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Combate ao racismo:HC 82.424-2/RS

Agenda 28/10/2015 às 15:48

O trabalho refere-se ao habeas corpus 82.424 do Rio Grande do Sul de 17 de Setembro de 2003, tendo como Paciente o editor Siegfried Elwanger e como Impetrante Werner Catalício, João Becker e Rejana Maria Davi Becker.

Introdução

O trabalho refere-se ao habeas corpus 82.424 do Rio Grande do Sul de 17 de Setembro de 2003, tendo como Paciente o editor Siegfried Elwanger e como Impetrante Werner Catalício, João Becker e Rejana Maria Davi Becker. Discute-se aqui se a publicação, edição e comercialização de livros com conteúdo discriminatório em relação aos judeus enquadra-se dentro do crime de racismo. Como consequência da prática desse crime, os Ministros acabam por ter que discutir a questão da imprescritibilidade e da inafiançabilidade. Todo o debate envolvido no habeas corpus levanta questões como o conceito de raça e racismo, o princípio da liberdade de expressão do indivíduo, os tratados internacionais e outros princípios constitucionais envolvidos no caso. Por 8 (oito) votos a 3 (três), os Ministros do STF acabam por negar o pedido do habeas corpus. Os Ministros Moreira Alves, Marco Aurélio e Carlos  Ayres Britto foram os que deferiram o pedido enquanto os Ministros Gilmar Mendes, Maurício Correa, Celso de Mello, Carlos Velloso, Nelson Jobim, Ellen Graice, Cezar Peluso e Sepúlveda Pertence negaram provimento ao pedido.

            Entretanto, antes de discutirmos o caso concreto, vamos falar um pouco sobre o habeas corpus de uma maneira geral.

1. Origem do habeas corpus

            São apontadas três diferentes origens para o instituto do habeas corpus. A primeira delas traz o habeas corpus com origem no Direito Romano. A origem mais apontada pelos autores é que teria surgido com a Magna Carta em seu capítulo XXIX. Por último, temos ainda aqueles que apontam sua origem no reinado de Carlos II, com a edição da Petition of Rights.

            No Brasil, o instituto foi introduzido com a vinda de D. João VI, juntamente com o Direito português que para foi cá trazido. Expressamente, entrou em nosso ordenamento com o Código de Processo Criminal de 1832 e foi tratado como matéria constitucional em 1891.

1.1. Conceito e Finalidade

            O artigo 5º, inciso LXVIII traz a seguinte redação:

“conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.

A partir deste texto podemos inferir que o habeas corpus trata-se de uma garantia individual ao direito de locomoção, traduzida por uma ordem de um juiz ou Tribunal ao coator que faz com que se cesse a ameaça ou o desrespeito à liberdade de locomoção.

Quando o Tribunal aprecia o habeas corpus, não se vincula nem ao pedido e nem à causa de pedir. Vale ainda dizer que a pessoa jurídica não pode figurar como paciente na impetração do instituto, pois não há direito de locomoção a ser defendido.

 Mesmo que seja deferido o habeas corpus, o mesmo não é meio de se anular a sentença com trânsito em julgado, pois vai contra ao que é demonstrado nos autos. Serve apenas para corrigir o erro da fixação da pena por meio da sentença.

1.2. Natureza Jurídica

            O habeas corpus é uma ação constitucional de caráter penal e procedimento especial, gratuita e que busca evitar ou cessar lesão ou ameaça de lesão à liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso do poder. Apesar de estar regulamentada na parte de recursos do Código do Processo Penal, não se enquadra como tal. Devemos ressaltar que se trata de um meio de controle difuso, como já foi estudado, visto que aplica-se a um caso concreto.

1.3. Garantia Constitucional da Liberdade de Locomoção

            Tal garantia é uma norma constitucional de eficácia contida, pois sua amplitude pode ser delimitada por lei ordinária, desde que não tenha arbitrariedades.

