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Do estado-juiz ao juiz-estado: neoconstitucionalismo, ativismo judicial e segurança jurídica no direito brasileiro

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Agenda 29/10/2015 às 14:23

Partindo das mudanças promovidas pelo novo paradigma constitucional (neoconstitucionalismo), parte-se à análise do ativismo judicial como causa de insegurança jurídica na realidade brasileira.

 INTRODUÇÃO

A atuação proeminente do Poder Judiciário é um fato notável não só na realidade brasileira. Porém, compreender a base sobre a qual se estabelece tal atuação ou mesmo se esta possui alguma base jurídica implica realizar um recuo histórico para as mudanças operadas pelo neoconstitucionalismo. Para além do interesse jurídico, aferir – com base na Constituição Federal – as reais atribuições de cada Poder que compõe o Estado é tarefa relevante para qualquer cidadão, eis que vivemos em uma democracia.

O presente trabalho tem como objetivo analisar o fenômeno denominado “ativismo judicial” à luz do princípio da segurança jurídica, notadamente no ordenamento brasileiro.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, um novo modelo constitucional passa a ser implementado. Embora o constitucionalismo moderno tenha representado um avanço inolvidável no sentido de inserir a Constituição na organização do aparato estatal, pecou por não dispensar-lhe força normativa alguma[1]. Limitar o poder estatal não basta e reconhecer direitos fundamentais não implica torná-los concretos. Essa foi a lição deixada ao constitucionalismo pela guerra. Tem origem assim o neoconstitucionalismo, que, para Vanice do Valle[2], também traduz realidade consistente num modelo de limitação de poder, mas que ocorre porque suas ideias fundantes assim exigem ou como mecanismo de sua própria afirmação.

O neoconstitucionalismo surge na Alemanha do pós-guerra, marcada pelas arbitrariedades do conflito. Promove o deslocamento da Constituição para o centro do ordenamento jurídico e consolida a supremacia constitucional, ou seja, a prevalência das disposições constitucionais sobre as demais leis. Passa a Constituição a ter caráter normativo e superior. Destarte, os direitos fundamentais outrora negligenciados agora impõem absoluto respeito e condicionam a atividade dos Poderes do Estado, podendo ser invocados diante das mais diversas situações. Inova também o neoconstitucionalismo em atribuir o resguardo dos direitos fundamentais ao Poder Judiciário e instaurar uma nova forma de interpretação jurídica – a interpretação constitucional – que decorre da normatividade da Constituição e está calcada na incorporação de princípios ao seu texto. Tais princípios, segundo Barroso, diferem das regras propriamente ditas por não serem enunciados descritivos de condutas específicas, mas sim normas que consagram valores ou indicam fins públicos[3]. Daí advém o método resolutivo da ponderação, consubstanciado no sopesamento de princípios constitucionais conflitantes.

Ocorre que, com o advento e a ampla aceitação da teoria neoconstitucional, que inaugura um novo modelo de Estado – o Estado Democrático de Direito – as pessoas passam a invocar perante o Poder Judiciário direitos e garantias fundamentais, agora fortemente assegurados pelas Constituições e, não raro, buscam a tutela jurisdicional a fim de terem satisfeitas pretensões sobre as quais o Judiciário não se debruçaria, seja porque são objetos de políticas públicas, seja porque sua discussão deveria realizar-se no âmbito do processo político majoritário, isto é, através de seus representantes políticos eleitos. Instaura-se assim o que se denomina “judicialização das relações sociais e políticas”. Especialmente no Brasil, onde a função jurisdicional é indeclinável, os juízes têm o dever de oferecer aos cidadãos alguma resposta diante de tal situação, ainda que isso implique na invasão da esfera de atuação dos demais Poderes. Em outros países, a judicialização também é um tema amplamente discutido, sobretudo por estar ligada a um outro fenômeno: o ativismo judicial, estudado no segundo capítulo deste trabalho.

Como se sabe, a jurisdição é função precípua do Estado, que avoca para si a responsabilidade de resolver conflitos interpessoais e “dizer o direito”, assegurando assim a ordem social. Enquanto investido de tal função, o Estado faz-se representar pelo Poder Judiciário que, assim como os demais Poderes que o compõem, possui seu campo de atuação delimitado. Assim sendo, o ativismo judicial representa um excesso ou desvio na atuação do juiz que, para alguns, representa um avanço e, para outros, retrocesso.

Estabelecer um caracterização universal de ativismo judicial é uma tarefa impossível, ao passo que sua forma de manifestar-se varia de um lugar para outro e compreende condutas diversas. Porém, analisá-lo – da origem aos efeitos – é fundamental para refletir sobre a estrutura institucional do Estado e os fins aos quais se destina, bem como para melhor posicionar-nos acerca dos embaraços atualmente enfrentados.

Dentre os princípios constitucionais consagrados pelo neoconstitucionalismo, figura a segurança jurídica que, segundo Marinoni, é indispensável para a conformação de um Estado que pretenda ser “Estado de Direito”.[4] Com efeito, a segurança é um valor fundante da noção de Estado, posto que é também – inegavelmente – para proporcionar segurança aos cidadãos que o Estado existe. Contudo, seriam o ativismo judicial e a segurança jurídica realidades harmoniosamente coexistentes? É o que pretendemos responder.

A abordagem teórica aqui realizada tem vistas a situar o leitor no momento histórico em que se desenvolve o neoconstitucionalismo, fazê-lo compreender as transformações por tal paradigma operadas e como estas possibilitaram o ativismo judicial, individualizar o fenômeno do ativismo e confrontá-lo com a segurança jurídica na realidade brasileira, donde inferir-se-á se o ativismo conforma-se com a conjuntura democrática vivenciada. Para tanto, realizou-se pesquisa qualitativa, desenvolvida por meio de levantamento bibliográfico e documental – no que tange às decisões judiciais analisadas.

No primeiro capítulo deste trabalho, traçar-se-á um panorama geral do novo paradigma constitucional – o neoconstitucionalismo – a partir da teoria de Luís Roberto Barroso, que divide o movimento em três marcos (histórico, teórico e filosófico) para só então começar a estudá-lo no Brasil.

