Resumo
A presente pesquisa tem como objetivo central evidenciar a importância do princípio da intervenção mínima na seara penal e sua busca incessante por conter os anseios punitivos da sociedade, em especial a brasileira. Trata-se de uma pesquisa teórico-bibliográfica e documental, a qual faz uma análise inicial, sobre a relação entre o Direito e a sociedade com destaque para o campo penal, investigando as bases históricas da punição e também trazendo à baila a afinidade social pela punição. Por fim, se realizará uma abordagem acerca da intervenção mínima do poder punitivo estatal.
Palavras-chave: Direito penal; princípio da intervenção mínima; anseios punitivos
Abstract
This research was aimed to highlight the importance of the principle of minimum intervention in the criminal harvest and its relentless pursuit to contain punitive aspirations of society, especially the Brazilian. It is a theoretical and bibliographical research and document, which analyzes, at first, on the relationship between law and society with emphasis on the criminal field, investigating the historical basis of punishment and also bringing up the affinity by social punishment. Finally, there will be a minimal intervention approach about the state punitive power.
Keywords: Criminal law; principle of minimum intervention ; punitive desires
Introdução
Essa pesquisa teórico-bibliográfica e documental tem como escopo fazer uma análise sobre um dos importantes princípios do Direito Penal, que é a intervenção mínima e sua busca por conter os anseios punitivos da sociedade, com destaque para a brasileira. Além disso, que se possa compreender tal temática são feitas algumas considerações acerca da relação entre a seara penal e a sociedade bem como breves comentários sobre a história da punição.
O trabalho está distribuído em três partes, na primeira seção se trata da relação entre o Direito e a sociedade com destaque para a seara penal. Na segunda parte serão abordados alguns aspectos sobre a história da punição, desde as formas pioneiras até a contemporaneidade sem a pretensão de estabelecer uma análise exaustiva dos fatos. Para finalizar será destacada a importância da intervenção mínima no contexto do minimalismo penal e os desejos punitivos do corpo social brasileiro.
1 Um Breve Estudo Sobre a Relação entre o Direito Penal e a Sociedade
Antes da análise do princípio da intervenção mínima e de seu papel fundamental na busca por conter o sentimento deveras repressivo da sociedade política, com destaque para a brasileira é salutar que se enfatize o Direito em seu sentido geral e sua relação com o corpo social. Ele está intrinsecamente relacionado com a sociedade, pois suas normas jurídicas disciplinam comportamentos ou condutas padronizadas em sentido deontológico a fim de possibilitar a convivência harmoniosa entre os seres humanos viventes no seio social. Acrescente-se a isso o fato de que os indivíduos no estágio pré-social viveram uma espécie de “amor não correspondido” com a plena liberdade, pois ela a princípio retirava amarras internas (psicológica) e externas (regras) deixando que o homem vivesse de acordo com sua vontade, porém a “ilusão” acaba e surge o problema: a liberdade se tornou um meio poderoso e destrutivo exatamente pela natureza e volição egoísta e individualista do ser humano, o qual se viu amedrontado com os próprios instintos. Então, a alternativa encontrada era fundar a sociedade civil e limitar certos direitos, inclusive a liberdade, através de normas jurídicas elementares daquele que se tornaria o mantenedor da ordem social: o Direito posto.
Essas tais normas são desenvolvidas pelos próprios seres humanos sobre a figura do ente estatal, se valendo dos ditames do processo legislativo. Nessa linha de raciocínio, as normas jurídicas e suas condutas abstratas são impostas aos destinatários, cuja coercibilidade ou força do Direito, obriga a todos o seu cumprimento, tal como afirma Reale (2005, p.48):
O que há, porém, de verdade na doutrina da coação é a verificação da compatibilidade do Direito com a força, o que deu lugar ao aparecimento de uma teoria que põe o problema em termos mais rigorosos: é a teoria da coercibilidade, segundo a qual o Direito é a ordenação coercível da conduta humana.
