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Princípios éticos aplicados ao contrato

Agenda 20/10/2015 às 09:38

A importância do princípio da eticidade na Nova Teoria Contratual sob a vigência do código de 2002 e as modificações operadas com a aplicação do referido princípio nas relações contratuais.

Introdução

A entrada em vigor do Código Civil de 2002 impõe uma visão renovada em relação aos contratos e suas consequências jurídicas, que requer que este passe a ser compreendido para além da ideia de simples proteção por parte do Estado de vontades individuais, mas, sobretudo, seja tido como meio para alcançar a justiça social.

 Ao iniciar o estudo do princípio da eticidade e sua aplicação nos contratos a partir do Novo Código Civil, procurou-se demonstrar que a subjetividade, comum no trato dos princípios de forma geral, sob nenhum aspecto desconstitui a racionalidade na análise da necessidade de segurança jurídica na realização dos contratos.

O tema se justifica na medida em que o contrato mudou e sua conceituação e prática se funda hoje em princípios que visam  inseri-lo no campo do direito como meio não só de satisfazer vontades individuais, mas também como forma de atender aos anseios sociais.

O presente trabalho começa por expor sucintamente as bases históricas e consequentemente teóricas sobre as quais se apoiou a doutrina dos contratos na vigência do Código Civil de 1916, procurando identificar seu principal marco trazendo em seguida uma exposição acerca do que se entende por princípio da eticidade e a importância de sua aplicação no campo dos contratos, terminando por demonstrar as mudanças que passaram a ditar as bases do que se convenciona chamar de nova Teoria Contratual e sua importância na modificação do pensamento jurídico contemporâneo, inaugurado com o Código Civil de 2002.

A bibliografia pesquisada demonstra o pensamento vanguardista dos doutrinadores brasileiros, tais como Reale (2002), Nery (2003) e Nalin (2005), preocupados em enxergar o contrato contemporâneo sob uma ótica que privilegie os princípios básicos da dignidade humana, entre eles o da eticidade aqui abordado. O estudo desta mudança de paradigmas é sem dúvida de fundamental importância, visto abranger valores que não podem ser olvidados na busca pela realização da justiça.


Desenvolvimento

Para uma compreensão mais acurada do que aqui se pretende explanar, é mister que se determine deste logo no que consiste o princípio da eticidade e de que forma sua aplicação alcança as diversas nuances do contrato.

Eticidade, como o próprio nome sugere, é qualidade ética. Segundo Valls “A ética é daquelas coisas que todo mundo sabe o que são, mas que não são fáceis de explicar, quando alguém pergunta". (VALLS,1993 p.07). Deste modo, nos parece penoso trabalho conceituar a ética sob o ponto de vista da realidade jurídica, mas, para o sentido que queremos imprimir ao presente estudo, nos apropriamos do conceito de mundo ético, segundo Herkenhoff  "o mundo ético é o mundo do "dever ser (mundo dos juízos de valor) em contraposição ao mundo do "ser" (mundo dos juízos de realidade).(HERKENHOFF, 1987 p.19)

Assim, sendo o direito a ciência do dever ser e, portanto valorativa, a aplicação do princípio da eticidade nos contratos, conduz consequentemente a uma visão constitucionalista deste, pois o princípio da eticidade se relaciona com o Direito civil e com o Direito constitucional, de onde se extraem outros conceitos como boa-fé, probidade, equidade e dignidade humana. Tais fundamentos, porém, não podem ser alcançados sem que se leve em conta o elemento subjetivo do contrato e se compreenda o princípio ético da norma como decisivo para o reconhecimento de sua validade.

Sob este aspecto, o constitucionalismo nada mais é do que um esforço para o retorno aos valores morais pela vinculação entre Ética e Direito. Segundo Reale, “as normas éticas não envolvem apenas um juízo de valor sobre os comportamentos humanos, mas culminam na escolha de uma diretriz considerada obrigatória numa coletividade”.   (REALE, 2002).

Ainda Reale, ao procurar conceituar a boa fé, afirma que “a boa-fé é condição essencial à atividade ético-jurídico, caracterizando-se pela probidade de seus participantes”. (REALE, 2002). Deste modo fica claro que o contrato sob o ponto de vista da eticidade é aquele que para além de consectário de vontades individuais, privilegia a aplicação de princípios como o da boa-fé para alcançar a justiça social.

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A teoria dos contratos no Código Civil de 1916 – Aspectos históricos e teóricos.

