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Diferença entre dolo eventual e culpa consciente

Agenda 06/10/2015 às 10:00

Há muito se vê na televisão falar do Dolo Eventual e da Culpa Consciente. Ambos possuem aplicabilidade quase idênticas, mas com resultados diferenciados. Aprender a aplicá-los de forma correta é caminhar em direção à justiça.

            Nos dias atuais, inúmeros são os casos em que há um homicídio não intencional, mas ocasionado por grande imprudência ou negligência da parte. Podemos citar as mortes ocasionadas no Incêndio da Boate Kiss, do cinegrafista da Rede Bandeirantes atingido por um explosivo, e mortes ocasionados por motoristas bêbados. Estes acontecimentos geram, no âmago da sociedade, um sentimento de impunidade ou de punibilidade caso o agente infrator seja punido por homicídio culposo (com penas que variem entre 1 e 3 anos, ou ebtre 2 e 4 anos se ocasionado na direção de veículo automotor) ou doloso (com penas que variam entre 6 e 20 anos, se simples e 12 e 30 anos, se qualificado). E tal sentimento repassa à Polícia Civil e ao Ministério Público, que acabam por indiciarem e denunciarem por homicídio culposo, ou doloso por dolo eventual. E estes institutos permitem tal flexibilidade, por serem extremamente parecidos. Porém, não o são. E este pequeno texto tem como função exatamente explicar qual é a diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente – aplicável em todos os crimes que se punem a título de culpa e dolo.

            Conforme determina o art. 18, inciso I do Código Penal, o dolo ocorre “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. Querer o resultado é o dolo direto, na qual grande parte dos crimes ocorre nessa modalidade. Ocorre o dolo direto quando o sujeito atira no outro com a intenção de ceifar sua vida (homicídio doloso), utiliza da arma para roubar os pertences alheios (roubo) ou para abusar sexualmente de outra pessoa (estupro). Alguns crimes são cometidos apenas com dolo direto, como o roubo, o furto e o estupro. Porém, o dolo não se consubstancia apenas no querer o resultado. Conforme determina a parte final do inciso I do art. 18 do Código Penal, o dolo também ocorrerá quando o agente assume o risco de produzir o resultado. É o chamado dolo eventual. O resultado é não querido, logicamente, porém previsto pelo agente, que o aceita. Por exemplo, um motorista completamente embriagado dirige em alta velocidade e ziguezagueando por uma rua movimentada da cidade. Ele visualiza um pedestre em sua direção e aceita a possibilidade do acidente, que se concretiza. Ele, portanto, aceitou o risco do acidente.

            Já a culpa ocorre quando o agente não quis o resultado, porém o atingiu violando norma de dever de cuidado por imprudência, negligência ou imperícia. Imprudência ocorre quando o agente agiu quando não deveria (dirigindo acima do limite de velocidade, por exemplo). Negligência ocorre quando o agente deveria agir e não agiu (trocando pneu desgastado, por exemplo). Imperícia ocorre quando o agente não é tão perito quanto deveria (um médico que erra a veia a ser cortada, por exemplo). Caso o agente viole norma de dever de cuidado – normas cuja função principal é criar segurança; por exemplo, não dirigir falando ao celular, em alta velocidade, bêbado, etc. Não é necessariamente advinda de lei ou norma expressa – por imprudência, negligência ou imperícia estará cometendo um crime culposo.

            Entretanto, há outro requisito na culpa que a transforma por completo. É a chamada previsibilidade, ou seja, a capacidade da pessoa em antever (em prever) o resultado danoso causado por sua conduta imperita, negligente ou imprudente. Pode ocorrer quando uma pessoa comum – aquela que não é ínfima ou extraordinária – prevê o resultado, mas o agente não; ou quando o próprio agente o prevê. No primeiro caso, é a chamada previsibilidade objetiva. No segundo, a chamada previsibilidade subjetiva. Na ocasião da primeira, estará configurada a chamada culpa inconsciente. Na ocasião da segunda, caso o agente preveja o resultado e acredite sinceramente na sua não-ocorrência, restará configurada a chamada culpa consciente.

            E aqui resta um dos maiores dilemas atuais em matéria de Direito Penal: diferenciar, no caso concreto, a culpa consciente do dolo eventual. Conforme vimos, o dolo eventual ocorrerá quando o agente não quer o resultado, mas tem conhecimento do risco do mesmo, ocasionado por sua conduta e o assume, aceitando caso ocorra. Já a culpa consciente ocorrerá quando o agente não quer o resultado, tem conhecimento do risco do mesmo, ocasionado por sua conduta imprudente, negligente ou imperita e acredita sinceramente na sua não-ocorrência. Portanto, o que delimitará se ocorreu a culpa consciente ou o dolo eventual é o âmago do agente, que aceitou o resultado ou acreditou sinceramente que o mesmo não fosse ocorrer. Porém, não há condição de adentrar na cabeça do agente para saber se o mesmo aceitou o risco, ou não. O Supremo Tribunal Federal e grande parte da doutrina afirmam que, para se chegar à conclusão da aplicação de dolo eventual ou de culpa consciente, devem analisar os fatos. Se, pela conclusão dos fatos, se chegar que o agente aceitou o risco, aplicar-se-á o dolo eventual. Do contrário, restará a aplicação da culpa consciente.

