1 INTRODUÇÃO
A Constituição da República de 1988 surgiu imbuída do elevado propósito de, finalmente, corrigir as sérias distorções que, desde a emergência do Estado brasileiro, macularam o ingresso de servidores na Administração Pública.
Além de consagrar, no inciso I do art. 37, o princípio da ampla acessibilidade, conferindo-lhe maior abrangência do que as Constituições anteriores, estatuiu que todo agir administrativo deve ser pautado pela estrita observância dos ditames da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, posteriormente, com o advento da EC n. 19/98, eficiência. Instaurou, ademais, importante marco ao firmar, no art. 37, II, o concurso público de provas ou de provas e títulos como a grande regra a ser reverenciada para a investidura tanto em cargos quanto em empregos públicos.
Em que pese o direito ao concurso público não esteja previsto no Título II da Carta Magna, ele cumpre todos os requisitos necessários para ser qualificado como verdadeiro direito fundamental dos cidadãos, consoante se demonstrará no presente artigo. A definição dos direitos fundamentais, afinal, é materialmente aberta, consoante se infere do art. 5º, § 2º, da Lei Maior, bem como da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
De início, será analisado o princípio da ampla acessibilidade e apreciada sua evolução história no âmbito internacional e no direito brasileiro. Em seguida, este estudo se voltará a uma leitura crítica sobre a possível existência de um “princípio do concurso público”. Subsequentemente, será destacada a importância do certame público como instrumento de concreção dos princípios regentes da Administração Pública e, por fim, serão indicadas, de modo pormenorizado, as razões pelas quais ele ostenta a qualidade de direito fundamental.
2 O PRINCÍPIO DA AMPLA ACESSIBILIDADE AOS CARGOS, EMPREGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS
A Carta Política de 1988, no inciso I de seu art. 37, declara solenemente que “os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei”.
O enunciado acima, como bem afirma José Afonso da Silva, contempla duas normas. Uma delas, inserta no texto constitucional com a superveniência da EC n. 19/98, possibilita o acesso de estrangeiros e tem eficácia limitada, visto que “o exercício do direito nela estatuído depende de forma a ser estabelecida em lei” [1].
Já a norma que reconhece acessibilidade aos brasileiros possui eficácia contida, ou seja, tem aptidão para produzir efeitos diretos e imediatos, mas pode vir a ter sua amplitude reduzida por meio de atividade legiferante posterior. Não depende da lei ordinária a criação do direito nela previsto, mas esta poderá restringi-lo, ao prever requisitos para o seu exercício. Enquanto não for editada, portanto, é plena a ordem constitucional, de modo que a acessibilidade haverá de ser assegurada da forma mais ampla possível[2].
Por tais razões, a doutrina, acertadamente, proclama que essa última norma corporifica verdadeiro princípio: o da ampla acessibilidade aos cargos, empregos e funções públicas[3], também denominado de princípio do acesso universal[4], da igualdade no acesso – por Canotilho, referindo-se a previsão semelhante da Constituição Portuguesa[5] – ou, simplesmente, da acessibilidade[6]. Com efeito, ela se enquadra, perfeitamente, na célebre definição de Robert Alexy, segundo o qual princípios são mandamentos de otimização, que determinam que “algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes” [7].
Não por outro motivo, como melhor se verá adiante, não é irrestrita a liberdade conferida ao legislador infraconstitucional para a fixação de requisitos ao acesso a cargos, empregos ou funções públicas, porquanto anuir com tal possibilidade implicaria fazer tábula rasa dos superiores desígnios consagrados pelo Poder Constituinte. Muito pelo contrário, a estipulação dos critérios deverá ser fruto de juízo de proporcionalidade, justificando-se apenas na medida estritamente necessária à harmonização do princípio em tela com outros igualmente prestigiados pelo ordenamento jurídico.
A lei a que se refere o inciso I do art. 37, por conseguinte, como ensina José Afonso da Silva, encontra limitação no próprio dispositivo, já que os requisitos por ela fixados não poderão impedir “a correta observância do princípio da acessibilidade de todos ao exercício de função administrativa”[8]. Idêntica é a intelecção de Celso Ribeiro Bastos, que argumenta:
Esta relação existente entre o que, de um lado, se constitui num comando principiológico, e, de outro, no que se traduz numa mera ressalva ao caráter absoluto do anterior, autoriza-nos a concluir, sem temor de erro, que a tarefa legislativa de traçar requisitos para o provimento de cargos, empregos ou funções há de ser exercida de forma extremamente restritiva[9].
A eminente Ministra do STF Cármen Lúcia Antunes Rocha, em sua obra “Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos”, dedica capítulo específico ao princípio da acessibilidade, definindo-o como o “direito que tem o administrado de ingressar no serviço público, na Administração como agente, e, por essa forma, de participar da gestão da coisa pública pelo provimento de cargos, funções e empregos”[10].