Além disso, o Direito se caracteriza por ser heterônomo, pois todos devem agir conforme os ditames normativos, mesmo criticando-os, sendo que o estrito cumprimento legislativo independe da opinião ou do querer dos destinatários da norma. Essa situação é fortalecida pelo fato de que na maioria das Repúblicas contemporâneas, a exemplo do Brasil se vive um Estado Democrático de Direito, onde o povo teoricamente exerce todo o poder soberano, através de seus representantes. Logo, estes últimos a priori quando contribuem para o desenvolvimento das leis estão seguindo a vontade da população, o interesse público, em nome dos quais é feita a representação e nesse sentido todos deverão seguir os preceitos legais, pois são emanados de sua própria vontade e interesses. Uma vez que essas leis são transgredidas se comete uma ilicitude, a qual deve ser rapidamente sancionada pela mesma coercibilidade do Direito com o fito de garantir a própria eficácia da normatividade jurídica, pois se assim não fosse abriria-se um precedente perigoso, porque um absoluto livre-arbítrio dos indivíduos dificultaria a criação concreta de efeitos da própria norma.
Por tudo isso se vê a importância da Ciência Jurídica e eis que o Direito Penal encontra uma relevância imprescindível, pois ele é o limite mais tênue entre a ordem, a convivência harmoniosa, a paz social e a desordem, o caos e o “estado de selvagens”, haja vista que através de suas sanções poderá privar um importante direito, qual seja a liberdade ou devido à morosidade judicial ensejará a impunidade. Como em todo o Direito, a área penal também possui suas normas trazendo condutas paradigmáticas, as quais em sentido objetivo são impositivas ou proibitivas, tal como assinala Greco (2014, p.7):
Direito Penal Objetivo é o conjunto de normas editadas pelo Estado, definindo crimes e contravenções, isto é, impondo ou proibindo determinadas condutas sob a ameaça de sanção ou medida de segurança, bem como todas as outras que cuidem de questões de natureza penal, excluindo o crime isentando de pena, explicando determinados tipos penais.
Assim, o ente estatal imbuído de incumbências legislativas desenvolve os tipos penais e busca executá-los a partir dos ditames criados. Essa é uma faculdade denominada ius puniendi, sendo que se não houver o cumprimento à ordem normativa o mesmo Estado através dessa faculdade poderá submeter o transgressor a um devido processo legal, sendo assegurado o contraditório e a ampla defesa, que ensejará a sentença punitiva do indivíduo, caso ele tenha realizado uma conduta típica, ilícita e culpável. Nesse contexto a sentença condenatória transitada em julgado imputará ao criminoso uma pena proporcional ao fato cometido. A respeito da relação entre crime praticado e pena cominada defende Batista (2007, p. 43):
Uma conduta humana passa a ser chamada “ilícita” quando se opõe a uma norma jurídica ou indevidamente produz efeitos que a ela se opõem. A oposição lógica entre a conduta e a norma (cuja consideração analítica dá origem a um objeto de estudo chamado ilícito) estipula uma relação, de caráter deôntico- denominada relação de imputação-, que traz como segundo termo a sanção correspondente. Quando esta sanção é uma pena, espécie particularmente grave de sanção, o ilícito é chamado crime.
A esse respeito talvez um dos maiores desafios do julgador seja: estabelecer uma sanção que seguindo critérios de proporcionalidade ao crime praticado não venha a lesar a dignidade da pessoa humana princípio norteador de nosso ordenamento jurídico considerado um fundamento da República Federativa do Brasil.[1] Apesar disso, o Direito Penal se encontra em um estágio bastante avançado na contemporaneidade e até ela a História demonstra muitos fatos interessantes relacionados, sobretudo as sanções impostas aos infratores.
2 Alguns Aspectos Sobre A História Da Punição
Inicialmente em matéria penal se destacou a vingança privada, como forma de punição aos infratores. O mais conhecido documento histórico que apresentava penas nessa linha de raciocínio foi o Código de Hamurabi baseado na famosa “Lei de Talião”. Depois teremos uma mudança significativa no que diz respeito à autoridade aplicadora da pena durante a Idade Média, quando os membros da Igreja Católica tomaram para si essa incumbência e em nome da fé passaram a estipular punições severas, como a morte na fogueira, aos acusados de heresia no famigerado Tribunal da Santa Inquisição. Aqui, o fogo promovido pelos homens se tornava demasiado mais ardente e cruel do que as labaredas do submundo das trevas.