De igual maneira, optou-se, no segundo capítulo, por tratar o ativismo judicial em larga escala num primeiro momento, abrangendo uma de suas principais classificações e seu processo de desenvolvimento em outras culturas jurídicas, notadamente no direito norte-americano e germânico. Em seguida, o fenômeno será analisado na realidade brasileira, onde se manifesta em sua maioria por meio do método resolutivo da ponderação, das cláusulas gerais e do livre convencimento do magistrado.

O terceiro capítulo se inicia com uma análise da segurança jurídica e, na parte final, realizar-se-á um contraponto entre ativismo e segurança por meio de decisões judiciais proferidas em primeiro e segundo grau de jurisdição, a fim de avaliar se estas atendem (ou não) a tal princípio.

1 O NOVO PARADIGMA CONSTITUCIONAL

1.1 ASPECTOS INTRODUTÓRIOS

Em que pese a inexistência de uma teoria una acerca do conceito de neoconstitucionalismo, razão pela qual muitos estudiosos preferem empregá-lo no plural – neoconstitucionalismo(s)[5], é possível estabelecer características elementares que o distinguem dos demais movimentos jurídicos mundialmente vivenciados.

Para Luís Roberto Barroso[6], o neoconstitucionalismo divide-se fundamentalmente em três marcos: marco histórico, marco filosófico e marco teórico. O marco histórico relaciona-se com o momento no qual as ideias neoconstitucionalistas se solidificam no seio social, de forma a alterar a realidade jurídica outrora experimentada e, por isso, é uma variável nos países que o adotaram. O marco filosófico, em contrapartida, é comum e denominado pós-positivismo; propõe a superação de duas correntes de pensamento – jusnaturalismo e positivismo – combinando elementos de ambas, a fim de tornar-se mais eclético e abrangente. O marco teórico diz respeito à aplicação do direito constitucional e é representado por três eventos: conquista da força normativa da Constituição, expansão da jurisdição constitucional e desenvolvimento da nova interpretação constitucional. Por entender didaticamente coerente e a fim de melhor situar o leitor no arcabouço teórico-histórico neoconstitucional, a seguir tecer-se-á breves comentários sobre a divisão proposta pelo mencionado autor.

Historicamente, o neoconstitucionalismo sobrevém regimes políticos autoritários que, sob a égide da legalidade[7], cometeram graves violações a direitos[8]; tempos em que o texto constitucional era um documento meramente político, capaz de orientar a atividade legiferante, mas não de contê-la. A Constituição sequer poderia ser invocada perante o Poder Judiciário como meio de defesa.

O marco histórico do neoconstitucionalismo na Europa é o período que sucede a Segunda Guerra Mundial, cujas principais referências foram a Lei Fundamental de Bonn (Constituição[9] alemã de 1949) e a criação do Tribunal Constitucional Federal Alemão, em 1951. O pós-guerra na Alemanha foi o berço da denominada jurisprudência dos valores[10], que instituiu a possibilidade de tomada de decisões judiciais fundadas em critérios distintos dos legalmente estabelecidos. Para Barroso[11], a produção teórica e jurisprudencial desse período foi também responsável pela ascensão do direito constitucional nos países de tradição romano-germânica, como o Brasil.

Porém, os contornos neoconstitucionalistas passam a ser observados no direito brasileiro apenas em 1988, com a elaboração e promulgação da Constituição Federal vigente. A redemocratização do país, que enfrentou longos anos de um regime ditatorial é, portanto, o marco histórico do neoconstitucionalismo no Brasil.

Para compreender o pós-positivismo, marco filosófico do neoconstitucionalismo, há que se partir de duas correntes de pensamentos distintas que exerceram sobre ele suas influências: jusnaturalismo e positivismo. O jusnaturalismo, responsável por impulsionar as revoluções liberais na Idade Moderna, pautava-se na existência dos “direitos naturais”, universalmente reconhecidos aos homens e independentes de positivação. Esses direitos deveriam ser respeitados pelo Estado, pois justificavam inclusive a sua existência, em razão do contrato social[12]. O positivismo, por sua vez, ganha espaço no cenário mundial no final do século XIX, quando supera o jusnaturalismo e todas as discussões filosóficas deste ao propor a aplicação, no Direito, de leis pautadas em juízos de fato, ou seja, na observação da realidade. Para a corrente positivista, direito é tudo aquilo posto em norma formalmente válida ou, dito de outra forma, direito é apenas aquilo posto em norma formalmente válida[13]. Não há, pois, que se falar em direito natural ou pré-constituído, ao passo que não há direito que anteceda a norma e esta se pauta em condutas hipotéticas ou abstratas, que pertencem ao mundo do dever ser[14].

Conforme ressaltado anteriormente, por ocasião da estrita legalidade apregoada pelo positivismo jurídico, perpetraram-se barbáries em nome da lei. De outra sorte, o jusnaturalismo já havia dado causa à própria superação, restando fadado à ineficácia. O processo de reconstrução ou redemocratização dos Estados clamava, então, por um “caminho do meio”; uma alternativa às teorias propostas, capaz de promover, por meio da lei, a efetivação de valores outrora proclamados pelo direito natural[15]. Assim surge o pós-positivismo que, como afirma Barroso, busca ir além da legalidade estrita, porém sem superar o direito posto e, embora procure empreender uma leitura moral do Direito, não se vale de categorias metafísicas para realizá-la[16].

O marco teórico do neoconstitucionalismo está pautado em três grandes transformações ou rupturas paradigmáticas: força normativa da Constituição, expansão da jurisdição constitucional e nova interpretação constitucional.

O processo de redemocratização do pós-guerra formulou na Europa um novo conceito de Constituição, pela atribuição de normatividade à Carta Magna, antes tida como documento fundante do Estado, de valor jurídico ínfimo[17]. Deixa, portanto, a Constituição de ser um documento meramente político para nortear as relações jurídicas que ocorrem sob sua égide, afirmando direitos dos cidadãos, deveres do Estado e atribuições de cada poder que o compõe.