Segundo a autora, esse princípio está umbilicalmente vinculado à própria noção de Democracia, uma vez que, “sendo o poder democrático titularizado legitimamente pelo povo, cabe-lhe participar ativamente de seu desempenho”. Torna-se imperativa, então, “a participação plural e universal dos cidadãos na estrutura do Poder Público”[11], inclusive na qualidade de servidores.
Nesse diapasão, a jurista identifica três fundamentos para o princípio da acessibilidade, todos desdobramentos do princípio democrático: o princípio da participação política, visto que o provimento de cargos, empregos ou funções constitui forma de participação na estrutura real do Poder, consistindo o direito de a eles aceder no exercício político da cidadania; o princípio republicano, pois a República exige que a coisa do povo seja exercida, efetiva, imediata e permanentemente, segundo o seu interesse, competindo-lhe, por isso, participar da estrutura institucionalizada para a realização das políticas públicas; e o princípio da igualdade jurídica, que impõe o oferecimento de iguais oportunidades aos cidadãos, respeitadas suas diferenças[12].
3 ESCORÇO HISTÓRICO
3.1 Evolução do princípio da ampla acessibilidade no âmbito internacional
O princípio da ampla acessibilidade encontra sua raiz histórica no alvorecer do Constitucionalismo Clássico. Essencialmente atrelado à noção de soberania popular, emergiu em conjunto com os direitos fundamentais de primeira dimensão. Nessa linha, leciona Fabiano Holz Bezerra que, “ao lado das liberdades públicas, foram consagrados direitos de participação política, nos quais se enquadra o direito em foco” [13].
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 firmou expressamente o princípio em comento, ao prever, em seu art. VI, que:
A Lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos (grifo acrescido).
Essa norma foi repetida nas Constituições francesas, desde a de 1793[14], e, como corolário de tal reconhecimento, desenvolveu-se, na França Napoleônica, o processo de seleção mediante concurso público[15].
Na Inglaterra, por sua vez, a Ordenança de junho de 1870 - editada com o escopo de assegurar a prestação de serviços de qualidade a preço menor, e, em consequência, incrementar a eficiência da Administração - teve como ponto central a exigência incondicional do concurso público para todas as funções, excetuados os técnicos especializados e os nomeados pela Coroa[16].
Outro marco na materialização da ampla acessibilidade deu-se em 1872, nos Estados Unidos, quando foi editada a lei que institui o Merit System, com o intuito de limitar o poder arbitrário dos governantes na admissão de pessoal. Esse sistema surgiu em oposição ao Spoil’s System, que autorizava a dispensa em massa de servidores públicos a cada nova eleição do Chefe do Poder Executivo, para que pudessem ser substituídos por outros de sua estrita confiança política. Posteriormente, em 1883, foi aprovada a Lei do Serviço Civil (Pendleton Act), “que objetivou estabelecer regime em que predominasse a comprovação de capacidade, sem atender a considerações de ordem política ou religiosa”[17].
Em 1948, o princípio foi novamente prestigiado pelo art. 21 (2) da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, o qual preceitua que “toda pessoa tem direito de aceder, nas condições de igualdade, às funções públicas de seu país”[18].
3.2 Evolução do princípio da ampla acessibilidade no direito brasileiro
No Brasil, o princípio da ampla acessibilidade vem sendo formalmente previsto pelas Constituições desde o período imperial. Sua efetivação, entretanto, foi em grande parte prejudicada por não terem sido estabelecidos mecanismos realmente assecuratórios de sua fiel observância prática.
A Carta de 1824, em seu art. 179, XIV, preconizava que “todo o cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos, ou militares, sem outra diferença, que não seja dos seus talentos, e virtudes”. Já a de 1891 enunciava, em seu art. 73, que “os cargos públicos civis ou militares são acessíveis a todos os brasileiros, observadas as condições de capacidade especial que a lei estatuir [...]”. Nenhuma delas, porém, dispôs acerca de processo seletivo de candidatos, razão pela qual, como registra Gustavo Alexandre Magalhães, “permaneceu vigente a antiga prática de ingresso na função pública mediante livre escolha pelas autoridades públicas” [19].
A Constituição de 1934 foi precursora ao prever o concurso. Exigia-o, contudo, tão-somente para a primeira investidura nos cargos organizados em carreira e nos demais que a lei estipulasse, além de permitir que fosse integrado apenas por exame de títulos[20]. Ressalte-se, ademais, que não estipulou requisitos para contratações temporárias.
Sob sua égide, foi editada, em 1936, a Lei n. 183, cujo art. 12 vedou a admissão de pessoal com vínculo contratual para o serviço público, salvo nas hipóteses de cargos técnicos que não pudessem ser incluídos no quadro do funcionalismo e de serviços de natureza transitória, assim considerados os de duração inferior a um ano. Tais contratações seriam submetidas à apreciação do Presidente da República.