Vale acrescentar que ainda no Medievo a História evidencia atrocidades cometidas pelo Estado soberano representado pelo rei e pela própria sociedade, que antes da sentença já considerava o réu um criminoso, pois de fato os agentes sociais através da lei e sob o argumento da Justiça assassinavam princípios penais, tais como a presunção de inocência. Foucault (2009) trouxe importantes constatações acerca do entendimento da pena ao longo do tempo, sendo que ela era vista no alvorecer do século XVIII como um verdadeiro espetáculo aberto ao público, em que o criminoso, ou melhor, o “inimigo” recebia de seu carrasco o suplício físico legitimado pelos concidadãos contentes pela eficiência do Estado na figura do rei no combate a criminalidade. A respeito desses suplícios arremata Foucault com um exemplo (2009, p.9):
[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757] , a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na Praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurava a faca com que cometeu o dito parricídio [...] a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas lançadas ao vento.
Esses suplícios físicos foram mudando de patamar e o “inimigo” aos poucos devido às tenazes penas desproporcionais ao delito cometido passou a ser vistos como mártir e, por conseguinte, elas são substituídas entre outras pelas restritivas de liberdade.
Depois dos episódios desumanos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, entre eles o plano macabro de purificação de Hitler e o posterior holocausto judeu legitimado na lei alemã, os hermeneutas tiveram uma ingrata tarefa de revisar suas ideias e entender porque a área penal se transformara em um Direito do Autor, pois se punia o “ser” do indivíduo, a raça, a cor, a sua orientação sexual, a conduta e o modo de vida dele em detrimento daquilo que foi cometido ou o fato. É nesse contexto que se eleva a dignidade da pessoa humana como fundamento, porém analisando os seres humanos, sobretudo aqueles que formam a sociedade brasileira percebe-se devido ao sentimento de impunidade o constante clamor pela criação de leis com penas cruéis e até capitais tornando o ius puniendi do Estado ainda mais poderoso. Enfim, essa relação entre o Direito Penal e a sociedade se conturba na medida em que ambos buscam a Justiça, mas não entendem que um ius puniendi estatal máximo traz retrocessos consideráveis a Ciência Jurídica, começando pelo atropelo do princípio da intervenção mínima.
3 Minimalismo Penal: A Importância Do Princípio Da Intervenção Mínima E Os Anseios Punitivos Do Corpo Social
Abordaremos a partir desse momento no contexto do minimalismo penal, o princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio. Para entender esse importante princípio se faz necessária uma análise acerca da finalidade do Direito Penal. Esse importante ramo do Direito com suas normas tem como fito precípuo a proteção dos bens jurídicos mais relevantes para a sociedade, cuja importância é tal que os outros ramos jurídicos não conseguem resguardá-los com o mesmo manto protetivo. Além disso, a sanção sob a figura da pena é o instrumento utilizado para a efetivação desse objetivo protetivo, pois uma vez transgredida a norma penal, o indivíduo com sua conduta lesa a coletividade e também o Estado que deve intervir repreendendo-o e ao mesmo tempo buscando a prevenção de tais ilicitudes. A respeito da finalidade da área penal aduz Capez (2011, p. 19):
A missão do Direito Penal é proteger os valores fundamentais para a subsistência do corpo social, tais como a vida, a saúde, a liberdade, a propriedade etc., denominados bens jurídicos. Essa proteção é exercida não apenas pela intimidação coletiva, mais conhecida como prevenção geral e exercida mediante a difusão do temor aos possíveis infratores do risco da sanção penal, mas sobretudo pela celebração de compromissos éticos entre o Estado e o indivíduo, pelos quais se consiga o respeito às normas, menos por receio de punição e mais pela convicção da sua necessidade e justiça.