A expansão da jurisdição constitucional deve-se ao fato da implementação de um novo modelo constitucional. Além da força normativa, a Constituição adquiriu status supremo sobre as demais normas do ordenamento jurídico. Os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados não são passíveis de reforma ou abolição pelo Poder Legislativo, tampouco têm sua eficácia condicionada à atividade legiferante superveniente; incumbe-se ao Poder Judiciário a proteção de tais direitos, cabendo-lhe inclusive, por meio do controle de constitucionalidade, declarar inválidas em face da Constituição leis que disponham de forma contrária aos seus preceitos. O controle de constitucionalidade varia conforme o modelo jurídico adotado por cada país, porém é uma característica da teoria neoconstitucional mundialmente consolidada. Alia-se a esse entendimento o fenômeno denominado “constitucionalização do ordenamento jurídico”, basicamente identificado por dois movimentos: a vinda de princípios de direito infraconstitucional para a Constituição e, sobretudo, a ida de princípios constitucionais para o direito infraconstitucional com vistas a modificar o sentido e alcance das normas[18].

A nova interpretação constitucional, por sua vez, pode ser considerada uma das mais importantes características do neoconstitucionalismo. Com a atribuição de caráter normativo à Constituição, cujas normas estão arraigadas em valores que, pela experiência histórica vivenciada, impõem respeito absoluto em um regime democrático, surge a necessidade de atribuir ao texto constitucional uma modalidade de interpretação diversa. Sobre o tema, Barroso esclarece que a interpretação jurídica tradicional não foi derrotada pela nova interpretação constitucional, posto que a maioria dos conflitos examinados pelo Poder Judiciário continua a ser resolvida da maneira tradicional. Porém, por carecerem de soluções ajustadas à realização da “vontade da Constituição”, as categorias convencionais de interpretação jurídica deixaram de ser utilizadas no campo constitucional[19]. Ao traçar um paralelo entre a interpretação tradicional e a interpretação constitucional, o autor identifica duas premissas básicas que as diferenciam, quais sejam: papel da norma e papel do juiz.

Com relação ao papel da norma, Barroso afirma que, tradicionalmente, cabe à norma oferecer, em seu relato abstrato, a solução para o problema jurídico; já no âmbito da interpretação constitucional, a solução depende dos fatos relevantes, analisados topicamente, de forma a oferecer uma resposta constitucionalmente adequada[20]. Quanto ao papel do juiz, na interpretação tradicional, cabe-lhe identificar a norma aplicável, revelando a solução nela contida; no método interpretativo constitucional, o juiz vai além de seu papel técnico, sendo “coparticipante” do processo de criação do Direito à medida que completa o trabalho do legislador no sentido de valorar as denominadas cláusulas abertas e realizar a escolha entre as soluções possíveis[21]. Em síntese, diz-se que as regras gerais de um ordenamento jurídico são aplicadas mediante subsunção; as constitucionais, por sua vez, estão sujeitas à ponderação.

Como dito, a ponderação é uma técnica herdada da jurisprudência dos valores, por meio da qual, diante de um conflito de normas, o intérprete fará concessões recíprocas, procurando preservar ao máximo os interesses conflitantes ou procederá à escolha do direito prevalecente, tendo em vista obrigatoriamente a vontade constitucional.[22]

Feitas as devidas considerações históricas, filosóficas e teóricas acerca do neoconstitucionalismo, cumpre dizer que a ideia de superação do positivismo não é amplamente aceita pela doutrina na atualidade, sendo esta uma questão de constante debate. Luís Roberto Barroso afirma ter, o pós-positivismo, superado o legalismo através do reconhecimento de valores compartilhados por toda a comunidade – os princípios – que passam a integrar o sistema jurídico, ainda que não positivados em um texto normativo específico e condicionam a atividade do intérprete, cuja decisão deve ter por fundamento, além da norma e dos fatos, tais princípios[23]. Em sentido diverso, Luigi Ferrajoli entende que o constitucionalismo rígido (atual) não é uma superação, mas sim um reforço do positivismo jurídico, por ele alargado em razão de suas próprias escolhas – os direitos fundamentais estipulados nas normas constitucionais – que devem orientar a produção do direito positivo. Para o autor, o neoconstitucionalismo (expressão não defendida em sua obra) representa um complemento tanto do positivismo quanto do Estado de Direito: do positivismo porque positiva não apenas o “ser”, mas também o “dever ser” do direito; e do Estado de Direito porque comporta a submissão, inclusive da atividade legislativa, ao direito e ao controle de constitucionalidade[24]. A esse respeito, coerentemente pontua Albert Calsamiglia[25]:

Pienso que el postpositivismo es herdero del positivismo y desplaza su centro de atención hacia problemas que sugieren uma retificación o matización de algunas de sus teses más importantes: la indeterminación del derecho y la conexion entre derecho y la moral están en la agenda prioritária de la reflexión actual.

Todavia, para além de tal discussão ou da incerteza do rompimento completo com o positivismo, parece-nos irrefutável o surgimento de um novo paradigma constitucional[26], no qual a lei passa a ser interpretada à luz da Constituição que, por sua vez, condiciona aos princípios em seu texto insertos a aplicação das demais normas, sendo estes a base do neoconstitucionalismo.

1.2 NEOCONSTITUCIONALISMO NO BRASIL

A teoria neoconstitucionalista somente se solidifica no Brasil em 1988, com a elaboração e promulgação da Constituição Federal vigente. Por tal razão, é considerada o “triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil”.[27] É certo que o Brasil, desde a proclamação da República, já contava com o controle de constitucionalidade[28], contudo as Constituições que se seguiam demonstravam fracasso semelhante ao das Cartas Magnas européias, pois careciam de normatividade.[29]

Nos países da América Latina, o neoconstitucionalismo implementa um sistema de garantias extenso e complexo, como ocorre no Brasil com a Constituição Federal de 1988, composta por duzentos e cinquenta artigos, dos quais muitos asseguram aos jurisdicionados direitos fundamentais (garantias primárias) ou meios de coibir violações a tais direitos (garantias secundárias), razão que leva alguns doutrinadores a tratá-lo como “constitucionalismo garantista”, corrente à qual o presente trabalho não se filia por entender que o neoconstitucionalismo representa, em verdade, a superação de jusnaturalismo e positivismo, e não o seu “completamento”.[30] Nessa seara, observa-se a forte presença dos princípios, cuja noção foi mundialmente difundida pela obra de Ronald Dworkin[31], que assim os define:

Denomino “princípio” um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade.

