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Prova do elemento subjetivo especial dos tipos penais associativos

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Agenda 31/10/2017 às 14:30

Como provar o elemento subjetivo especial do tipo (antigo dolo específico) em juízo? Não se trata de tarefa fácil, já que o maior indício da intenção de cometer delitos é justamente a execução de alguns deles.

INTRODUÇÃO

Neste artigo procurar-se-á fazer uma breve análise da prova do elemento subjetivo especial dos tipos penais associativos, considerando as etapas cronológicas do desenvolvimento do crime para se classificar a manifestação prática de tais delitos.

A prova no Processo Penal é tudo aquilo que serve para demonstrar ao juiz a veracidade de um fato. Existem basicamente duas vertentes através das quais a prova é direcionada ao processo: os "meios de obtenção de prova" e os “meios de prova”.

Os "meios de obtenção de prova" são certos mecanismos extraprocessuais previstos em lei que visam à colheita de elementos informativos ou provas para instruir o inquérito ou o processo, respectivamente (por exemplo, interceptação telefônica, colaboração premiada, dentre outros). Em regra ocorrem sem observância do contraditório, para não atrapalhar as investigações.

Já os “meios de prova” são os instrumentos através dos quais as fontes de prova são levadas perante o juiz no curso do processo (por exemplo, depoimento, acareação e confissão). Dizem respeito a uma atividade endoprocessual, na qual a observância do contraditório é obrigatória (LORDELO, 2015).

Conforme veremos a seguir, esses elementos informativos ou provas poderão posteriormente ser valorados como indícios, a partir dos quais se poderá dedutivamente conseguir uma prova do elemento subjetivo especial do tipo, perante o juiz.

Quanto ao elemento subjetivo especial do tipo, pode-se conceituá-lo sucintamente como a finalidade inerente ao crime (GRECO, 2006, ps. 202 e 203). É uma decorrência da teoria finalista da ação, concebida pelo célebre jurista Hans Welzel.

Assim, o art. 288 do Código Penal (“Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes”), por exemplo, tem como óbvio elemento subjetivo especial do tipo, justamente, o “fim específico de cometer crimes”, que é compreendido como a aspiração ao cometimento de uma indeterminada série de crimes (HUNGRIA, 1959, p. 178).

Como é sabido, provar uma finalidade ou uma intenção do(s) agente(s) suspeito(s) de um crime é sempre uma tarefa tormentosa, pois estamos diante de propósitos que se consolidam naturalmente no mundo psicológico, de cujos meandros a ciência ainda não consegue extrair certeza absoluta. E ainda que se admitissem como eficazes certos métodos periciais de manifestações fisiológicas do pensamento (como o polígrafo e fMRI), a utilização deles coercitivamente contra o réu não poderia jamais ocorrer num processo submetido a nossa ordem constitucional, tendo em vista o princípio "nemo tenetur se detegere", isto é, o direito de não produzir prova contra si mesmo (Constituição Federal, Art. 5º, LXIII).

Considerando então a legislação processual brasileira e suas limitações, temos que a prova do elemento subjetivo especial  (outrora denominado dolo específico) dos tipos penais associativos em geral é feita baseando-se numa lógica dedutiva a partir de indícios, os quais funcionam como uma premissa menor, que deve ser comparada com uma premissa maior, sendo esta uma regra da experiência, um paradigma racional construído através da prática jurisprudencial. Nesse silogismo, a prova do elemento subjetivo especial é a própria conclusão.

No Código de Processo Penal assim está positivado o conceito de indício:

“Art. 239.  Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”.

Reparem que o legislador não foi feliz ao empregar o termo “indução”, porquanto se trata, em verdade, de uma verdadeira dedução.

Nesse sentido a escorreita preleção do advogado Eugênio Pacelli de Oliveira, doutor em Ciências Penais pela UFMG:

“Por isso, a prova do dolo (também chamado de dolo genérico) e dos elementos subjetivos do tipo (conhecidos como dolo específico) são aferidas pela via do conhecimento dedutivo, a partir do exame de todas as circunstâncias já devidamente provadas e utilizando-se como critério de referência as regras da experiência comum do que ordinariamente acontece. É a via da racionalidade. Assim, quem desfere três tiros na direção de alguém, em regra, quer produzir ou aceita o risco de produzir o resultado morte. Não se irá cogitar, em princípio, de conduta imprudente ou de conduta negligente, que caracterizam o delito culposo.

Nesses casos a prova será obtida pelo que o código de processo penal chama de indícios, ou seja, circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução (trata-se, à evidencia, de dedução), concluir-se a existência de outra ou de outras circunstâncias (art. 239).” (2012, ps. 325 e 326)

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Reconhecendo a prova através dos indícios, temos o seguinte excerto jurisprudencial:

"Em nosso sistema processual penal, os indícios se inscrevem no titulo da prova.