No mesmo ano, foi elaborada a Lei n. 284, que autorizava a prestação de serviços públicos por servidores extranumerários, não ocupantes de cargo efetivo, os quais vieram a ser posteriormente regulados pelo Decreto-Lei n. 240/38. Este tratou, ainda, da figura do “pessoal para obras”, igualmente não concursado.
A Carta de 1937 inovou negativamente em relação à anterior, ao não mais admitir expressamente a previsão em lei ordinária de concurso para o provimento de cargos públicos diversos dos de carreira, bem como ao outorgar ao Poder Executivo competência para estabelecer requisitos de acessibilidade por meio de regulamento, o que ampliou ainda mais a margem para a prática de arbitrariedades[21]. Tais orientações foram rejeitadas pelo Constituinte de 1946[22], que seguiu a mesma linha adotada em 1934.
À época, era possível à Administração Pública admitir servidores temporários tanto na qualidade de extranumerários, quanto na de interinos. Enquanto os primeiros, segundo Hely Lopes Meirelles, eram admitidos precariamente para o desempenho de funções eventuais ou extraordinárias, os interinos eram nomeados em caráter provisório, para substituir funcionários do quadro que se encontrassem afastados, ou para ocupar cargos enquanto não providos por nomeação efetiva[23].
Na realidade, entretanto, a admissão de extranumerários e interinos voltava-se à burla ao concurso público. Conforme Di Pietro, eles exerciam funções que, normalmente, tinham a mesma denominação, remuneração e atribuições dos cargos públicos correspondentes, “sempre serviram aos propósitos de apadrinhamento próprios da Administração Pública brasileira, em todos os tempos”[24].
Reconhecendo a completa deturpação que marcou o ingresso dos sobreditos agentes, a Constituição de 1946 efetivou os interinos que contavam com mais de cinco anos de exercício até sua promulgação e equiparou aos funcionários públicos, para efeito de estabilidade, aposentadoria, licença, disponibilidade e férias, os extranumerários que estavam desempenhando função de caráter permanente há mais de cinco anos ou tinham se submetido a concurso ou prova de habilitação.
Desse modo, o Constituinte consolidou tendência já verificada na legislação infraconstitucional predecessora, que destinava, cada vez mais, aos extranumerários vantagens e deveres até então exclusivos de efetivos. Citem-se, a título de exemplo, os Decretos-Leis de números 3.768/41, 5.175/43, 5.631/44, 7.502/45, 9.166/46 e 9.400/46, por meio dos quais lhes foram concedidos direitos a aposentadoria, licenças, férias, diárias e auxílio-funeral, permitido o exercício de cargos em comissão e estendidos preceitos disciplinares constantes no Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União. A esse respeito, anotou Philadelfo Pinto da Silveira que, “uma vez desvirtuada a finalidade da criação do pessoal extranumerário, naturalmente aquilo que inicialmente lhe fora negado, espontaneamente começou a ser conferido, como verdadeira imposição da conjuntura”[25].
Servidores extranumerários também passaram a ser enquadrados como efetivos por meio das leis n. 1.711/52, n. 2.284/54, n. 3.483/58, e, finalmente, pela Lei n. 3.780/60, mediante a qual foi formalmente extinta tal categoria. Na prática, porém, não houve mudanças significativas, já que esse diploma manteve a possibilidade de contratação de temporários para a execução de atividades transitórias, bem como de pessoal para obras e, ainda, especialista temporário[26].
O texto constitucional de 1967 representou um avanço ao exigir o concurso para qualquer investidura em cargos da Administração, inclusive os isolados, e afastar a possibilidade de seleção com base unicamente em títulos[27]. Além disso, condicionou a aquisição da estabilidade à prévia aprovação em certame público (art. 99, § 1º) e determinou que aos servidores temporários e aos contratados para funções de natureza técnica ou especializada fosse aplicada a legislação trabalhista, com o objetivo de evitar sua conversão em funcionários públicos (art. 104), bastante corriqueira no regime anterior.
Houve, todavia, notável retrocesso com a outorga da Constituição de 1969, a qual voltou a prever o concurso público somente para a primeira investidura e chegou a admitir que o legislador ordinário previsse hipóteses em que poderia ser dispensado[28]. Ademais, repetiu a deficiência da antecedente de dispensar o certame não apenas para “servidores admitidos em serviços de caráter temporário”, como também na genérica hipótese de contratação para “funções de natureza técnica especializada” (art. 106), acrescendo que o regime jurídico a eles incidente seria estabelecido em lei especial. Com relação a essa Carta, afirma Dallari que:
[...] a redação (dolosamente) defeituosa do texto de 1969, art. 97, § 1.º, dizendo que apenas a “primeira investidura”, somente em “cargos públicos” é que dependia de aprovação em concurso público, “salvo os casos indicados em lei”, permitiu toda sorte de burlas e abusos, gerando um empreguismo desenfreado, um super inchamento dos quadros de pessoal, um descontrole completo do funcionalismo e a desmoralização do serviço público[29].