Como se pode ver, a análise dos fatos não é algo preciso, de fácil aplicação. Pode gerar interpretações pessoais – por exemplo, o juiz quer punir mais severamente o autor, tendo em vista a dimensão dos fatos na impensa -, eis que não é algo certeiro. E realmente não há como ser. Contudo, existem alguns fatos que se podem aplicar para se chegar à conclusão final. O primeiro deles está na possibilidade ou não de o agente aceitar aquele risco ou não. O grande doutrinador Rogério Greco, em seu livro Curso de Direito Penal: Parte Geral (2006, p. 220), disserta que o aplicador da lei deve tentar se imaginar no lugar do agente e se perguntar se o mesmo, naquele ocasião, aceitaria ou não o resultado. Ele nos dá o exemplo do pai que comemora bodas de prata com sua mulher e três filhos e, durante a festa, bebe incomensuravelmente, ficando embriagado. Terminada a festa, volta para casa dirigindo o seu veículo, junto de sua família, com pressa, eis que queria assistir a uma partida de futebol. Porém, colide com outro veículo, ceifando a vida de sua família inteira. Por mais que os fatos (dirigir embriagado e em alta velocidade por motivo fútil) demonstraram a aceitação do resultado, nunca, em tempo algum, o mesmo assumiria o risco de matar toda sua família, principalmente após um dia de comemoração.

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Da mesma forma, damos o exemplo do Incêndio da Boate Kiss. Nunca os sócios da boate Kiss e os membros da banda “Gurizada Fandagueira” aceitariam o risco de causar o incêndio e as 242 mortes, ainda que os fatos dizem o contrário. Primeiramente, é importante salientar que os supramencionados são pessoas comuns, não psicopatas de sangue frio. Segundo, a boate Kiss dava lucro – logo, aceitar que a mesma queimasse era queimar junto milhares de reais. Terceiro, os membros da banda se encontravam dentro da boate na hora que acenderam o artefato pirotécnico, junto de amigos e demais membros da banda. Jamais aceitariam o incêndio estando debaixo, correndo risco.

Assim, caso o aplicador da lei consiga se colocar no lugar do agente no momento do fato danoso e entender que jamais, em tempo algum aquela pessoa aceitaria o crime, deverá afastar a aplicação do dolo eventual, aplicando, assim, a culpa consciente, se cabível. O segundo fato que deverá ser levado em conta por parte do aplicador da lei é um dos princípios mais basilares do Direito Penal, o do in dubio pro reo, que determina que, em caso de dúvidas na aplicação da lei, deverá ser aplicada a que menos prejudique o réu. Os crimes dolosos possuem penas mais altas que os culposos, sendo, portanto, mais prejudicial para o réu. Assim, caso o intérprete da lei possua dúvidas na aplicação do dolo eventual ou da culpa consciente – por exemplo, se analisou os fatos e não se chegou em uma conclusão indubitável, concreta, certeira -, deverá aplicar a culpa consciente e afastar o dolo eventual, eis que a primeira prejudique menos a liberdade do réu que o segundo.

Com pressa, pois queria assistir a uma partida de futebol, que seria transmitida na televisão, acelera o veículo. Entretanto, colide o seu veículo em outro, ceifando a vida de sua família inteira. Por mais que os fatos (dirigir embriagado, dirigir em alta velocidade por um motivo fútil) demonstrem que o pai agiu com dolo eventual, nunca, em tempo algum, ele assumiria o risco de matar toda sua família, pois um homem médio nunca aceitaria a possibilidade de ele próprio ceifar a vida de seu cônjuge e filhos no dia de comemoração de 25 anos de casado. Deve-se sempre enxergar com cautela o dolo eventual única e exclusivamente através dos fatos, pois, muitas das vezes, por mais que os fatos apontem o dolo eventual, ao adentrar no âmago do agente, perceber-se-á clara e indubitavelmente que o agente não aceitou – e jamais aceitaria - o resultado lesivo.

           

Sobre o autor
Rodrigo Picon

Formado em Direito pelo Instituto Tancredo de Almeida Neves e pós-graduado em Direito Penal Econômico Aplicado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Rodrigo Picon é advogado, regularmente inscrito pela Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais, escritor e contista. Atua nas áreas criminal, empresarial, penal econômica, tributária, difusos e coletivos e de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados. É autor dos livros "Direitos Difusos e Coletivos" e "Código Penal Comentado".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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