Inicialmente, para que se possa vislumbrar claramente a mudança de paradigma operada sob o tema da Teoria Contratual, é necessário conhecer o pensamento vigente à época do Código Civil de 1916 e sua implicação no tratamento jurídico dado ao tema neste mesmo Código.

O Código Civil de 1916 nasce na vigência do Estado Liberal de base Inglesa, onde o “indivíduo” é tratado como sujeito de direitos sem, contudo, se tratar a sociedade como um conjunto de indivíduos a quem se reconhecem direitos coletivos como gradualmente vem a ocorrer. Igualmente, no que diz respeito ao direito de propriedade, este é dito absoluto, não conhecendo as limitações impostas hoje pela função social. Desta forma, o Estado é chamado basicamente para regular o direito de propriedade já que a idéia de liberdade se resume a não fazer o que a lei proíbe. É a fase do Estado Abstencionista.

Tal diploma legal, como também o faz o Código Civil ora vigente, não conceitua contrato, inferindo-se seu conceito de sua própria aplicação.

Dentro desta visão liberal do Estado e por consequência visão liberalista do contrato, entendido aqui como meio de se obter propriedade, a vontade dos contratantes é absoluta cabendo ao Estado protegê-la quando expressa validamente, mas sem questionamentos de ordem social e, portanto, finalísticos acerca do contrato já que baseado no princípio da eficácia relativa destes vislumbra-se o contrato como hermético sem ainda se dar conta de seus reflexos para além da esfera sinalagmática. Como consequência, essa visão do contrato torna a ideia de equilíbrio entre as partes muito mais suposta que real, dando lugar a inúmeras injustiças, pois que a rigidez do “pacta sunt servanda”(os contratos existem para serem cumpridos) anula a possibilidade de se corrigir uma eventual hipossuficiência de qualquer das partes posterior à contratação, por exemplo.


Mudança de paradigmas – O contrato no código civil de 2002.

O final do século XIX trouxe consigo o desenvolvimento industrial inaugurando a chamada “sociedade de consumo”. Tal modificação afetou cabalmente o contrato como até então este se dava. De um contrato pessoal, passa-se ao contrato massificado obrigando o Estado a intervir no contrato como forma de proteção da própria sociedade, conforme Tepedino:

“O direito civil – assim como os outros ramos do chamado direito privado, o direito comercial e o direito do trabalho – assiste a uma profunda intervenção por parte do Estado. Procurou-se com êxito evitar que a exasperação da ideologia individualista continuasse a acirrar as desigualdades, com a formação de novos bolsões de miseráveis - cenário assaz distante do que imaginaria a ideologia liberal no século anterior, ou seja, a riqueza das nações a partir da riqueza da burguesia-, tornando inviável até mesmo o regime de mercado, essencial ao capitalismo. Estamos falando, como todos sabem, da consolidação do Estado Social.” (TEPEDINO, 2003 P.117)

  O Estado de Direito impõe a adequação da legislação infraconstitucional à Carta Magna de cada país, sendo esta sem sombra de dúvida, o pressuposto paradigmático utilizado para a concepção do Código Civil de 2002, na esteira do pensamento já implantado na Constituição de 1988, conduzindo ao processo de constitucionalização do Código Civil.

É certo que sob o ponto de vista do direito constitucional, a modificação operada nos contratos está intimamente ligada aos novos paradigmas inaugurados com a Constituição de 1988, que privilegia o cidadão como ente para o qual o direito está posto e em quem este deve encontrar seu legítimo fim.

Porém, os princípios vigentes no código de 1916, tais como o da liberdade contratual, da obrigatoriedade dos contratos e da eficácia relativa destes, não são eliminados a partir da mudança que se opera quando o Código Civil Brasileiro de 2002 entra em vigor. O que existe é uma limitação do seu alcance, e consequentemente limitação de seu conteúdo, numa simbiose que procura garantir a convivência dos princípios liberais anteriormente vigentes com os chamados princípios sociais do contrato.

Sobre este novo Contrato, manifesta-se Nalin afirmando ser ele “a relação jurídica subjetiva, nucleada na solidariedade constitucional, destinada à produção de efeitos jurídicos existenciais e patrimoniais, não só entre os titulares subjetivos da relação, como também perante terceiros” (NALIN, 2005 p.255).

 Ou seja, o contrato na visão moderna deixa de contemplar apenas a realidade dos sujeitos contratantes, mas se expande para além das próprias fronteiras, trazendo efeitos reflexos aos terceiros não participantes deste acordo, daí a necessidade de estuda-lo sob a ótica ampliada dos princípios constitucionais.  Corroborando tal entendimento, leciona Nery Jr. que o contrato “tem de ser entendido não apenas como as pretensões individuais dos contratantes, mas como verdadeiros instrumentos do convívio social e de preservação os interesses da coletividade, onde encontra a sua razão de ser e de onde se extrai a sua força, pois o contrato pressupõe a ordem estatal pra lhe dar eficácia.” (NERY JR.,2003 p.338).