Como não era exigido o concurso para empregos públicos, o regime celetista, autorizado pelo Decreto-Lei n. 200/67 e pela Lei n. 6.185/74, converteu-se em grande válvula de escape para o ingresso de servidores sem prévia submissão a exame de mérito, a ponto de os estatutários, conforme assevera Gustavo Alexandre Magalhães, tornarem-se “exceção no âmbito do Poder Público”[30].
Para agravar a situação, foi extremamente alargada na práxis a abertura deixada pelo texto constitucional para a admissão de pessoal temporário. Esta servia, precipuamente, como subterfúgio para contornar a exigência do certame público e era utilizada, em larga escala, para o ingresso de servidores permanentes[31].
A Constituição de 1988, em contraponto com as precedentes, estendeu, no seu art. 37, I, o alcance do princípio da ampla acessibilidade. Esse dispositivo, segundo ressalta Luiz Alberto David Araújo, “preocupou-se em ser o mais abrangente possível, indicando que o comando de igual acessibilidade teria como objeto não só os cargos, mas também os empregos e as funções públicas”[32].
Com o seu advento, ademais, consagrou-se o concurso público como a regra primordial a ser reverenciada por todos os entes administrativos para o provimento não apenas de cargos, mas também de empregos públicos, sem a limitação relativa à primeira investidura[33].
A Lei Maior emergiu, assim, como diploma de projeção contrafática, vocacionado à mudança da realidade extranormativa, com o fim precípuo de evitar a perpetuação de toda a sorte de abusos, fraudes e arbitrariedades que tanto macularam o passado da Administração Pública brasileira.
Posteriormente, em nova reação às tentativas de vilipêndio à regra do concurso público, foi promulgada a EC n. 19/98, a qual esclareceu que os requisitos de acessibilidade devem guardar estrita correspondência com a natureza e complexidade dos cargos ou empregos disputados e assinalou que funções de confiança e cargos em comissão não podem ser destinados a outro propósito que não o exercício de atribuições de direção, chefia ou assessoramento. Antes mesmo da alteração, tais conclusões já poderiam ser extraídas com fulcro nos métodos da hermenêutica constitucional, especialmente a partir da exegese dos princípios consignados no caput e inciso I do art. 37. Sua previsão expressa, no entanto, tem a clara vantagem de servir de importante reforço ao escorreito cumprimento dos ditames traçados pelo Poder Constituinte.
Com sua redação modificada pela sobredita emenda, o art. 37, II, da CF/88, é incisivo ao declarar que:
a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
Conforme se depreende de sua leitura, tal enunciado não exige o certame público para o provimento de funções. Essa omissão, entretanto, justifica-se pelo fato de a Constituição utilizar o vocábulo “função” para expressar duas realidades:
1) As funções de confiança, que, por se destinarem a atribuições de direção, chefia ou assessoramento, demandam o exercício por pessoas da fidúcia do administrador, as quais devem manter prévio vínculo efetivo com a Administração Pública, na qual ingressaram por intermédio de concurso público;
2) As funções temporárias, que envolvem o exercício de atividades que não justificam a criação de cargo ou emprego público ou o ingresso de novos servidores permanentes - como a realização de pesquisa com prazo certo de duração -, ou são destinadas ao atendimento de situações de urgência incompatíveis com a demora que é ínsita à realização do certame.
Quanto aos contratos temporários, a Carta Magna foi extremamente precavida ao delinear os seus requisitos, determinando, no art. 37, IX, que “a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”.
Atualmente, portanto, ressalvadas as nomeações para cargos específicos mencionados na Constituição Federal[34], as contratações temporárias consistem, juntamente com os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração, nas únicas exceções à exigência de concurso público.
Ressalte-se, ainda, que, até mesmo no que concerne a essas avenças especiais, há hipóteses em que deverão ser precedidas do certame - mormente quando não forem requeridas em caráter de urgência -, o que deflui da própria dicção constitucional, em especial do princípio da ampla acessibilidade, que também se aplica às funções públicas, e dos princípios inscritos no caput do art. 37.
4 O “PRINCÍPIO DO CONCURSO PÚBLICO”
É corrente na doutrina o reconhecimento, no bojo do texto constitucional de 1988, da consagração de verdadeiro “princípio do concurso público”, a conformar o ingresso de pessoal nos quadros administrativos.
Ao se analisar, entretanto, a norma que prescreve a obrigatoriedade do certame para investidura em cargos e empregos públicos, inscrita no art. 37, II, da CF/88, percebe-se que tem, na realidade, natureza de regra jurídica.
Com efeito, a norma em foco ordena a realização de um comportamento determinado, diferentemente dos princípios, que traduzem estados ideais de coisas a serem alcançados na máxima medida possível. Presentes os pressupostos que autorizam sua incidência, haverá de ser integralmente satisfeita - ou seja, o concurso deverá ser efetivado, sob pena de nulidade - e, diante de fatos subsumíveis às cláusulas de exceção expressamente previstas na Carta Magna, será afastada. Ela não comporta, portanto, graus variados de cumprimento. Insere-se, desse modo, na categoria das regras, que, segundo Robert Alexy:
[...] são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível[35] (grifo do autor).