Para Dworkin, as regras jurídicas distinguem-se dos princípios jurídicos por uma questão de natureza lógica.[32] Enquanto as primeiras são aplicadas à maneira do “tudo-ou-nada”, oferecendo uma solução direta para o caso sobre o qual incidem, os últimos não apresentam conseqüências jurídicas automáticas, conduzindo o intérprete necessariamente a uma decisão particular.

Essa “decisão particular” tem merecido especial atenção da doutrina brasileira nos últimos anos. Sarmento assevera que as teorias dos princípios, a exemplo de autores como Ronald Dworkin e Robert Alexy, somente passaram a ser divulgadas no Brasil a partir de 1990[33], fomentando o debate acerca de importantes temas, dentre os quais se destaca a ponderação de interesses e a proporcionalidade. Em sua obra, Dworkin já tratava a necessidade de uma decisão particular diante dos princípios. Alexy, através da teoria da argumentação jurídica, propôs um meio de racionalizar tal decisão. Para o jurista alemão, um sistema jurídico de modelo completo, deve conter, além de regras e princípios, um “terceiro nível”, que seria o procedimento responsável por assegurar-lhe a racionalidade, denominado “ponderação” e fundado na proporcionalidade.[34]

O problema enfrentado atualmente reside na incorporação impensada de tais teorias no direito brasileiro. Para Streck[35], quando a maioria da doutrina distingue regras e princípios pelo critério estrutural (com base na teoria de Alexy), considerando as regras mandados de definição e os princípios mandados de otimização, estes últimos acabam por ingressar no sistema tão-somente para “resolver insuficiências ônticas”, como se tivessem que ser utilizados apenas nos “casos difíceis”.[36] Assim, desconsidera-se o fato de que os princípios só se aplicam através de regras (reconhecido pelo próprio Alexy[37]) e que toda regra, para ser democrática, depende de um princípio instituidor. Regras e princípios, pois, não se excluem; integram-se.

Também é controvertida a idéia de que a decisão fundamentada em um princípio prescinde de uma justificativa sólida. A ponderação proposta por Alexy deve atender aos critérios da necessidade, adequação e proporcionalidade. Aqui cabe destacar que a “proporcionalidade” não se trata de um princípio, mas de algo inerente à atividade jurisdicional. A esse respeito, ensina Streck que a proporcionalidade deve estar presente em toda aplicação do direito, não como princípio, mas como dever. Assim sendo, não há espaço para aplicá-la (como pretendem os juristas brasileiros) em maior ou menor medida, pois necessariamente está relacionada à igualdade na proteção de direitos, da qual não se pode dispor. Em suas palavras, “desproporcionalidades ocorrem por violação da isonomia ou da igualdade”.[38]

A atual Constituição brasileira amplia também o acesso ao Poder Judiciário[39] e o rol de legitimados a propor as ações de inconstitucionalidade[40], além de criar novos mecanismos de controle concentrado, a exemplo da ação direta de constitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito fundamental.

Especialmente no Brasil[41], a rigidez e amplitude constitucional, aliada ao irrestrito acesso à justiça, ocasionaram um fenômeno denominado “judicialização das relações sociais e políticas” que, segundo Barroso[42], “significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário”. A título de exemplo, convém citar a decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da interrupção da gestação de fetos anencefálicos, proferida na ADPF n° 54/DF.[43]

É sabido que nos regimes presidencialistas de governo cada Poder possui funções típicas e atípicas previamente estabelecidas, como no caso brasileiro. Quando a Constituição Federal de 1988 dispõe ser a saúde um direito de todos e dever do Estado, cabe aos Poderes Executivo e Legislativo elaborar políticas públicas no sentido de tornar efetivo tal direito. Entretanto, é cada vez mais comum demandar judicialmente o fornecimento de medicamentos ou tratamentos médicos. Nisso consiste a judicialização: as respostas do Poder Judiciário a questões que fogem de sua esfera de atuação.

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Alguns autores empenham-se em justificar a judicialização por meio da “descrença” da população em relação aos atores políticos a quem, em tese, incumbe a tomada de algumas das decisões levadas a cabo pelo Poder Judiciário.[44] Contudo, embora na prática tal argumento se mostre palpável, ele está em total desacordo com a noção de democracia e de autonomia do direito, conforme ressalta Streck ao afirmar que questões de cunho moral e político devem ser debatidas no meio político, cabendo ao direito apenas desconsiderá-las quando forem contrárias ao sistema de garantias constitucional.[45] Em nossa visão, não se pretende com isso dizer que os valores morais introduzidos na cultura jurídica pelo neoconstitucionalismo devam ser pelos juízes negligenciados, bem como as questões políticas relevantes; ocorre que seu âmbito de discussão é outro e, assim sendo, a intervenção judicial acaba por enfraquecer a democracia, ao passo que toma para si atribuições dos demais Poderes.

Na contramão do combate à judicialização situa-se, além da já mencionada inafastabilidade da jurisdição, a vedação ao non liquet propugnada no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que indiretamente afirma que “o juiz não pode declinar da prestação jurisdicional”[46] e deve recorrer à analogia, aos costumes ou princípios gerais do direito para proferir decisões quando a lei for omissa.

Por fim, dir-se-á que a judicialização afirma no mundo prático a expansão da jurisdição constitucional outrora mencionada e, sobretudo, a ascensão do Poder Judiciário. O grande desafio da pós-modernidade é estabelecer limites à atuação dos juízes – notadamente no caso brasileiro, onde toda matéria jurídica é necessariamente constitucional[47] e a guarda da Constituição a eles incumbe –, pois, conforme veremos adiante, o fenômeno da judicialização guarda estreita relação com o ativismo judicial.