            No artigo 5º, inciso XV, a Constituição determina que

            O direito de livre locomoção é destinado tanto para brasileiros, como para estrangeiros residentes ou não no país. A partir do que foi exposto, podemos concluir que a liberdade de locomoção engloba quatro situações:

1.4. Legitimidade

            A legitimidade para ajuizar habeas corpus se dá de duas formas:

1.5. Espécies

2. Conceito de raça e racismo

              O art. 3º, IV da CF cita como um objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Podemos dizer, como o fez o Ministro Carlos Ayres Britto, que são sinônimos preconceito e discriminação, significando distinção. O conceito de discriminação divide-se em:

“tratamentos diferenciados para grupos ‘estigmatizados’ como forma de combater injustiças, procurando promover uma igualdade real, em detrimento da igualdade formal” (CALIXTO, p. 5);

Um tipo de diferenciação que isola e diminui a autoestima de certas pessoas, fazendo com que elas pensem ser inferiores às outras pessoas, ou mesmo hipossuficientes.

            Assim, pode-se dizer que o termo preconceito é, citando a Ministra Ellen Gracie em referência ao mestre italiano Pierre-André Taguieff, um juízo prematuro através do qual conclusões são atingidas sem se ter a certeza necessária. Logo, pratica-se preconceito contra um grupo quando há um juízo prematuro a seu respeito e a exteriorização desse juízo o isola e diminui a autoestima de seus membros, fazendo com que eles pensem que são hipossuficientes.

            Partindo dessa primeira exegese, chega-se ao segundo dispositivo em análise: o inciso XLII do art. 5º da CF: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

            O vocábulo inicial do dispositivo constitucional já suscita muitas indagações. Segundo o Ministro Carlos Ayres Britto, na interpretação constitucional deve-se sempre optar pelo significado comum das palavras, afastando, quando necessário, o seu sentido técnico, pois a Constituição é um documento político, e não técnico-jurídico. Assim, devemos entender o vocábulo “prática” como um agir, o que inclui a realização de um trabalho, a produção de uma obra, a exteriorização de uma opinião, a gesticulação, só estando excluído aqui o ato de pensar. Inseridas no contexto desse vocábulo, portanto, estão as figuras da incitação (instigar escancaradamente) e do induzimento (instigar por meios subliminares e sorrateiros). De acordo ainda com o Ministro Carlos Ayres Britto, “tudo é racismo, tudo é tipificação direta. Pouco importando se o crime se dá por ação própria e imediata do agente, ou se ocorre por aliciamento ou cooptação da conduta alheia.” (HC 82.424-2/RS, p. 308). Logo, tais condutas (incitar e induzir a prática do racismo) não perdem seu caráter inafiançável e imprescritível, como prevê o inciso supratranscrito.

            E, finalmente, chegamos ao significado das palavras raça e racismo. Os Ministros, em sua totalidade, concordam que, segundo uma interpretação antropológica e biológica, não é possível falar em diversas raças, pois, como diz o Ministro Celso de Mello, “todos os seres humanos pertencem à mesma espécie e tem a mesma origem”. Alguns, como o Ministro Maurício Corrêa, chegam até a citar o Projeto Genoma Humano – e a Ministra Ellen Gracie cita inclusive a Bíblia - para justificar tal entendimento. Porém, a maioria dos Ministros – com exceção do Ministro Relator Moreira Alves – entende que a conceituação de racismo não pode ser feita com base no conceito antropológico de raça, devendo ser levado em conta, por sua vez, que "a divisão dos seres humanos em raças decorre de um processo político social, originado da intolerância dos homens” (Ministro Maurício Correa - HC 82.424-2/RS, p. 13). Como afirmou o Professor Celso Lafer em parecer para a Corte, citado pelo Ministro Celso de Mello: “Os judeus não são uma raça, mas também não são raça os negros, os mulatos, os índios e quaisquer outros integrantes da espécie humana que, no entanto, podem ser vítimas de prática do racismo”. Além disso, deve-se compreender abrangidas pelo conceito de racismo tanto a discriminação contra a cor da pele negra, como aquela praticada contra os mais diversos grupos devido à sua história e cultura diferenciadas. Portanto, está compreendido no conceito de racismo o antissemitismo. Podemos acrescentar ainda que a discriminação, lato sensu, é a separação de um grupo por um dos motivos elencados no inciso IV do art. 3º da CF, enquanto o racismo se restringe à discriminação pelo motivo raça.