Nesse contexto a seleção dos bens jurídicos segue um critério político, pois se viu que mediante um processo legislativo o Estado, na figura dos parlamentares, tipifica as condutas, as quais segundo o seu juízo são lesivas buscando proibi-las.[2]Essa seleção embora sendo bastante subjetiva deve estar pautada inicialmente nos preceitos constitucionais, pois é na Lei Maior que devem ser encontrados os mais importantes bens e valores da ordem jurídica, tais como a vida, a liberdade, a segurança, a propriedade, a isonomia, o princípio da dignidade da pessoa humana. Percebe-se a relevância de tais bens para o Estado Democrático de Direito, o desprezo ou o desrespeito a algum deles é uma traição à sociedade política, haja vista que a Carta da República foi desenvolvida utilizando os parâmetros supremos da vontade popular consubstanciada na volição dos representantes.
Saliente-se ainda que o papel do Direito Penal na tutela dos bens jurídicos relevantes é de extrema importância para a ordem jurídica, porém esse poder protetivo e também punitivo não pode sempre ser levado a efeito e utilizado como a solução para todos os problemas existentes no trato social, pois o penalista está limitado pelo princípio da intervenção mínima, o qual determina a atuação última da área penal, o derradeiro meio ou mecanismo de segurança e seleção dos bens jurídicos, aspecto este denominado de subsidiariedade. Quando todos os ramos do Direito falharam na garantia da tutela eis que a Justiça empunhando a espada, a balança e o Código Penal surge com sua força repressiva para afastar a lesão ou ameaça de lesão aos bens fundamentais. Dessa forma, o poder punitivo é limitado como se corrobora nesse lúcido entendimento:
O poder punitivo do Estado deve estar regido e limitado pelo princípio da intervenção mínima. Com isto, quero dizer que o Direito Penal somente deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações mais leves do ordenamento jurídico são objeto de outros ramos do Direito. (MUNOZ CONDE, 1975, p. 59-60)
Como se percebe o ordenamento jurídico e o seu conjunto de normas dispostas de maneira lógica e sistemática, embora uno apresenta ramos definidos evidenciando o aspecto fragmentário da ordem legal. Isso ocorre pelo fato de que são inúmeros os bens jurídicos, cuja proteção exige a intervenção do Direito em seu aspecto geral: a honra, a intimidade a vida privada, a imagem, buscam seu resguardo, sobretudo na seara civil, com suas indenizações almejando reparar possíveis danos; a proteção do interesse público ocorre no âmbito administrativo; as relações consumeristas e tributárias encontram seu cuidado pelo Direito do Consumidor e Tributário respectivamente. Enfim, essas circunstâncias fragmentárias também estarão presentes na área penal, pois como foi dito ocorre uma seleção de bens e criminalização de condutas específicas.
Outra situação interessante inerente ao princípio da intervenção mínima é o processo de descriminalização. O legislador como foi ressaltado se vale da ultima ratio para realizar a seleção dos bens jurídicos relevantes, e é com base nela também que ele promove a abolitio criminis. Esta consiste exatamente em uma conduta tipificada como crime em determinada época e a posteriori, devido à dinâmica da sociedade, já não é mais considerada algo lesivo aos agentes sociais. Ou seja, aquele bem jurídico outrora protegido por uma norma penal, quando esta estabelecia a proibição de condutas que viessem a lesá-lo, deixa de ter relevo para os integrantes do corpo social, situação que exige por sua vez a saída da tutela do Direito Penal. Esse fato ocorreu com o crime de adultério que já não mais se encontra no atual Diploma Repressivo. Assim, o cônjuge traído poderá recorrer ao juízo civil pleiteando uma indenização por danos a sua honra, tornando-se desnecessária a intervenção penal.
Cabe destacar que o princípio da intervenção mínima não se encontra expressamente previsto no texto da Constituição Federal (1988), pois ele decorre da própria lógica do sistema jurídico-penal, o qual concentra em si outros importantes princípios e elementos axiológicos essenciais ao hermeneuta e aplicador da norma penal.