 Tão controvertida quanto a delimitação do conceito de neoconstitucionalismo é a reflexão acerca de seus efeitos na realidade brasileira. Alguns o vêem com entusiasmo[48], outros com descrédito.[49] O cerne da questão é, porém, alinhar os avanços trazidos pela teoria neoconstitucional ao comprometimento com os pressupostos fundamentais de qualquer Estado Democrático[50], de forma que aqueles a este não se sobreponham e vice-versa.

2 ATIVISMO JUDICIAL

2.1 ATIVISMO JUDICIAL EM LINHAS GERAIS: AS EXPERIÊNCIAS NORTE-AMERICANA E GERMÂNICA

A expressão “ativismo judicial” foi empregada pela primeira vez nos Estados Unidos, ano de 1947, em um artigo de autoria de Arthur Schlesinger que classificava os membros da Suprema Corte, à época, em “ativistas” ou “campeões da auto-contenção”. Para o autor, os juízes ativistas estavam “voltados para a solução de casos particulares de acordo com suas próprias concepções sociais”, enquanto os auto-contidos importavam-se com a “preservação do Judiciário na sua posição relevante, mas limitada dentro do sistema americano”.[51] Sobre a classificação proposta por Schlesinger, Leal[52] afirma tratar-se de “uma divisão muito singela”, que implica no reconhecimento de um grupo substancialista (praticantes do ativismo) e outro procedimentalista (praticantes do self restraint), embora tal dicotomia ainda não fosse utilizada.

Também com relação ao ativismo judicial, voltamos à questão da impossibilidade de delimitação de um conceito. O ativismo se manifesta de diferentes formas em cada cultura jurídica, porém está sempre ligado à idéia de “disfunção no exercício da atividade jurisdicional”, conforme assevera Trindade.[53]

Para Barroso, ativismo judicial é “uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo seu sentido e alcance”[54], no que difere da judicialização que não seria propriamente uma opção do juiz, mas um fato decorrente do modelo institucional adotado, no contexto brasileiro. Por isso, se diz que a judicialização é um fenômeno político e o ativismo é um problema interpretativo.[55] Diante disso, cumpre dizer que a judicialização não implica necessariamente no ativismo judicial, mas certamente poderá ocasioná-lo.

Contudo, pontua Trindade que, ao contrário da leitura acima sugerida por Barroso, que considera o ativismo uma expansão da atividade jurisdicional, desprezando a potencialidade de, por meio dele, incorrer-se na criação judicial do direito, “sua existência torna-se complexa e perigosa, especialmente às jovens democracias constitucionais”, ao passo que representa a recusa dos tribunais aos limites jurisdicionais estabelecidos para o exercício do poder que a Constituição os atribui.[56]

Dentre as diversas tentativas de sistematizar hipóteses de ativismo judicial, merece destaque a ampla concepção de Willian Marshall, empregada por Trindade[57], que enumera sete tipos ou categorias de ativismo, quais sejam:

1) ativismo contramajoritário, quando os tribunais relutantes discordam de decisões tomadas por órgãos democraticamente eleitos;

2) ativismo não originalista: quando os tribunais negam o originalismo na interpretação judicial, desconsiderando as concepções mais estritas do texto legal ou, então, a intenção dos autores da Constituição;

3) ativismo de precedentes: quando os tribunais rejeitam a aplicação de precedentes anteriormente estabelecidos;

4) ativismo jurisdicional: quando os tribunais não obedecem os limites formais estabelecidos para sua atuação, violando as competências a eles conferidas;

5) ativismo criativo: quando os tribunais criam, materialmente, novos direitos e teorias através da doutrina constitucional;

6) ativismo remediador: quando os tribunais usam seu poder para impor obrigações positivas aos outros poderes ou para controlar o cumprimento das medidas impostas;

7) ativismo partisan: quando os tribunais decidem com a finalidade de atingir objetivos nitidamente partidários ou de determinado segmento social.

Ao tratar da caracterização do ativismo judicial, é necessário esclarecer a notável diferença havida entre os sistemas jurídicos norte-americano (common law) e romano-germânico (civil law). No primeiro sistema, os precedentes judiciais são fonte principal do direito[58], enquanto o segundo não lhes dispensa esse caráter.

Assim sendo, em que pese a expressão “ativismo judicial” ter surgido nos Estados Unidos da América, a criação judicial do direito é um fenômeno legitimado em tal país pela ordem constitucional vigente.[59] O ativismo lá está, então, mais ligado a questões (ou decisões) políticas na atuação do Poder Judiciário. A esse respeito, Dworkin[60] adverte que é errôneo pensar que, por possuírem maior liberdade criativa, os juízes estão aptos a legislar.

A própria discussão acerca do papel proeminente do Poder Judiciário no direito norte-americano antecede aos demais países, tendo ensejado inclusive a criação de uma doutrina denominada “departamentalismo”, difundida por James Bradley Thayer, em 1893. Em síntese, tal doutrina prega que o Judiciário, embora autorizado a interpretar o texto constitucional, não pode fazê-lo com exclusividade, em detrimento do exercício dos demais Poderes, igualmente responsáveis por buscar o sentido da Constituição. Logo, os Poderes Legislativo e Executivo não estariam subordinados às interpretações constitucionais realizadas pelo Poder Judiciário – notadamente a Corte Suprema –, podendo a elas se opor.[61] Em que pese o embaraço prático vislumbrado na possível aplicação do departamentalismo, sua existência denota uma preocupação antiga com a “supremacia” do Poder Judiciário na tradição norte-americana.[62]

A par do departamentalismo, anos mais tarde surge a tese do originalismo – defendida sobretudo por Robert Bork –, para a qual, segundo Barroso, “o papel do intérprete da Constituição é buscar a intenção original dos elaboradores da Carta, abstendo-se de impor suas próprias crenças ou preferências”.[63] Ocorre que, do período de 1953 a 1986, quando a Suprema Corte foi presidida por Earl Warren e Warren Burger, vivenciou-se um período de intensa afirmação de novos direitos, a exemplo do caso “Roe vs Wade”[64], cuja decisão declarou inconstitucional as leis que proibiam o aborto até o segundo trimestre da gestação, com base no direito da mulher à privacidade. Contudo, por ter sido promulgada em 1787, a Constituição norte-americana não prevê o direito à privacidade, tampouco que tal direito justifique o direito de abortar. Assim sendo, ressalta Guedes que “o que Bork e muitos dos originalistas diriam é que, simplesmente não estando previsto na Constituição (...), nada impediria o Legislador de criar leis criminalizando o aborto, como fizera o Texas na lei invalidade em Roe vs Wade”.[65] Em síntese, o originalismo apregoa algo amplamente discutido até os dias atuais no direito norte-americano: a dificuldade contra-majoritária evidenciada na atuação do Judiciário sobre os atos dos demais Poderes, eis que as decisões judiciais não se expressam através da maioria.