            Desse modo, os Ministros se opõem à posição do relator, o Ministro Moreira Alves, que afirma que pelo fato de não poder se falar em diferentes raças, os judeus não constituem uma raça e, portanto, o crime de discriminação cometido não pode ser qualificado como racismo. Ele defende uma interpretação estrita do texto constitucional. Os demais Ministros, por outro lado, não aceitam a tese de utilização de uma exegese estrita em nenhum ponto desse caso. Segundo o Ministro Carlos Ayres Britto “não se trata de interpretar um comando de puro Direito Penal, mas de Direito Constitucional-penal.” Nesse caminho, podemos citar ainda autores como Canotilho – “dentre as interpretações possíveis, deve ser adotada aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais” - e Alexandre de Moraes - "deve buscar a harmonia do texto constitucional com suas finalidades recíprocas, adequando-a à realidade e pleiteando a maior aplicabilidade dos direitos , garantias e liberdades públicas" (HC 82.424-2/RS, p. 33). “Enquanto subsistirem práticas preconceituosas advindas de juízos de desvalor em relação a determinados grupos ‘raciais’, o Direito deve fornecer a adequada resposta do Estado à violação dos direitos fundamentais do sujeito que é vítima do racismo.” (CALIXTO, p. 7)

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3. Contraposição de princípios

3.1. Liberdade de expressão e proporcionalidade

            O princípio democrático possui institutos e mecanismos que tem por finalidade torná-lo concreto, como por exemplo, o sufrágio universal, a separação de Poderes e o sistema de direitos fundamentais.

            Esse sistema, cujos direitos asseguram a contribuição de todos os cidadãos para o exercício da democracia, é considerado elemento constitutivo do Estado de Direito.

            Dentre eles, está o direito à liberdade de expressão, o qual possui um papel de extrema relevância, reunindo o direito de discurso, direito de opinião, direito de imprensa, direito à informação e a proibição da censura. Seu valor instrumental é o de proteção da autodeterminação democrática da comunidade política e da preservação da soberania popular.

            Apesar desse direito ser intrínseco à democracia, ele não é absoluto. É nesse sentido que o sistema constitucional brasileiro não resguarda o abuso da liberdade de expressão. A única restrição possível e aceitável é quanto à maneira como esse pensamento é difundido, por exemplo, quando são utilizados meios violentos e arbitrários para a divulgação do pensamento.

            O Ministro Marco Aurélio, afirma que reduzir a liberdade de expressão, significaria suprimir o próprio princípio democrático, visto que censura de conteúdos sempre foi o artifício mais forte utilizado por regimes totalitários, a fim de impedir a propagação de ideias que lhes são contrárias.

            Quanto ao caso concreto, o Ministro considera que o paciente restringiu-se a escrever e a difundir a versão da história, vista pelos seus próprios olhos, através de pesquisa científica, com os elementos peculiares, ou seja, exercitou a livre expressão intelectual do ofício de escritor e editor, conforme previsto na Constituição Federal.

            Para ele, seria mais facilmente defensável a ideia de restringir a liberdade de expressão, se a questão do habeas corpus tratasse sobre problemas cruciais enfrentados no Brasil, tais como a integração dos negros, índios ou nordestinos na sociedade.

            Além disso, considera a aplicação do princípio da proporcionalidade um meio eficaz para ponderar diante da colisão de dois direitos fundamentais. No caso concreto, de um lado está a proteção à dignidade do povo judeu, de outro, a garantia à liberdade de expressão.

            Visto isto, ele considera o livro apenas um exemplo de um raciocínio extremado, e não uma forma de propagação racista e também afirma que a condenação efetuada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul não foi o meio mais adequado, necessário e razoável.

            No mesmo sentido, o Ministro Carlos Ayres Brittoafirma que existem excludentes constitucionais da abusividade da liberdade de expressão, trazidas pelo inciso VIII do art. 5º, quais sejam: crença religiosa, convicção política e filosófica. Assim, não pode ser considerado crime “a formulação de doutrinas e teorias que tenham na estruturação e funcionalização otimizadas dos Estados e dos Governos o seu específico objeto (fórmula simplificada de compreensão da Política enquanto Ciência e enquanto arte de governar)”.

            Já o Ministro Gilmar Mendesse utiliza dos mesmos princípios para defender uma tese contrária. Ele afirma que deve-se observar um juízo de proporcionalidade, para que a liberdade de expressão não leve à intolerância, de forma que prejudique a dignidade humana e os valores inerentes a uma sociedade pluralista.  Para ele, o texto constitucional brasileiro legitima e reclama a intervenção estatal com o propósito de concretizar a proteção destes valores, unidos também à honra e à privacidade, promovendo limites à liberdade de expressão, evitando seu excesso.