Apesar da existência de princípios como o da intervenção mínima e das tentativas de conter o ius puniendi do Estado, a sociedade entende de forma diversa e na busca por ações concretas e efetivas no combate ao crime deseja com ânsia uma intervenção estatal cada vez maior. No Brasil essa situação não é diferente e os níveis crescentes da criminalidade contribuem ainda mais para esse entendimento. Segundo o Relatório Mundial sobre a Prevenção da Violência 2014 desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), Programa das Nações para o Desenvolvimento (PNUD) e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), o Brasil registrou em 2012, uma taxa de 64.357 assassinatos, algo que apresenta uma média de 32,4 assassinatos por cem mil habitantes. Isso significa que o País àquele ano apresentava a décima primeira maior taxa de homicídios do planeta.[3]
Em meio a esse contexto a população clama por melhorias na segurança do País e eis que surgem os anseios punitivos da sociedade buscando um Estado demasiadamente punitivo. Essa solução, porém encontra sérios desafios, dos quais um deles é a crise do sistema carcerário passada pelo Brasil. De acordo com um levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a população encarcerada no sistema prisional brasileiro em 2014 se encontrava em 567.655 presos. Isso significa que o Brasil apresenta a terceira maior população carcerária do planeta, atrás apenas da China com 1.701.344 presos e dos Estados Unidos da América contando com 2.228.424.[4]
Enquanto que o número de presos aumenta as vagas no sistema penitenciário ficam cada vez mais escassas assim como as condições de higienização e do mínimo respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, tal como assinala Greco (2014, p.512):
A pena é um mal necessário. No entanto, o Estado, quando faz valer o seu ius puniendi, deve preservar as condições mínimas de dignidade da pessoa humana. O erro cometido pelo cidadão ao praticar um delito não permite que o Estado cometa outro, muito mais grave, de trata-lo como animal.
Então, esse ambiente onde o criminoso permanece enjaulado falha no que diz respeito a um dos objetivos nítidos da pena, qual seja a ressocialização, pois as condições caóticas do sistema carcerário não permitem a “cura” do preso e nem previne novos delitos. Além disso, o criminoso carregará para sempre esse estigma de transgressor da norma é o que podemos depreender desse brilhante comentário:
As pessoas creem que o processo penal termina com a condenação, o que não é verdade. As pessoas pensam que a pena termina com a saída do cárcere, o que tampouco é verdade. As pessoas pensam que prisão perpétua é a única pena que se estende por toda a vida: eis uma outra ilusão. Senão sempre, nove em cada dez vezes a pena jamais termina. Quem pecou está perdido. Cristo perdoa, os homens não. (CARNELLUTI, 2009, pag. 51)
Isso tudo é elevado por alguns veículos midiáticos sensacionalistas e o conservadorismo e oportunismo de certos agentes políticos, os quais na busca pelo mandato eletivo, não se importam em atropelar normas e princípios jurídicos. Alguns desses políticos querem a redução da maioridade penal ou mesmo são contrários ao Estatuto do Desarmamento. [5] Talvez, essas soluções apresentadas amenizariam o problema carcerário e a criminalidade se os conflitos de interesses existentes na sociedade fossem resolvidos internamente sem a necessidade do condão do Direito Penal como querem os abolicionistas. Estes entendem que as normas penais não conseguem intimidar os criminosos, para exemplificar essa situação basta perceber o fenômeno da reincidência, e tampouco realizar um processo de ressocialização, pois elas promovem um sistema seletivo, no qual as classes menos beneficiadas pelo progresso econômico estariam mais sujeitas á prática delitiva e, por conseguinte, à destinação punitiva da norma.
A proposta abolicionista é bastante utópica, haja vista que o crime é polifacético apresentando inúmeros aspectos, tais como os fatores sociais, políticos, econômicos e finalmente jurídicos. Para ilustrar esse sonho de abolição da seara penal, eis uma lúcida e crítica observação:
Mais graves objeções lhe faz Ferrajoli – para quem mesmo numa improvável sociedade perfeita do futuro, em que a delinqüência não existisse ou que não houvesse necessidade de reprimi-la, o direito penal, com todos os seus códigos de garantia, deveria subsistir para aquele único caso que pudesse produzir-se de reação institucional coativa a um fato delitivo, no sentido de que um normativo irremediavelmente utópico, e não exatamente uma previsão científica, idôneos, a seu ver, para acreditar sistemas sociais ainda mais repressivos e totalizantes, que só por uma falácia normativa podem ser descritos como livres de constrições e coações. (QUEIROZ, 1998, p. 58)
Vale salientar que, se um determinado cidadão cogita, escolhe a conduta delituosa, seleciona os meios para executá-la e a consuma concretizando o iter criminis toda a ordem jurídica, sociológica e política falharam. No entanto, vários agentes sociais insistem que não há leis penais suficientes ou aquelas existentes não apresentam um rigor esperado. Ou seja, o Direito Penal é ao mesmo tempo problema e solução.