Indício é o fato provado que por sua ligação com o fato probando autoriza, segundo Tornaghi, a concluir algo sobre este.

Os indícios não merecem, por certo, apoteose, adverte Malatesta, mas também não merecem a excomunhão maior. É necessário ter cautela na afirmação dos indícios, mas não se pode negar que a certeza pode provir deles.” (RIO DE JANEIRO, 1997)

Na prática jurisprudencial brasileira, poderíamos citar muitos fatos que têm sido alçados à categoria de indícios para se verificar a existência do elemento subjetivo especial dos delitos associativos, que são aqueles crimes formais permanentes e plurissubjetivos de condutas paralelas cujo bem jurídico tutelado é a paz pública, marcados pela configuração de um vínculo associativo entre os seus sujeitos ativos, a exemplo dos crimes de Associação Criminosa (art. 288 do Código Penal), Organização Criminosa (art. 1º c/c art. 2º  da Lei nº 12.850/13), Constituição de Milícia Privada (art. 288-A do Código Penal), Associação para o Tráfico (art. 35, caput, da Lei nº 11.343/06), Associação para o Genocídio (art. 2º da Lei nº 2.889/56), dentre outros.

Nesses crimes, há a exigência de um elemento subjetivo especial para a verificação da tipicidade, como no caso do crime de formação de Organização Criminosa, em que se aponta como elemento subjetivo especial a aspiração à obtenção de vantagem de qualquer natureza, mediante uma indeterminada série de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional.

Além disso, nos delitos associativos, vale dizer, há um ponto semelhante quanto ao elemento subjetivo especial: todos se referem a uma finalidade de cometimento de uma série indeterminada de crimes, com exceção do crime de associação para o tráfico (art. 35, caput, da Lei no 11.343/06), que pode se configurar com a finalidade de prática não reiterada dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34. Mas as dessemelhanças mais notáveis entre os delitos associativos em geral nessa temática dizem respeito mesmo ao tipo de crime que a sociedade pretende cometer (por exemplo, uma Organização Criminosa pretende cometer uma série indeterminada de crimes com penas máximas superiores a quatro anos ou que sejam de caráter transnacional, já a Associação para o Genocídio pretende cometer uma série indeterminada de crimes de genocídio, e assim por diante).

A consumação dos delitos associativos de uma forma geral, inclusive, ocorre com a simples formação da societas sceleris (sociedade do crime)[1], independentemente da perpetração de qualquer dos delitos visados por ela. Trata-se de exceção à regra de que os atos preparatórios não são puníveis (art. 14, inciso II,do CP), elevando-se à categoria de infração autônoma um ato preparatório ao cometimento de outra infração penal (GRECO, 2006, ps. 266 a 268). Esclareça-se, ainda, que os terceiros que venham a se integrar a essa “sociedade do crime” terão cometido o delito tão logo passem a ser “sócios” dela.

Dada sua natureza de crime formal, os crimes acaso perpetrados por tal sociedade serão considerados um exaurimento dentro da linha do tempo do iter criminis, não se tratando essa provável perpetração de algum crime de um post factum impunível, já que qualquer crime levado a efeito pode ser imputado ao seu respectivo autor ou partícipe, em concurso material com o crime referente ao simples status de pertencimento ao sodalício.

Em tempo, insta gizar que o iter criminis, que especifica as diferentes etapas cronológicas do desenvolvimento do crime doloso, se divide em duas fases, uma interna e outra externa, sendo esta última dividida nas seguintes etapas: atos preparatórios, atos de execução, consumação e exaurimento (nos termos deste artigo se enquadra o exaurimento como uma dessas etapas, muito embora se saiba que parte da doutrina não o faça).

Nesse diapasão, considerando toda a excepcionalidade dos delitos associativos quanto ao iter criminis, temos uma situação esdrúxula em que atos preparatórios são punidos como crimes consumados, e os crimes visados (elemento subjetivo especial do tipo) que venham a ser executados são tratados como exaurimento.

À compreensão, então, de que os delitos associativos em geral podem se referir tanto àquelas associações que já empreenderam algum dos crimes para os quais elas se organizaram quanto àquelas que ainda não perpetraram nenhum dos crimes para cuja prática se propõe, faz-se necessário, aqui, com objetivos didáticos, a divisão das “sociedades do crime” empiricamente consideradas em dois subgrupos, chamados de Sociedade do Crime Exaurível e Sociedade do Crime Exaurida[2].


1. SOCIEDADE DO CRIME EXAURÍVEL

Destarte, a Sociedade do Crime Exaurível é aquela que ainda não perpetrou nenhum crime pretendido por ela, estando situada na dita fase externa do cometimento do delito, mas ainda concentrada nos atos preparatórios referentes ao delito associativo correspondente. Ressalte-se que o crime associativo já está legalmente consumado com a simples formação da sociedade, respondendo por ele todos os membros dela, pois estamos diante de uma exceção à regra de que os atos preparatórios não são punidos, conforme foi supramencionado.