Gustavo Alexandre Magalhães, interpretando o art. 37, II, chega a sustentar que dele se pode inferir a existência tanto de uma regra, quanto de um princípio do concurso público. A primeira, conforme leciona, impõe “a aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos como condição intransponível para a admissão de pessoal à função pública [entendida em sentido lato, pois o inciso só abarca cargos e empregos]”. Já o princípio “exige que o acesso aos cargos, empregos e funções públicas seja o mais amplo, universal e técnico possível”[36]. Esse último enunciado, todavia, corresponde à formulação do princípio da ampla acessibilidade, insculpido no art. 37, I, da Carta Magna, e de conteúdo mais vasto do que a regra.
Tanto da regra constitucional quanto do princípio da ampla acessibilidade dimana a exigência de concurso público, mas essas normas não se confundem. A primeira o ordena como procedimento indispensável para a investidura em cargo ou emprego. Será excepcionada, assim, sempre que o ingresso em uma ou outra dessas figuras puder dispensá-lo, o que se verifica com os cargos em comissão e aqueles especificamente indicados pela Constituição Federal, acima referidos. Já a segunda exige que seja assegurada, na maior medida possível, a igualdade de acesso a cargos, empregos e funções públicas.
A contratação por tempo determinado, por exemplo, é, sem dúvidas, modalidade excetiva de ingresso nos quadros da Administração. Isso decorre, principalmente, do requisito “necessidade temporária”, o qual, consoante o supramencionado doutrinador, tem a seguinte implicação:
Somente diante de situações que impossibilitem a realização de concurso público, ou que não justifiquem a nomeação para cargos ou empregos públicos previamente criados por ato legislativo, poderá a Administração proceder à contratação de servidores nos termos do art. 37, inciso IX, da Constituição Federal[37].
O dispositivo que prevê a possibilidade de contratações, entretanto - embora elas possam excepcionar o princípio da ampla acessibilidade, na medida em que há casos que autorizam que não sejam precedidas de processo seletivo -, não se trata de cláusula de exceção à regra do art. 37, II, visto que os temporariamente contratados não ocupam cargos ou empregos, mas exercitam função.
Sempre que tais servidores estiverem exercendo atribuições que, no caso concreto, deveriam e poderiam ser desempenhadas por titulares de cargos ou empregos, não se estará diante de legítima contratação temporária, nem de verdadeira função pública (em sentido estrito), mas sim de escuso instrumento de burla à regra constitucional do concurso público, a ser combatido com veemência.
Na grande maioria das vezes, quando a doutrina, assim como o citado autor, utiliza a expressão “princípio do concurso público”, faz referência, em verdade, ao princípio da ampla acessibilidade. Prefere-se, no entanto, adotar essa última nomenclatura no presente trabalho, com escopo de evitar que sejam confundidas as normas estatuídas nos incisos I e II do art. 37.
5 CONCURSO PÚBLICO COMO INSTRUMENTO DE CONCREÇÃO DOS PRINCÍPIOS REITORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
A previsão da ampla acessibilidade e do concurso público, nos termos consignados pela Constituição da República de 1988, representa grande conquista democrática. É o certame, afinal, procedimento transparente, imparcial e voltado à seleção daqueles que se mostrarem mais aptos para os cargos, empregos ou funções públicas, de acordo com critérios objetivos e requisitos fixados em lei. Nas palavras de Hely Lopes Meirelles, ele:
[...] é o meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei [...][38].
O concurso público encontra sua sustentação material em extensa gama de princípios constitucionais. Além de naturalmente destinado à efetivação do princípio da ampla acessibilidade, é absolutamente imprescindível para dar concretude ao conjunto de preceitos que o Constituinte, no art. 37, caput, disciplinou como princípios da Administração Pública: legalidade, publicidade, moralidade, impessoalidade e eficiência.
Todos esses ditames são corolário lógico e inafastável dos princípios que constituem a própria razão de ser do Direito Administrativo - a supremacia e a indisponibilidade do interesse público. Sem dúvidas, vinculam-se, de forma indelével, à exigência constitucional do concurso público, sem a qual estariam completamente esvaziados no âmbito do ingresso de pessoal na Administração.
Quanto à legalidade, impende salientar que opera de forma diferenciada em relação ao particular e ao exercente de atividade administrativa. No que concerne ao primeiro, consubstancia o “princípio da liberdade-matriz”[39], que permite fazer tudo o que não estiver juridicamente proibido. Já para o segundo, implica sua total submissão à lei, de modo que a este somente é dado praticar os atos antecipadamente autorizados pelo ordenamento. A vontade da Administração, destarte, é apenas aquela objetivamente exprimida pelo sistema jurídico, que conforma toda a sua conduta, estipula todos os fins a serem perseguidos.