Nesse contexto de apelo social se vê cada vez mais uma postura autoritária do Estado punitivo em detrimento do minimalismo penal, bem como as políticas de “Lei e Ordem”, a maior criminalização de condutas, com o aumento das penas, supressão de direitos e garantias processuais, quais sejam o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal. Desde 1988 vivemos no Brasil sobre a égide de uma Constituição Democrática, cuja principal característica é a garantia de direitos e deveres individuais e coletivos, justamente para evitar retrocessos já sentidos com a eclosão do golpe militar em 1964.
Porém, se percebe que a onda neoliberal reinante no mundo e com reflexos no Brasil busca impedir a chegada do espírito democrático na Justiça Penal e, por conseguinte, efetivar as previsões constitucionais, pois o projeto é evidente: aumenta-se o desemprego com a distribuição de renda desigual, restringem-se direitos trabalhistas, previdenciários e evitam-se políticas de inclusão social, fatos que contribuirão direta ou indiretamente para a elevação dos índices de criminalidade e como consequência disso há uma necessidade premente de um Direito Penal máximo, arbitrário, autoritário, justamente para controlar o caos causado pelo próprio modelo neoliberal excludente. Assim, a bandeira do combate à criminalidade com o desprezo do princípio da intervenção mínima é uma ótima oportunidade para fortalecer a autoridade do já descrente Estado, tal como arremata WACQUANT (2004, p. 1):
Tornar a luta contra a delinquência urbana um perpétuo espetáculo moral – como querem policiais e políticos ávidos por explorar o problema – permite reafirmar simbolicamente a autoridade do Estado, justamente no momento em que se manifesta sua impotência na frente de batalha econômica e social.
Para exemplificar essa situação pode ser citada a Lei n. 8072/1990, conhecida como Lei dos Crimes Hediondos, que veio para regulamentar o inciso XLIII do artigo 5° de nossa Carta Magna de 1988.[6] Ela foi elaborada em meio a grandes pressões políticas e sociais, devido ao contexto histórico conturbado da época como assinala com maestria Franco (1994, p.75):
Nos últimos anos, a criminalidade violenta aumentou do ponto de vista estatístico: o dano econômico cresceu sobremaneira, atingindo seguimentos sociais que até então estavam livres de ataques criminosos; atos de terrorismo político e mesmo de terrorismo gratuito abalaram diversos países do mundo; o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins assumiu gigantismo incomum; a tortura passou a ser encarada como uma postura correta dos órgãos formais de controle social. A partir desse quadro, os meios de comunicação de massa começaram a atuar por interesses políticos subalternos, de forma a exagerar a situação real, formando uma idéia de que seria mister, para desenvolvê-la, uma luta sem quartel contra determinada forma de criminalidade ou determinados tipos de delinqüentes, mesmo que tal luta viesse a significar a perda das tradicionais garantias do próprio Direito Penal e do Direito Processual Penal.(sic)
Não se quer nessa pesquisa menosprezar a importância da Lei de crimes Hediondos, pois certos crimes como o terrorismo e a tortura devem ser repudiados com veemência, tal como é trazido nela. Porém, o legislador em hipótese alguma pode ser movido por pressões midiáticas, políticas e sociais e utilizar de qualquer forma o Direito Penal para solucionar seus problemas, esquecendo-se do seu caráter minimalista, pois como aduz Pastana (2009, p. 124):
A partir da promulgação da Lei n.8072/90 (grifos) abriu-se caminho para um Direito Penal simbólico e ilusório, crente na ideia de que somente com a elaboração de leis severas é que o controle da criminalidade dar-se-ia de forma eficaz.