            Concordando com o Ministro Gilmar Mendes, o Ministro Cezar Peluso afirma que tal prática contraria a tutela constitucional, transpondo os limites da liberdade de expressão, assim como o Ministro Celso de Mello declara que publicações que “extravasam os limites da indagação científica e da pesquisa histórica, degradando-se ao nível primário do insulto, da ofensa e, sobretudo, do estímulo à intolerância e ao ódio público pelos judeus, não merecem a dignidade da proteção constitucional que assegura a liberdade de expressão do pensamento. Desta forma, ele considera o livro em questão uma forma de desrespeito aos direitos e garantias de terceiros e não merece ser legitimado pela liberdade de pensamento, visto que a dignidade da pessoa humana limita a liberdade de expressão.

            No mesmo sentido, para o Ministro Nelson Jobima previsão de liberdade de expressão não assegura o “direito à incitação ao racismo”, visto que um direito individual não pode servir de salvaguarda de práticas ilícitas.

3.2. Dignidade Humana e Igualdade

            No tocante à definição do que venha a ser “dignidade da pessoa humana”, não há na Constituição Brasileira ou em qualquer documento internacional de proteção a “dignidade da pessoa” conceito instituído; deixando à cargo de juristas e Tribunais em todo o mundo tal incumbência.

            A noção de dignidade da pessoa humana envolve uma gama de considerações de ordem filosófica, cultural, política e histórica. A dignidade da pessoa humana é princípio fundamental, qualidade inerente de todo e qualquer indivíduo, constituindo um critério de unificação de todos os direitos que remetem ao ser humano.

            Afirma o jurista José Afonso da Silva: “Vê-se que a dignidade é atributo intrínseco, da essência, da pessoa humana, único ser que compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que não admite substituição equivalente. Assim a dignidade entranha-se e se confunde com a própria natureza do ser humano”. Paulo Bonavides preceitua o entendimento: “Nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana.”

            Pode-se encontrar a dignidade humana presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos (Preâmbulo- “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”), Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e Declaração e Programa de Ação de Viena. A Constituição Brasileira de 1988 trouxe, pela primeira vez na história do nosso país, a dignidade como fundamento do Estado Brasileiro (CF, art. 1°, inciso III).

            Revela ser essencial a busca de uma hermenêutica teleológica, e sistêmica da Carta Federal, acerca da interpretação dos princípios, sobretudo, quanto à acepção e aplicação dos direito humanos fundamentais, assim, reporta Alexandre de Moraes:

“deve buscar a harmonia do texto constitucional com suas finalidades recíprocas, adequando-a à realidade e pleiteando a maior aplicabilidade dos direitos , garantias e liberdades públicas”.

            O Senhor Maurício Corrêa declara que: “as teorias antissemitas congenitamente relacionadas com o nazismo, incentivada pelo paciente em suas publicações começam por eliminar a possibilidade de os judeus possuírem direitos inerentes à cidadania, daí evoluindo para as barbáries que eliminam a dignidade do ser humano”.

            O princípio da Igualdade (CF -1°, II; 3°, IV; 4°, II, VIII; 5°, caput, I, XLI) está ligado à afirmação do princípio da não discriminação, ou seja, reconhece-se que todos são iguais perante a lei, e, portanto, não pode haver discriminações que excluam pessoas ou grupos do exercício de determinado direito por terem realizado certas escolhas , como opção religiosa, ou por possuírem determinadas características intrínsecas, como as de gênero

            Reporta Alexandre de Moraes: “igualdade se configura como uma eficácia transcendente, de modo que toda situação de desigualdade persistente à entrada em vigor da norma constitucional deve ser considerada não recepcionada.”.

            Sob exame do princípio da Igualdade, José Joaquim Gomes Canotilho retrata que:

       “A partir do princípio da igualdade e dos direitos de igualdade específicos consagrados na constituição, a doutrina deriva esta função primária e básica dos direitos fundamentais: assegurar que o Estado trate seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente iguais. (...) Alarga-se [tal função] de igual modo aos direitos a prestações (prestações de saúde, habitação). É com base nesta função que se discute o problema das quotas (ex.: parlamento paritário de homens e mulheres) e o problema das ações tendentes a compensar a desigualdade de oportunidades (ex.: quotas de deficientes)”.