Concretiza-se a legalidade por meio do concurso público, na medida em que todas as suas exigências e requisitos de participação, nos termos do art. 37, II, da CF/88, devem ser, necessariamente, amparados por lei em sentido material e formal. Nesse sentido, Manoel Jorge e Silva Neto, opondo-se à fixação de requisitos de forma autônoma em edital, leciona que:
[...] o balizamento à constrição da liberdade individual deve provir, sempre, da lei aprovada pela autoridade competente e de acordo com o processo constitucionalmente regrado (lei em sentido formal). Fora daí, é desbordamento ilegítimo, inconstitucional da atividade administrativa[40].
Também informa o certame o princípio da publicidade, que, como afirma Gouveia de Melo, reclama ampla divulgação dos atos que o integram: “constituição da comissão organizadora, [...] edital, homologação dos resultados, nomeação dos aprovados, bem como quaisquer outros atos praticados pelas autoridades responsáveis por sua realização”[41].
Viabiliza-se, assim, não só a ciência de todos os interessados acerca do procedimento, de sorte a garantir a participação necessária à seleção dos melhores, como também o seu controle pela sociedade, a qual passa a dispor de meios para contrastá-lo com o sistema normativo pátrio. Além disso, prestigia-se a segurança jurídica, com a prévia exposição, por exemplo, dos critérios de seleção dos candidatos.
O princípio da moralidade, por seu turno, impõe a adoção de conduta proba, honesta, voltada unicamente à satisfação do interesse público, e não ao atendimento de desígnios pessoais do administrador. É de obrigatória observância para o válido exercício da função administrativa, já que ela, consoante declara Hely Lopes Meirelles, tem natureza de múnus público, de “encargo de defesa, conservação e aprimoramento dos bens, serviços e interesses da coletividade” [42]. Seus exercentes, prossegue o doutrinador, assumem para com a sociedade “o dever de bem servi-la, porque outro não é o desejo do povo, como legítimo destinatário dos bens, serviços e interesses administrados pelo Estado”[43].
A moralidade é amplamente assegurada por meio do concurso público. Tal procedimento, afinal, como reconhece José dos Santos Carvalho Filho, “veda favorecimentos e perseguições pessoais, bem como situações de nepotismo, em ordem a demonstrar que o real escopo da Administração é o de selecionar os melhores candidatos”[44].
Já o princípio da eficiência, segundo Hely Lopes Meirelles, “exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional”[45]. De acordo com Manoel Jorge e Silva Neto, impinge a Administração a realizar o máximo em termos de alcance do interesse público com o mínimo de dispêndio de tempo e de recursos[46]. Trata-se de evidente axioma do princípio republicano, associado à boa gestão da coisa pública.
Sobredito ditame torna imperioso o ingresso daqueles que se mostrarem mais aptos às atribuições a serem exercidas e à plena consecução dos objetivos institucionais dos entes administrativos, de modo a atender, da melhor forma possível, as necessidades coletivas. Tem, assim, conforme demonstra a história inglesa, marcada pela edição da Ordenança de junho de 1870, intrínseca relação com o concurso público, o qual se destina a selecionar os candidatos de acordo com um sistema de mérito, mediante avaliação da capacidade e preparo de cada um, com fulcro em critérios objetivos.
Não por outra razão, preleciona José Afonso da Silva que “o princípio da acessibilidade aos cargos e empregos públicos visa essencialmente realizar o princípio do mérito que se apura mediante investidura por concurso público” [47]. Já Gustavo Alexandre Guimarães corrobora que o certame é meio garantidor da eficiência, “visando a assegurar a melhor relação custo-benefício para o Estado no que se refere à admissão de pessoal”[48].
O concurso público, ademais, está ineludivelmente atrelado ao princípio da impessoalidade administrativa, visto que fornece iguais oportunidades a todos que pretendam integrar os quadros de pessoal da Administração. É, portanto, exigência ínsita à própria concepção de Estado Democrático de Direito, o qual, como ensinam Lenio Streck e Bolzan de Morais, “tem como objetivo a igualdade e [...] referenda a pretensão à transformação do status quo”[49].
Outro não é o entendimento de Manoel Jorge e Silva Neto, veemente ao defender que:
[...] Estado Democrático de Direito não é locução recheada de declaratividade, como se inclina a acreditar, aqui e ali. É a forma da unidade política nacional, que juntamente com a cidadania (art. 1º, II, da Constituição), aponta para a incondicional reverência do administrador ao disposto no art. 37, II, já que se constituirá vero absurdo e real despropósito aventar sobre a existência de democracia ali onde não reside respeito ao princípio da igualdade[50] (grifo do autor).