Nos sistemas jurídicos romano-germânicos, a exemplo da Alemanha e dos países latinos, os limites de atuação do Poder Judiciário só passam a ser discutidos após o advento do Estado Constitucional de Direito, que promoveu significativas mudanças na organização política e jurídica.[66]

Na Alemanha, conforme assevera Tassinari[67], o que marca a incorporação do constitucionalismo democrático é a criação do Tribunal Constitucional (Budesverfassunsgeritcht), que posteriormente institui a jurisprudência dos valores e os novos meios de decidir. Ocorre que a Lei Fundamental de Bonn, enquanto saída emergente para o caos jurídico e social vivenciado no pós-guerra – conforme ressaltado anteriormente –, não contou com a ampla participação popular em sua elaboração. Assim, achou-se por bem buscar critérios mais “amplos” para fundamentar as decisões judiciais. Para Streck, a referência a valores aparece como “mecanismo de ‘abertura’ de uma legalidade extremamente fechada que possibilitara, em alguma medida, o totalitarismo nazista”.[68] Entretanto, a aplicação da jurisprudência dos valores até os dias atuais é alvo de fortes críticas pela doutrina alemã, eis que especialmente através dela institui-se o ativismo judicial na Alemanha, apesar de sua criação pretender combater um mal similar: a discricionariedade positivista[69].

Como dito alhures, o positivismo jurídico tentou racionalizar a ciência do Direito através do apego legal, separando validade de legitimidade, direito de filosofia, dentre outras questões. Entretanto, por não conseguir resolver satisfatoriamente questões de “razão prática”[70], alheias ao artefato teórico positivista, passa a ser defendida a tese da interpretação judicial como um ato de vontade, “no qual o intérprete sempre possui um espaço que poderá preencher no momento da aplicação da norma”[71], a denominada “moldura da norma”. A respeito da insuficiência positivista, pontua Streck[72]:

A adaptação criada pelo próprio sistema para resolver esta questão foi colocar, ao lado do legislador racional, um juiz/intérprete racional. Desse modo, o primeiro criará, de forma absolutamente discricionária (...) o conteúdo da lei, ao passo que o juiz/intérprete racional terá uma delegação para, de forma limitada, preencher os vácuos deixados pela discricionariedade absoluta (política) do legislador. Cria-se, assim, uma espécie de “discricionariedade de segundo nível”.

O campo da discricionariedade jurídica era puramente subjetivista, tanto que o próprio Kelsen reconhece como “política dos juízes”[73] a atividade jurisdicional. Contudo, a discricionariedade apregoada não encontrava freios em um documento jurídico superior, que foi o que a jurisprudência dos valores se propôs a fazer ao admitir decisões pautadas em valores[74], numa tentativa de tornar menos subjetivo o arbítrio judicial. Porém, se antes as decisões não pautadas em regras ficavam a cargo da “melhor escolha” do juiz, após a jurisprudência dos valores elas estão sujeitas a um método tão abstrato quanto: os fins.

Dworkin, em sua obra, defendia a necessária distinção entre “argumentos de política” e “argumentos de princípios” para otimizar as decisões judiciais. Para o autor, os argumentos de política justificam uma decisão política por meio da proteção de objetivos da comunidade, enquanto os argumentos de princípios a justificam ao demonstrar que esta respeita ou assegura direitos de um indivíduo ou de um grupo.[75] Adiante, defende que “as decisões judiciais, nos casos civis, mesmo em casos difíceis (...), são e devem ser, de maneira característica, gerados por princípios, e não por políticas”.[76] Dessa forma, estabelece-se uma tese de fundamental importância, também explicitada por Dworkin: valores (ou programas) diferem de princípios porque estes últimos possuem caráter deontológico, ou seja, vinculam o intérprete enquanto parâmetro da decisão, ao passo que os primeiros possuem um viés teleológico, de meros objetivos a serem alcançados[77]. Tal linha de raciocínio também é defendida por Streck.[78]

Nesse sentido, afirma Habermas que “a validade jurídica do julgamento tem o caráter deontológico de um comando, e não o caráter teleológico de um bem desejável que nós podemos alcançar até um certo nível”.[79]  O autor é um dos principais críticos da jurisprudência dos valores por entender, assim como Dworkin e ao contrário do que prega Alexy, que os princípios não são mandados de otimização e, quando tomados nestes termos, produzem decisões irracionais na medida em que “os argumentos funcionais” (valores) “ganham precedência sobre os normativos”. No que tange à transcendência dos valores, indaga Habermas[80]:

Como explicar a possibilidade de reprodução da sociedade num solo tão frágil como é o das pretensões de validade transcendentes? O médium do direito apresenta-se como um candidato para tal explicação, especialmente na figura moderna do direito positivo.

Como peculiaridade do direito alemão, Trindade ressalta ainda que, apesar de adepto da civil law, a intensa atividade do Tribunal Constitucional Federal configura um apego irretratável à jurisprudência como fonte do direito, fato não observado em outros países que adotam a mesma tradição.[81]

Com efeito, ao analisar a tese da jurisprudência dos valores, o que se percebe é um claro retorno à discricionariedade judicial positivista, agora calcada sobre outros parâmetros. O juiz continua a fazer escolhas livremente e a preencher de conteúdo moral suas decisões, desta feita justificadas em valores “reconhecidos” pela ordem jurídica. Reconhecer, porém, não implica institucionalizar. Assim sendo, o intérprete vê-se autorizado a buscar fora do âmbito do direito democraticamente produzido fundamentos para sua decisão, sobrepujando a política legislativa em nome da sua política. Nisso, sobretudo, consiste o ativismo judicial alemão.[82]

2.2 ATIVISMO JUDICIAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Conforme discorrido, a teoria neoconstitucionalista e seus aportes passam a influenciar o direito brasileiro de forma tardia. Após anos de consolidação da jurisprudência dos valores na Alemanha e mais de um século de tradição constitucional norte-americana, apenas em 1988 o Estado brasileiro promulga uma Constituição dirigente e democrática, cujos reflexos – notadamente a expansão do Poder Judiciário e judicialização de relações e política – acabam por dar azo ao ativismo judicial.