Diz-se “exaurível”, pois a sociedade ainda não atingiu a etapa de exaurimento dentro da linha do tempo do iter criminis. O exaurimento, repita-se, somente ocorrerá com a perpetração de algum dos crimes pretendidos pela sociedade.

Caso essa modalidade de sociedade tenha fim espontaneamente, por entendimento dos seus sócios, nenhum crime poderá ser imputado aos seus membros assim egressos, nem mesmo o crime de formação da sociedade, já que se ela se desfez desse modo isso só pode significar que afinal faltava a tal grupo os atributos da estabilidade e permanência, que são elementares implícitas dos tipos penais associativos sempre lembradas pela doutrina e jurisprudência.

Situação totalmente diferente é aquela em que o poder público descobre a existência da Sociedade do Crime Exaurível e interfere em seu funcionamento, levando tal sociedade à dissolução; nesse caso, os membros dissolvem a sociedade por imposição direta ou indireta do aparelho repressor do Estado, agindo portanto de maneira não espontânea, como é óbvio.

É claro que nenhum dos crimes pretendidos pela Sociedade do Crime Exaurível poderá ser imputado aos seus membros, pois nenhum deles foi ainda perpetrado.

Denúncias oferecidas pelo Ministério Público contra os membros de uma associação desse jaez são raras, uma vez que o poder público normalmente descobre sua existência justamente quando algum crime é perpetrado.

Todavia, chegada de alguma forma a notitia criminis às autoridades competentes, como se provar seu elemento subjetivo especial do tipo (antigo dolo específico) em juízo? Não se trata de tarefa fácil, já que o maior indício da intenção de cometer delitos é justamente a execução de alguns deles.

De mais a mais, conseguir o depoimento em juízo de testemunhas que asseverem que a associação almejava uma série indeterminada de crimes tem se revelado uma tarefa dificílima, pois em geral prováveis testemunhas receiam bastante sofrer represálias de criminosos, principalmente quando eles estão associados, apesar das medidas de proteção policial previstas em lei. Isso sem falar de toda a dificuldade prática de se achar testemunhas externas à sociedade do crime que realmente saibam detalhes das aspirações dos seus membros, posto que esse tipo de informação geralmente é algo guardado a sete chaves por motivos óbvios.

Uma saída para o Ministério Público tem sido os meios de obtenção de prova, a exemplo da colaboração premiada, prevista em várias leis esparsas, para diversos crimes em geral e delitos associativos; é o que se encontra na nova Lei de Organizações Criminosas (Lei no 12.850/13), em que são também previstos vários outros meios de obtenção de prova, visando à eficácia das investigações, tais como a ação controlada (art. 8º), infiltração de agentes policiais (art. 10) etc.

Também a tecnologia investigativa tem prestado um importante serviço à justiça, através, principalmente, de escutas ambientais e interceptações telefônicas, por meio das quais se tem conseguido captar conversas entre os associados, e, assim, avaliar-se com mais precisão a possível existência ou não do “elemento subjetivo especial” referente aos crimes tratados aqui. Tudo, claro, com respeito ao princípio constitucional de reserva de jurisdição e ao due process of law.

Nesse sentido, alguns réus têm sido condenados pelo crime de Associação para o Tráfico (art. 35, caput, da Lei no 11.343/06), após terem conversas telefônicas interceptadas pela polícia, nas quais tramam planos visando à traficância, ainda que não tenham conseguido sequer adquirir as drogas destinadas ao tráfico, verbi gratia:

“’O simples fato de tencionar alguém adquirir substância entorpecente e pôr-se aos aprestos, sem, contudo, dar início à transação delituosa, não ultrapassa a zona cinzenta dos atos preparatórios, indiferente sob o ponto de vista repressivo penal’ (TACRIM ­ RT 515/392). É de se manter a condenação do recorrente pela prática do delito de associação para o tráfico, vez que evidenciado o vínculo estável e permanente entre ele e o corréu.“ (PARANÁ, 2012)

Urge ressaltar que mesmo a hipótese de gravações de conversas também tem os seus pontos fracos, pois os bandidos podem simular entre eles uma possível inexistência do elemento subjetivo especial dos delitos em tela. Por outro lado, há a possibilidade de meras bravatas ou comentários de cunho humorístico serem interpretados erroneamente como planejamento de prática de crimes. Enfim, recomenda-se muita cautela ao valorar esse tipo de prova  como um indício do que quer que seja.

Sobre o autor
Renato de Souza Matos Filho

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. É autor do livro "Crimes associativos: Sociedades e organizações criminosas".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATOS FILHO, Renato Souza. Prova do elemento subjetivo especial dos tipos penais associativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5235, 31 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43500. Acesso em: 22 nov. 2024.

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