É em decorrência da impessoalidade, aliás, bem como do princípio da ampla acessibilidade, que o legislador apenas poderá fixar requisitos de ingresso a cargo ou emprego se eles corresponderem a características essenciais necessárias ou inquestionavelmente convenientes para o bom desempenho das atribuições[51]. Isso porque, como esclarece Celso Antônio Bandeira de Melo:
[...] as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição[52].
Esse mesmo entendimento, inclusive, é perfilhado pelo Supremo Tribunal Federal, o qual já decidiu que:
Embora a Constituição admita o condicionamento do acesso aos cargos públicos a requisitos estabelecidos em lei, esta não o pode subordinar a pressupostos que façam inócuas as inspirações do sistema de concurso público [...], que são um corolário do princípio fundamental da isonomia [...][53].
Referida limitação à atividade legiferante é ainda reforçada por outra previsão constitucional, pois, como bem assinala Alexandre de Moraes, “o acesso aos cargos e empregos públicos está englobado em uma previsão fundamental maior, a do inciso XIII do art. 5º da Constituição Federal, que consagra o direito fundamental de profissão, arte e ofício”[54].
Cumpre, por fim, ressaltar que o concurso público, justamente por se afigurar como instituto resguardador dos superiores princípios que regem a Administração Pública, em especial a impessoalidade, está diretamente relacionado à concreção dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, inscritos no art. 3º da Carta Magna, entre os quais se destacam a construção “de uma sociedade livre, justa e solidária” e a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
6 FUNDAMENTALIDADE MATERIAL DO DIREITO AO CONCURSO PÚBLICO
O concurso público, como visto acima, além de ir ao encontro dos objetivos mais elevados do Constituinte Originário, propicia a isonomia material, em consonância com o primado do Estado Democrático de Direito, e garante à sociedade uma Administração proba, honesta, eficiente e voltada à satisfação, no mais alto grau possível, das necessidades coletivas. Em face de tais considerações, irrefragável é a conclusão de que as normas de que deflui – tanto o princípio consubstanciado no inciso I, quanto a regra veiculada pelo inciso II do art. 37 – traduzem verdadeiro direito fundamental dos cidadãos, razão pela qual se revestem da natureza de cláusulas pétreas da Constituição da República.
Com efeito, direitos fundamentais não são apenas os elencados pela Constituição a tal título, compreendidos entre os artigos 5º e 17. A própria Lei Maior, afinal, indica a possibilidade de existência de direitos materialmente fundamentais fora desse âmbito topográfico, já que preceitua, em seu art. 5º, § 2º, que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Nessa linha, já declarou o Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado de constitucionalidade, que o princípio da anterioridade tributária - também não catalogado entre os direitos formalmente fundamentais - “é garantia individual do contribuinte (art. 5., par. 2., art. 60, par. 4., inciso IV e art. 150, III, ‘b’ da Constituição)”[55].
A insofismável fundamentalidade material do direito de acesso aos quadros de pessoal da Administração Pública, assegurado por meio do concurso, é, inclusive, reconhecida por Adilson Abreu Dallari[56], bem como pela Ministra Cármen Lúcia, que considera o princípio da acessibilidade “como direito fundamental expressivo da cidadania (esta mesma considerada direito político fundamental)”[57]. No mesmo sentido, pontifica Ingo Sarlet que “o direito de acesso aos cargos públicos (art. 37, inc. I, da CF), em que pese ter sido positivado no capítulo da administração pública, pode ser considerado típico direito fundamental fora do catálogo”[58].
Assim também se posiciona Canotilho, bastante elucidativo ao preceituar que:
Uma das funções dos direitos fundamentais ultimamente mais acentuada pela doutrina (sobretudo a doutrina norte-americana) é a que se pode chamar função de não discriminação. A partir do princípio da igualdade e dos direitos de igualdade específicos consagrados na constituição, a doutrina deriva esta função primária e básica dos direitos fundamentais: assegurar que o Estado trate os seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente iguais. Esta função de não discriminação abrange todos os direitos. Tanto se aplica aos direitos, liberdades e garantias pessoais (ex: não discriminação em virtude de religião), como aos direitos de participação política (ex: direito de acesso aos cargos públicos), como ainda aos direitos dos trabalhadores (ex: direito ao emprego e formação profissional). Alarga-se, de igual modo, aos direitos a prestações [...][59] (grifo acrescido).
A própria tradição constitucional brasileira demonstra a natureza de direito fundamental do princípio da ampla acessibilidade, porquanto expressamente previsto no rol dos direitos e garantias fundamentais pelas Cartas de 1824, 1891 e 1937. As outras Constituições, incluindo a atual, situaram-no em conjunto com as demais disposições atinentes aos servidores públicos tão-somente por motivos de índole organizacional, o que não diminui em nada a sua importância.
Reconhecida a fundamentalidade material do princípio da ampla acessibilidade, essa característica é, decerto, naturalmente extensível ao direito de se submeter a concurso público, garantia do primeiro. Deveras, consistiria verdadeiro imbróglio lógico entender que os cidadãos têm o direito fundamental à consecução do fim – imbuído no princípio – mas não à implementação do meio indispensável à sua promoção – corporizado no certame.