No primeiro capítulo deste trabalho, foram destacadas as principais características e, por assim dizer, mudanças atinentes ao novo paradigma constitucional. Nesse sentido, Streck considera o neoconstitucionalismo como “proporcionador de uma verdadeira revolução copernicana no plano da teoria do direito e do Estado”.[83] Afirma ainda o autor que, com o advento do novo paradigma, as teorias jusfilosóficas passam a ter como objetivo primordial responder à questão da construção de um discurso capaz de atender às necessidades demandadas pelo texto constitucional sem cair em decisionismos e discricionariedades do intérprete.[84] Porém, notadamente no direito brasileiro, a realidade é outra.

Trindade opta por explicar o fenômeno do ativismo judicial no Brasil partindo de uma época onde vivenciava-se o seu oposto: o passivismo judicial. Para tanto, o autor elenca três estágios distintos da evolução constitucional brasileira[85], quais sejam: a) a fase da ressaca, iniciada em 1988, período que sucede a promulgação da Constituição Federal, quando ainda se buscava compreender o novo paradigma de Estado e as inovações em termos de controle de constitucionalidade e direitos fundamentais tinham como entrave a “inexperiência” do intérprete ao lidar com tais institutos; b) a fase da constitucionalização, iniciada no final da década de 90, quando de fato são “descobertos” os princípios constitucionais e estes passam a ser aplicados pelos tribunais, alterando significativamente a argumentação jurídica; c) a fase ativista, cujo marco inicial é a Emenda Constitucional n° 45 no ano 2004, que estimula a adoção de posturas proativas pelo Poder Judiciário em todas as instâncias, sendo tal fase vivenciada até os dias atuais. Pode-se incluir na “fase da ressaca” o fato de que a Constituição não costumava ser aplicada diretamente pelos juízes, servindo, nas palavras de Sarmento como um “repositório de promessas grandiloqüentes”.[86]

De fato, a Emenda Constitucional n° 45 amplia sobremaneira a competência do Poder Judiciário, ao passo que torna possível a edição de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal e implementa o efeito dúplice das ações de controle de constitucionalidade, dentre outras mudanças. Contudo, a ocorrência do ativismo judicial no Brasil deve-se também a fatores que em muito antecedem a promulgação dessa Emenda. 

Tassinari aponta a formação de um “ativismo judicial à brasileira”, em sua tese evidenciado por duas questões: o ativismo enquanto experiência não originária do contexto brasileiro e, por conseguinte, a crítica à apropriação do conceito de ativismo advindo do direito norte-americano, sem a preocupação de realizar as adaptações necessárias.[87] Nesse sentido, embora sob outra perspectiva, Streck alerta para uma equivocada recepção da jurisprudência dos valores no Brasil.[88] Seria, pois, o ativismo judicial no Brasil decorrente de uma mixagem teórica propiciada pelo neoconstitucionalismo. Em outras palavras – e apenas para citar alguns exemplos: temos uma Constituição analítica que delega ao legislador competência para tratar das mais diversas matérias, mas confere ao Judiciário a edição de súmulas vinculantes; temos uma Constituição que nos assegura que “todo poder emana do povo” e é exercido pelos seus representantes eleitos, mas um controle de constitucionalidade híbrido que, em última análise, permite a todas as instâncias do Poder Judiciário dar as respostas finais em sede de interpretação constitucional. Por tal razão, Ávila afirma que o neoconstitucionalismo “está menos para uma teoria jurídica ou um método, e mais para uma ideologia ou movimento, defendido com retórica, vagueza e subserviência à doutrina estrangeira”.[89]

Como legado norte-americano, observa-se no direito brasileiro a construção ideológica na qual o ativismo judicial é sinônimo de progresso, pois seria ele responsável pela concretização de direitos “esquecidos” pelos atores políticos. Nesse sentido, Barroso dirá que “a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais”.[90]

Por outro lado, também é clara a influência da jurisprudência dos valores no sentido de que os juízes estão autorizados a buscar os “valores” emanados da Constituição, que seria sua “ordem concreta” e a fundamentar suas decisões em tais valores, quando a lei for tomada como “insuficiente” para resolver determinado caso. A esse respeito, Streck alerta para uma hipótese recorrente de ativismo judicial, manifestada através do fenômeno por ele denominado “pan-principiologismo”.[91] Em suas palavras:

Está-se diante de um fenômeno que pode ser chamado de “pan-principiologismo”, caminho perigoso para um retorno à “completude” que caracterizou o velho positivismo novecentista, mas que adentrou ao século XX a partir de uma “adaptação darwiniana”: na “ausência” de “leis apropriadas” (a aferição desse nível de adequação é feita, evidentemente, pelo protagonismo judicial), o intérprete “deve” lançar mão dessa ampla principiologia, sendo que, na falta de um “princípio” aplicável, o próprio intérprete pode criá-lo.[92]

Em sua tese, Streck não está a defender a não utilização dos princípios em decisões judiciais, mas a combater a ideia de que os princípios funcionam como um “componente libertário da interpretação do direito (e da decisão judicial)”.[93] Para o autor, os princípios possibilitam em verdade um “fechamento interpretativo”, pois compelem os juízes a oferecer respostas corretas ou “adequadas à Constituição”, ao passo que institucionalizam por meio das regras os valores democráticos (pré-existentes) manifestados pela comunidade.[94]

Com efeito, Dworkin já apontava para a responsabilidade judicial de decidir corretamente.  Indo além, o autor assevera que, no momento em que o juiz opta por “criar uma nova lei” e aplicá-la retroativamente ao caso, ele está – ainda que indiretamente – punindo a parte sucumbente com base em um dever não violado, que sequer existia à época dos fatos.[95]