4. Tratados Internacionais

            Para Perez Luño, Direitos Humanos são caracterizados como “um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos, nos planos internacional e nacional”. Estes são, fundamentalmente, os direitos protegidos pela decisão do Supremo Tribunal Federal para o caso de Siegfried Ellwanger, pois garantem a dignidade da pessoa humana e o tratamento igualitário entre todos. Estes valores são admitidos pela comunidade internacional e pelo Estado brasileiro, sobretudo no artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

            Os Ministros que negaram o habeas corpus de Siegfried Ellwanger se referem à diversos Tratados e Declarações Internacionais que asseguram a dignidade da pessoa humana e repudiam toda e qualquer forma de discriminação e preconceito. A Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de fundamental importância não só no contexto internacional, mas também nacional, de forma geral, visa defender e preservar os direitos essenciais de todas as pessoas, que traduzem valores que jamais poderão ser esquecidos ou desrespeitados. Em seu artigo segundo, afirma que “toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua,  religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.

            Outra convenção de fundamental importância no contexto do caso Siegfried é a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial de 1965. Seus artigos I e IV trazem importantes afirmações:

           

“Artigo I

Nesta Convenção, a expressão "discriminação racial" significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que têm por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública.

Artigo IV

       Os Estados-Partes condenam toda propaganda e todas as organizações que se inspirem em idéias ou teorias baseadas na superioridade de uma raça ou de um grupo de pessoas de uma certa cor ou de uma certa origem étnica ou que pretendam justificar  ou encorajar qualquer forma de ódio e de discriminação raciais, e comprometem-se a adotar imediatamente medidas positivas destinadas a eliminar qualquer incitação a uma tal discriminação, ou quaisquer atos de discriminação com esse objetivo, tendo em vista os princípios formulados na declaração Universal dos Direitos do Homem e os direitos expressamente enunciados no artigo V da presente Convenção, inter alia:

  1. a declarar delitos puníveis por lei, qualquer difusão de idéias baseadas na superioridade ou ódio raciais, qualquer incitamento à discriminação racial, assim como quaisquer atos de violência ou provocação a tais atos, dirigidos contra qualquer raça ou qualquer grupo de pessoas de outra cor ou de outra origem étnica, como também qualquer assistência prestada a atividades racistas, inclusive seu financiamento;
  2. a declarar ilegais e a proibir as organizações, assim como as atividades de propaganda organizada e qualquer outro tipo de atividade de propaganda que incitarem à discriminação racial e que encorajem e a declarar delito punível por lei a participação nestas organizações ou nestas atividades;
  3. a não permitir às autoridades públicas nem às instituições públicas, nacionais ou locais, o incitamento ou encorajamento à discriminação racial.”

            Não se pode considerar o povo judeu como uma raça, pois, como entende o professor Celso Lafer, previamente citado, “os judeus não são uma raça, mas também não são raça os negros, os mulatos, os índios e quaisquer outros integrantes da espécie humana que, no entanto, podem ser vítimas de prática do racismo. Uma interpretação extensiva é feita, pois interpretar o crime da prática do racismo a partir do conceito de ‘raça’ (...) representa, sobretudo, reduzir o bem jurídico tutelado pelo Direito brasileiro, o que não é aceitável como critério de interpretação dos direitos e garantias constitucionais”. Se fosse realizada a interpretação restritiva para julgamento de práticas racistas, todos os crimes seriam impossíveis, tendo em vista que raça é só uma, a humana (haveria inexistência do objeto). Logo, a análise com base na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial é plenamente possível.

            O artigo 5°, parágrafo 2°, afirma que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil seja parte”. Logo, o papel dos Tratados Internacionais e a luta, em contexto global contra práticas racistas, influenciam de maneira decisiva no julgamento de caso em questão.

            A liberdade de expressão, garantia que entra em confronto com a dignidade da pessoa humana no caso Siegfried, também é protegida por convenções internacionais, no entanto, vale ressaltar que o Comitê Internacional de Direitos Humanos admite interferências justificáveis no direito à liberdade de expressão, especialmente onde entra a dignidade da pessoa humana. Ou seja, a liberdade de expressão é mantida apenas quando não atentar contra a dignidade humana.

            Finalmente, cabe uma reflexão sobre o significado do compromisso que o Brasil assumiu ao subscrever a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, pois essa passa a incidir sobre todo o Estado de maneira plena, não havendo espaço para práticas que incitem ódio e preconceito contra uma comunidade, seja ela qual for. Como afirma o Ministro Celso de Mello, “aquele que ofende a dignidade pessoal de qualquer ser humano, especialmente quando movido por razões de fundo racista, também atinge- e atinge profundamente- a dignidade de todos e cada um de nós”.