A corroborar a tese ora defendida, convém destacar que a Constituição da República Portuguesa de 1976, fonte inspiradora da Carta Política de 1988, prevê expressamente, no seu art. 47.º, n. 2, situado na Parte I, intitulada “Direitos e deveres fundamentais”, a norma segundo a qual “todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso” (grifo acrescido). A seguir, no art. 50º, ainda no bojo dos direitos fundamentais, insere o “direito de acesso a cargos públicos”, prescrevendo que:
1. Todos os cidadãos têm o direito de acesso, em condições de igualdade e liberdade, aos cargos públicos.
2. Ninguém pode ser prejudicado na sua colocação, no seu emprego, na sua carreira profissional ou nos benefícios sociais a que tenha direito, em virtude do exercício de direitos políticos ou do desempenho de cargos públicos.
3. No acesso a cargos electivos a lei só pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respectivos cargos.
Canotilho, ao comentar o art. 47.º, n. 2, da Constituição da República Portuguesa, dedica especial atenção ao concurso público, destacando, com veemência, que:
A regra constitucional do concurso como meio de recrutamento e selecção de pessoal [...] é uma garantia do princípio da igualdade e do próprio direito de acesso, pois este não existe quando a Administração pode escolher e nomear livremente os funcionários. A exigência de concurso [...] testemunha a progressiva vinculação da Administração, com a consequente redução da discricionariedade administrativa nos domínios do recrutamento e selecção de pessoal. As excepções ao princípio do concurso também não estão na completa discricionariedade do legislador, devendo justificar-se com base em princípios materiais, sob pena de se desfraudar o requisito constitucional.
A regra constitucional do concurso consubstancia um verdadeiro direito a um procedimento justo de recrutamento, vinculado aos princípios constitucionais e legais [...].
O concurso deve considerar-se como garantia institucional de um Estado de direito democrático, pois ele reforça a legitimação e a legitimidade democrática da administração, além de assegurar o cumprimento de princípios materiais vinculativos da administração (imparcialidade, igualdade, legalidade). Os modernos princípios da actividade administrativa – eficácia e eficiência – podem ancorar-se no sistema de concurso[60] (grifo do autor).
Não se olvide, ademais, que a Declaração Universal de 1948 erigiu a ampla acessibilidade ao patamar dos direitos humanos. Tal constatação evidencia que a fundamentalidade material do direito em comento não só é resultante do regime e dos princípios adotados pela Constituição Federal, como também da normatividade internacional albergada pelo ordenamento jurídico pátrio.
O concurso público, portanto, reveste-se, juntamente com o mandamento da ampla acessibilidade que o subjaz, do nítido caráter de direito fundamental dos cidadãos.
7 CONCLUSÃO
A Constituição Federal de 1988, ao contrário das Cartas que lhe antecederam, finalmente dotou o concurso público dos elementos necessários para servir como efetivo instrumento de concreção dos princípios que regem a Administração Pública. Emergiu, assim, com o nítido intuito de evitar a perpetuação de toda a sorte de abusos, fraudes e arbitrariedades que, no devir histórico do Estado brasileiro, tanto inquinaram o ingresso de servidores nos quadros administrativos.
A exigência do certame público é corolário lógico do princípio da ampla acessibilidade, que teve sua abrangência alargada pelo art. 37, I, da Carta Política, para garantir a igualdade de acesso não apenas a cargos, mas também a empregos e funções públicas. Deflui, outrossim, do art. 37, II, que consagrou o concurso como regra primordial a ser reverenciada para o provimento tanto em cargos quanto em empregos públicos.
Todas as exceções à sua obrigatoriedade foram taxativamente elencadas pela Lei Maior, entre as quais se destacam a contratação temporária - que, todavia, a depender das peculiaridades do caso concreto, pode vir a ser precedida por processo seletivo - e os cargos em comissão.
O concurso público é procedimento transparente, imparcial e voltado à seleção daqueles que se mostrarem mais aptos para os cargos, empregos, ou funções públicas, de acordo com critérios objetivos e requisitos fixados em lei. Propicia a igualdade material, em consonância com o primado do Estado Democrático de Direito, e, além de ser imprescindível para dar concretude aos ditames da ampla acessibilidade, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, vincula-se ao direito fundamental de profissão, arte e ofício e vai ao encontro de objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, como a construção “de uma sociedade livre, justa e solidária” e a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Ademais, tamanha é a importância do princípio da ampla acessibilidade, que encontrou expressa previsão na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, assim como na Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU de 1948.
Por tais razões, torna-se imperativo o reconhecimento, nos termos do art. 5º, § 2º, da Carta Magna, da fundamentalidade material do direito ao concurso público, de sorte que os dispositivos dos quais dimana – incisos I e II do art. 37 – revestem-se do irrefragável caráter de cláusulas pétreas da Constituição da República.
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