Na visão de Reale, não se pode analisar o contrato abstratamente, dando a este somente o entendimento do direito positivado, como se a norma devesse ser aplicada num campo estéril, separada da realidade que cerca os indivíduos, pois, segundo ele, “O Contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o Contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida.” (REALE 1986 p.10). Com esta afirmação se coloca, pois, em patamar de igualdade o interesse das partes e o interesse social de modo que o interesse juridicamente protegido das partes na consecução do contrato não venha a prejudicar o interesse social. Como exemplo desta nova visão, o Código Civil vigente afirma expressamente em seu artigo 422 que “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”.

A boa-fé é derivada do princípio da eticidade que orienta a construção do Código Civil de 2002 valorizando a conduta das partes contratantes, obrigando-os a manter os bons costumes, a moral e tantos outros conceitos abstratos que são insertos nesta cláusula geral.

Como conceito de cláusula geral, temos o ensinamento de Nery e Nery Jr. quando afirma que cláusulas gerais são “normas orientadoras sob forma de diretrizes, dirigidas precipuamente ao juiz, vinculando-o ao mesmo tempo em que lhe dão liberdade para decidir.” (NERY JR; NERY 2005 p.142)

Sob este ponto de vista, podemos compreender que cláusulas gerais são janelas abertas no ordenamento, pelas quais a norma dialoga com a realidade transformando o abstrato em concreto e aplicável, e neste diálogo possibilita ao julgador encontrar o modo mais adequado de aplica-la e alcançar a justiça.


Conclusão

Pelo exposto, concluiu-se que o contrato, desde seu nascedouro no direito romano sofreu alterações importantes ao longo do tempo. Alterações estas, fruto da mudança de paradigmas operada no direito privado a partir da Constituição de 1988. Os princípios basilares da Carta Magna, voltada para a valorização do indivíduo enquanto partícipe de uma sociedade e a propagação da ideia de um direito principiológico voltado para atender aos anseios do cidadão da forma mais ampla possível dentro do conceito de respeito à dignidade da pessoa humana foram fundamentais para esta mudança.

Hoje não se imagina mais o contrato como representante máximo do direito de liberdade, traduzido num meio de possuir algo sob o ponto de vista material, como não se imagina um acordo de vontades que não encontre limitação nos princípios constitucionais. A evolução para compreensão de que o contrato deve, entre outras coisas, obedecer a uma função social desaguaram no Código Civil de 2002, inaugurando um momento novo, em que o direito é pensado como meio de alcançar a justiça não apenas enquanto conceito abstrato, mas trazendo ao homem moderno uma norma cada vez mais adequada ao seu anseio capaz de se inserir na realidade que o cerca com efetiva aplicabilidade e efetiva resposta.

Os princípios da eticidade aqui abordado, da boa-fé, da operacionalidade e tantos outros tem se convertido em bandeiras importantes na busca por um direito que efetivamente alcance seu fim precípuo que é a justiça.

A visão do direito privado sob a ótica constitucional é um caminho sem volta, uma vez que um retrocesso não condiz com a evolução social, econômica e política instaurada em nosso meio, sendo por isto essencial ao processo de construção de um direito e de um contrato cada vez mais afinado com a sociedade em que está sendo aplicado.


REFERÊNCIAS

BRASIL. CÓDIGO CIVIL.Organização de Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2003

HERKENHOFF, J. B. Introdução ao Estudo do Direito (a partir de perguntas e respostas). Campinas: Julex Livros, 1987.

NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno. Curitiba: Juruá, 2005.

 NERY Jr, Nelson. e NERY, Rosa Maria de Andrade Código Civil Comentado. Revista dos Tribunais, 2005.

REALE, Miguel. O projeto do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1986.

REALE, Miguel. Estudos Preliminares do Código Civil, São Paulo: Revista dos. Tribunais, 2003.

TEPEDINO, Gustavo. A Constitucionalização do direito civil: perspectivas interpretativas diante do novo código. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord.). Direito civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

VALLS, Álvaro Luiz Montenegro. O que é ética. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.

Sobre o autor
Risomar Gomes Monteiro Fialho

Advogada. Professora de História do Pensamento Jurídico da Faculdade Paraíso/CE.. Especialista em Direito Empresarial.

Informações sobre o texto

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