5. Imprescritibilidade dos crimes de racismo

5.1. O instituto da prescrição e seus fundamentos

            A partir da ocorrência do fato típico, ilícito e culpável, surge ao Estado o “direito de punir” (como direito de punir, deve-se entender que o Estado atrai para si o direito-dever de punir, isto porque a ele é atribuído o direito de punir, bem como o dever de punir, por ordem social), o qual se traduz através do jus puniendi.

            Entretanto, tal pretensão punitiva estatal possui certos limites, sendo que a prescrição é um dos critérios limitadores do poder punitivo estatal.

            Tendo tais constatações, podemos definir prescrição como “a perda do direito de punir do Estado, pelo decurso do tempo, em razão de seu não exercício, dentro do prazo previamente fixado.” (BITENCOURT, p. 728)

            A fundamentação do instituto da prescrição resume-se em quatro tópicos básicos, a saber:

5.2. Imprescritibilidade nos crimes de racismo na Constituição de 1988. Fundamentação história, social e política.

            A Constituição Federal de 1988 propugna em seu art. 5º, XLII:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(...)

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;  

            A partir da exegese da palavra “racismo”, bem como de um estudo do instituto da prescrição e seus fundamentos, como já anteriormente relatado, a questão da imprescritibilidade quanto aos crimes de racismo, e tão somente a estes, há verdadeira exceção no que tange o estudo da imprescritibilidade tendo em vista as matizes da dogmática do direito penal brasileiro e toda sua política criminal.

            O Senhor Ministro Nelson Jobim, citando Alain Laquièze, informa “existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento”.

            Através da citação deste ilustre jurista, observa-se o posicionamento de que se optou pela imprescritibilidade nos crimes de racismo devido ao fato de tais crimes perdurarem pela eternidade, consubstanciando-se em aspectos sociais e históricos.

            Baseia-se, também, a imprescritibilidade nos fundamentos de que a “dignidade da pessoa humana” é um “princípio fonte”, e por sê-lo, deverá sobrepor aos demais princípios, inclusive aos fundamentos que sustentam o instituto da prescrição.

            Ademais, também, o legislador optou pela imprescritibilidade ao levar em consideração o âmbito histórico-social brasileiro. Nesse sentido, considerou o legislador que o racismo deveria ser elevado ao patamar de “crime exceção” no tocante à prescrição devido ao fato de que ainda são visíveis as marcas deixadas pelas práticas racistas no passado, ainda que não muito distante.

            Em sentido diametralmente oposto, temos a posição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho que preleciona que o constituinte, neste aspecto, parece ter desalinhado das concepções modernas do direito penal à medida que este preconiza limitação do direito de punir. (FERREIRA FILHO, p. 59)

            A prescrição está intimamente ligada à capacidade e necessidade do ser humano reafirmar a sua finitude, bem como a mudança na qual o tempo é capaz de lhe proporcionar (CALIXTO, p. 27) e, por esta razão, incabível seria adoção de qualquer exceção quanto à prescrição.

            Conclui-se que a escolha pela instituição da prescrição criminal ou da imprescritibilidade de determinado crime diz respeito tão somente aos aspectos culturais, político-criminais e sociais. No caso em apreço, qual seja o racismo, optou-se pela imprescritibilidade.

Conclusão

Toda e qualquer forma de distinção, discriminação ou preconceito são de responsabilidade do Estado, conforme exposto no artigo 3º, inciso IV da Constituição Federal: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Assim ressalta-se a importância de intervenção contra estas formas de exteriorização de juízo prematuro que diminua a autoestima ou induza a hipossuficiência, assim como relata Pierre-André Taguieff, entre os brasileiros natos ou naturalizados e estrangeiros.

Socorrendo-se de tratados internacionais pactuados pelo país, que conforme o artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição Federal, que não podem ser descaracterizados, além do texto legal nacional, cabe ao Estado garantir que todos sejam tratados igualmente:

“os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil seja parte.”

