Emilio Betti, célebre jurista italiano, presenteou a ciência jurídica com uma valiosa contribuição doutrinária sobre teoria geral da interpretação. Destacam-se, porém, apenas dois pontos: a interpretação histórica e a normativa.
A primeira, consiste em absorver de determinada produção jurídica o sentido exato que ela continha à época de sua elaboração, reconstruindo então significados e origens[1]. A segunda, concatenada com a primeira, traduz a ideia de que a interpretação não deve todavia se restringir a isso, pois ela deve também ser realizada de maneira conjugada, perante o contexto atual[2].
Com efeito, ao se transpor a teoria italiana para uma reflexão acerca do processamento de agente político por crime de responsabilidade, qual seria a interpretação mais adequada ao art. 86 da Carta Política, quando em seu parágrafo quarto dispõe que não pode o Presidente da República, na vigência de seu mandato, ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções?
Pareceres de juristas como Dalmo Dallari, Bandeira de Mello e Fabio Konder Comparato sugerem, em outras palavras, que a vontade da Constituição está clara: em hipótese alguma, eventuais atos cometidos no mandato anterior podem contaminar a legitimidade do seguinte. Para eles, pode-se dizer, a depender da sucessão cronológica dos fatos, o reeleito pode continuar a reger o destino do país “intocável”. As instituições que aguardem o término do mandato para responsabilizá-lo.
Não parece, contudo, ser esse o tipo de blindagem que se extrai do espírito da Constituição. Se o impeachment foi o instrumento criado para impedir o atropelamento de certos preceitos, elementares ao Estado de Direito, como se pode dizer que esse sentido perde parte de sua eficácia acaso o candidato seja reeleito? Se relega então a moralidade pública a um fator temporal aleatório? No caso da Presidente Dilma, pode-se afirmar que o cenário não teria sido diferente se o eleitorado conhecesse todos os fatos expostos meses depois? Como é possível, ademais, interpretar gramaticalmente o §4º do artigo art. 86, editado em 1988, se a EC nº 16, que autorizou a reeleição para chefes do Executivo, é apenas de 1997, quase 10 anos depois? O que o referido artigo pretendeu foi tão somente impedir perseguições políticas, herança de outrora. A melhor interpretação deve ter sido antes devidamente contextualizada.
Portanto, mostra-se razoável concluir que há uma relação umbilical de continuidade entre mandatos em caso de reeleição. Dizer o contrário é expor aspirações antirrepublicanas do próprio constituinte originário, é fragilizar a teoria hermenêutica ao escancarar um apego exagerado ao formalismo positivista. Pode então a exegese caminhar para emprestar sentido ao que o legislador não poderia antever? Ademais, a resposta só pode ser negativa se se pensar no preço da democracia, intransigível!
[1] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pág 91.
[2] Idem, pág.91.