É unânime entre todos os cidadãos brasileiros uma busca desesperada por soluções para a criminalidade, porém esquecer o Direito Penal mínimo e tratar o criminoso como um “inimigo” ou outra espécie deturpada de ser humano pronta para o extermínio, dando poderes excessivos ao Estado é temerário para os objetivos do minimalismo e até mesmo da dignidade da pessoa humana, pois com base nessa os direitos do preso também devem ser respeitados. Esse campo é bastante propício para o surgimento dos “justiceiros”, “vingadores”, indivíduos que efervescidos pelo imaginário popular decidem tomar para si o ius puniendi estatal e promovem uma diabolização do transgressor da norma como se ele fosse a representação viva do Mal. Nesse contexto (AMARAL, 2014) se vive a eterna luta do Bem contra o Mal e as punições radicais clamadas e muitas vezes defendidas pelo legislador possuem objetivos desprovidos de eficácia quanto à minimização do problema, pois o que se busca é o efeito impactante de tais medidas junto à opinião pública.
Conclusão
Um Direito Penal mínimo fundado na ultima ratio é o corolário retirado da própria interpretação do texto constitucional de 1988, o qual apresenta uma preocupação de referenciar nitidamente diversos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana justamente para evitar interferências abusivas do ente estatal limitando sua área de atuação (BARROSO, 2009). Assim, é da própria essência do movimento constitucionalista promover essa limitação dos poderes estatais e isso não pode ser diferente com a seara penal, pois suas normas devem respeitar o conteúdo normativo presente na nossa Lei Maior.
Vale acrescentar que o campo penal baseado no princípio da intervenção mínima não significa a redução em importância do papel punitivo do Estado, pelo contrário, o ius puniendi calcado nas normas penais é essencial na manutenção da ordem e por isso deve ser utilizado quando preciso, pois os transgressores da lei, essa em sentido geral, ameaçam na sociedade política a sua harmonia que é um dos objetivos magnos do Direito.
Cabe destacar ainda que o sentimento humano e aqui se acrescente os anseios punitivos oriundos das nossas angústias, inquietações são salutares, pois a existência humana consiste em uma busca incessante por satisfação e felicidade. Sendo que tais sentimentos são essenciais para a própria sobrevivência da espécie humana, pois a sensação de ausência nos leva à inovação, a resolução de conflitos. Porém, é temerário transmitir esses anseios e emoções ao Direito Penal com o desprezo da ultima ratio, pois é muito simples e demagógico criminalizar condutas e promover um endurecimento das leis, trazendo soluções milagrosas e passageiras para o crime do que estabelecer um debate verdadeiro sobre o caráter polifacético do delito com a sociedade, cuja posição de submissão se encontra até nos próprios desejos vendidos pela mídia, políticos, doutrinadores, juristas.
Além disso, a sociedade precisa entender que a seara penal é a face mais violenta e de maior utilização da força repressiva da Justiça e quando se vê esta empunhando somente a espada de forma desequilibrada sem a balança (IHERING, 1998) e movida apenas por anseios punitivos representa-se nela um mero “soldado” frio, decrépito, com a face encarnada pelo sangue dos inimigos e com ações monótonas que ele só apenas realiza sem saber qual o objetivo: os anseios punitivos demasiados levam a inconsciência da punição.
Referências
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WACQUANT, L. As prisões da miséria. Editora J. Zahar: Rio de Janeiro, 2001.
[1] Art.1- A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III- a dignidade da pessoa humana. (BRASIL, 1988)
[2] A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estatui em seu artigo 22 que “Compete privativamente à União legislar sobre: I-direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;”
[3] Mais informações acerca do Relatório Sobre a Situação Mundial de Prevenção à Violência no seguinte endereço eletrônico: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/12/1560654-brasil-tem-a-11-maior-taxa-de-homicidios-do-mundo-diz-oms.shtml.
[4] Levantamento realizado pelo CNJ em 2014 através do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução e Medidas Socioeducativas (DMF).
[5] Muitos desses políticos compõem na Câmara dos Deputados na Comissão de Segurança Pública o que se chama no Brasil de “bancada da bala”, formada por parlamentares oriundos das Forças Armadas, das Polícias Federal, Militar e Civil. Eles prometem aprovar projetos retrógrados. Mais informações no texto Congresso Nacional se Enche de Representantes Ultraconservadores: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/08/politica/1412729853_844912.html.
[6] A Constituição Federal em seu artigo 5°, inciso XLIII, esboça: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evita-los, se omitirem.”