            Grande parte dos tratados do qual o Brasil é signatário tem como tema central os direitos humanos, e, diante deste contexto, qualquer prática de racismo é inadmissível. Apesar destes mesmos tratados também tratarem da liberdade de expressão como um direito inerente ao homem, com base na ponderação de princípios e proporcionalidade dos mesmos, os ministros ressaltam que a liberdade de expressão não deve levar à intolerância, pois assim acabaria por ferir outros princípios, como o da igualdade, extravasando os limites desta perante a proteção aos demais.

Com base nesta função estatal vem ao Supremo Tribunal Federal o pedido de habeas corpus, para avaliação e julgamento de quais categorias de discriminação abrangeriam a designada prática de racismo. Conforme o artigo 5º, XLII da Constituição Federal: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. É requerida tal distinção, pois somente a prática de discriminação racial caracteriza crime inafiançável e imprescritível.

Conforme já relatado, os Ministros, em sua grande maioria, acreditam que se deve compreender abrangidas pelo conceito de racismo tanto a discriminação contra cor da pele, como aquela praticada contra grupos devido à sua história e cultura diferenciadas. Assim como Canotilho, acreditam que a norma deve ser interpretada, adotando “aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais”. Desta forma, inferem que qualquer desmembramento do conceito racismo, assim o caracterizaria.

Enquadra a norma constitucional apenas o racismo como crime imprescritível em decorrência da carga histórica que o Brasil possui, perante a miscigenação e diversidade cultural presente, devido aos povos distintos que adentraram, trazendo preconceitos contra a diversidade, inclusive étnica. Devido ao tempo que tal discriminação é guardada na lembrança do povo, já sofrido com tanto preconceito, pois a dignidade feriada torna-se, apesar de até designada a uma pessoa, de toda uma raça, grupo ou etnia.

Perante tais argumentos, os Ministros do Supremo Tribunal Federal julgaram improcedente o pedido de habeas corpus. O antisemitismo caracteriza-se como crime de racismo, devendo, desta forma, o indivíduo infrator ser punido, pois descumpre de maneira grave a norma constitucional. Tal julgamento tem grande peso no que tange a reafirmação dos valores presentes na Constituição, haja vista que simboliza, de certa forma, a concretização dos direitos fundamentais no Brasil, sobretudo a igualdade e a dignidade da pessoa humana.

Toda e qualquer discriminação qualificada poderá ser reconhecida como crime de racismo e, consequentemente, ser imprescritível?

            O crime de racismo, epicentro do julgamento em questão, deve ser direcionado, necessariamente, a uma coletividade, ou seja, se direcionado a uma única pessoa, visando ofender a honra subjetiva do indivíduo, não há o que se falar em crime de racismo. Em suma, um dos elementos básicos para qualificação do crime de racismo é o animus de ofender todo um grupo, e não simplesmente a honra subjetiva individual, como ocorre no caso do crime de injúria qualificada (art. 140, §3º do Código Penal).

            Frisa-se a existências de importantes diferenças práticas entre o racismo e a injúria qualificada, isto porque enquanto o crime de racismo é inafiançável e imprescritível, o crime de injúria qualificada é prescritível e afiançável.
            Como consequência umbilical do exposto acima temos que nem toda e qualquer discriminação poderá ser enquadrada como crime de racismo. No entanto, convém ressaltar que no caso do HC 82.424-2/RS há de fato o enquadramento jurídico do crime de racismo, tendo em vista que a conduta praticada por Siegfried Ellwanger se direcionou a comunidade judaica como um todo, não somente um indivíduo.

            Além disso, como já afirmado anteriormente, o julgamento proferido possui alto valor simbólico, pois este confere legitimação ético-jurídica à ordem normativa sobre a qual se constrói o próprio Estado Democrático de Direito. Como afirma o Ministro Celso de Mello, “também este Supremo Tribunal não pode ser indiferente, no exame dessa controvérsia, à grave advertência que a História nos impõe, pois, também aqui e agora, é preciso ‘lembrar e recordar- jamais esquecer’” (como no Dia da Recordação dos Mártires e Heróis do Holocausto em Israel).

Bibliografia

HC 82.424-2/RS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, v. 1: Parte Geral. 13ª Ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

CALIXTO, Clarice Costa. Breves reflexões sobre a imprescritibilidade dos crimes de racismo.

FERREIRA FILHO, Manoel. Comentários à Constituição brasileira de 1988.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 28ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012.

Sobre a autora
Natália Balbino da Silva

Graduanda em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Informações sobre o texto

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