.º 4277/DF, um “anímico e cultural conceito de família que se orna a cabeça do art. 226 da Constituição”.
Ora, sendo a família a base de uma sociedade, não se pode esperar que se contorça a restritos limites impostos pelo legislativo, e, sim, que siga o que os traços culturais delineiem na sociedade. A família é, portanto, como a sociedade livremente a constrói.
“Constitucionalmente falando”, a família está vinculada ao que é a nossa sociedade: plurívoca, diversificada em seus valores e distinta pela cor, sexo, opinião e atos de cada um de seus membros. Uma orquestra de muitos tons, uma tela de infinitas cores, uma equação de inúmeras variáveis.
A conceituação do que deve ser família, sempre que desprovida de seu necessário e constitucional atrelamento ao corpo social, rompe com o vínculo estabelecido pela Constituição e desborda numa inconstitucionalidade.
Mas, a inconstitucionalidade não é só interna, ocasionada pelo rompimento do elo constitucional família-sociedade. É também uma afronta ao direito humano de não se ver privado pelo Estado de sua liberdade de escolher o modus vivendi; de não ser interrompido na trajetória da vida privada que somente cada um de nós pode trilhar, com os passos que cada consciência decidir.
O Pacto de San José da Costa Rica, em seu artigo 11, item 2, veda a ingerência arbitrária na vida privada do ser humano, resguardando-o com tal norma não apenas da violação perpetrada por outro cidadão, mas da violação hipoteticamente perpetrada pelo Estado: Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.
A Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, em seu artigo 8º, é firme também ao proteger a vida familiar e privada, sendo ainda mais profunda ao estabelecer que não basta para a legitimação estatal que seu comando advenha de uma lei, mas essa lei, ainda soberanamente emanada, seja necessária às circunstancias da sociedade e de sua ordem pública:
ARTIGO 8° Direito ao respeito pela vida privada e familiar
1.Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2.Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.
Aqui, no legislativo brasileiro, ao que parece, os direitos humanos talvez sejam aquela persona non grata típica das grandes famílias.
A promulgação do Estatuto da Família, sem ingressar em qualquer mérito social, mas eminentemente jurídico, falha com direitos humanos primordiais da liberdade da vida íntima, proteção privada de ingerências estatais e autonomia da entidade familiar. Uma falha de caráter jurídica, filha de uma falta de caráter moral dos seus promulgadores moralistas. Inconstitucional que é, nasceu letra morta e afrontosa a todos os precedentes jurisprudenciais do STF, os quais já declararam a existência legal dos mais diversos tipos de conjuntos familiares.
Definitivamente, é uma lei que não se amolda ao “reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, Preâmbulo).
Referências:
SILVA, José Afonso da – Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2010.