Também concordam Streck e Dworkin sobre o caráter deontológico dos princípios, no que discordam de Alexy que os considera “mandados de otimização”. O jurista brasileiro esclarece que a teoria da argumentação jurídica (proposta por Alexy) foi recebida de maneira superficial pela doutrina no Brasil[96], pois, embora Alexy a tenha elaborado com o objetivo de “racionalizar” a técnica da ponderação, aqui os “pressupostos formais” ou “racionalizadores” são praticamente desconsiderados.[97] Dito isso, cumpre destacar que no Brasil não são poucos os autores que vislumbram na ponderação uma espécie de fragilização[98] do direito positivo ou, numa leitura mais radical, seu processo de extinção.[99] E mesmo os que defendem a ponderação a consideram frágil.[100] Assim sendo, entendemos que não há como advogar a favor da ponderação no direito brasileiro, sobretudo porque ela representa um terreno fértil para a subjetividade do julgador.

Sobre a incorporação de teorias jurídicas ao direito nacional, Medina[101] afirma que o problema não está em recepcioná-las, mas em desconsiderar a cultura intrínseca à sua formação, bem como o contexto na qual se inserem, a fim de melhor adaptá-las – precauções que não foram observadas no Brasil.

Até então, muito se disse sobre ponderação, princípios constitucionais etc. Todavia, há que se reconhecer que o ativismo judicial opera nos mais diversos ramos do direito brasileiro. Se, no âmbito constitucional, sua presença é evidenciada pelo uso descriterioso da ponderação, na esfera cível temos as “cláusulas gerais”[102], que seriam as regras caracterizadas “pela abertura e possibilidades de criação conferida ao intérprete”, carentes de “complementação valorativa”[103] e, no processo penal, o “livre convencimento”, ainda presente no Projeto do Novo Código de Processo Penal, sobre o qual indaga Streck: “de que adianta afirmar um novo modo de ‘gestão de prova’ se o produto final (...) permanece a cargo de um ‘inquisidor de segundo grau’ que possui ‘livre convencimento’?”.[104] No decorrer do trabalho, veremos ainda ativismos que, não satisfeitos em ir além da lei, vão de encontro a ela.

Na atual conjuntura brasileira, a blindagem do direito ao ativismo judicial configura-se  uma tarefa paradoxal: simples porque, como observa Tassinari, a Constituição é composta por 250 artigos e mais de 60 emendas, numa riqueza de detalhes que dispensaria, por exemplo, a “ginástica” realizada pelos juízes norte-americanos para responder as contendas jurídicas[105], tendência que se segue no vasto (e “constitucionalizado”) ordenamento jurídico; complexa porque, na medida em que se amplia a jurisdição e se altera substancialmente o papel do juiz, o direito assume, nas palavras de Trindade, “um elevado grau de indeterminação”[106], reforçado no Brasil pela errônea concepção (e aplicação) dos princípios, bem como da recepção equivocada de elementos de outras culturas jurídicas. Ademais, se entendido como ato de vontade – corrente que aqui defendemos – o ativismo será sempre impassível de modulação.

3 SEGURANÇA JURÍDICA

3.1 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO

Conforme assevera Theodoro Júnior, os países ocidentais cujo modelo constitucional é inspirado no europeu têm como traço comum o primado pela segurança jurídica.[107] No Brasil, desde o preâmbulo da Constituição Federal, sua presença é notada como valor supremo da República. Em seguida, proclama o artigo 5°, caput, a segurança como direito fundamental.

Canotilho, ao propor uma conceituação ampla, sob o fito de “princípio geral da segurança jurídica”, afirma que este consiste no direito dos indivíduos de poder contar com a vinculação dos efeitos previstos e assinados em normas às decisões públicas e relações jurídicas que se estabelecem durante o período de vigência daquelas.[108]

Para Nader, “a justiça pressupõe o valor segurança”, ao passo que depende dele para produzir seus efeitos na sociedade.[109] Seguindo a proposta de Henkel, o autor divide os princípios gerais da segurança jurídica em três grupos: princípios relativos à organização do Estado, princípios do Direito estabelecido e princípios do Direito aplicado.[110] Por estar diretamente relacionada à decisão judicial, trabalharemos mais detalhadamente o terceiro grupo. Na ordem dos princípios do direito aplicado, estão presentes a prévia calculabilidade da sentença e a firmeza jurídica ou respeito à coisa julgada. O primeiro diz respeito ao conteúdo da decisão judicial que, conforme explicita o autor, na atual conjuntura jurídica e diante da clareza dos fatos, pode ser deduzido antecipadamente pelas partes, posto que a lei está ao alcance de todos. O segundo consubstancia-se na impossibilidade de reforma das decisões judiciais transitadas em julgado, assegurando às partes do processo a consolidação da situação jurídica ali disposta.[111] Marinoni também fundamenta sua teoria em tais parâmetros, por ele denominados “previsibilidade” e “estabilidade”, respectivamente.[112]

A necessidade de se conhecer a legislação e, por assim dizer, prever os resultados de determinadas condutas surge na medida em que os Códigos de tradição francesa começam a ser elaborados, ainda no Estado Legislativo.[113] Daí em diante, os juízes passam a ter o dever de interpretar uniformemente a lei, tornando assim suas decisões previsíveis.

Ocorre que, conforme visto, a insuficiência ôntica da legislação – aqui tida como a impossibilidade de regrar todas as situações – levou os intérpretes a incorrerem na tese da discricionariedade, na qual lhes competia preencher as lacunas do ordenamento. Por isso, atualmente, afirma Marinoni que a previsibilidade não deve ser restrita ou direcionada ao conhecimento das leis, mas sobretudo às decisões do Poder Judiciário, sustentando a tese de que a norma em abstrato não é capaz de assegurar por si só a segurança; para fazê-lo, ela necessita em grande parte da interpretação judicial, que irá concretizá-la.[114]

Com efeito, no Estado Democrático de Direito, a busca pela justiça se intensifica, ao passo que não mais se tolera a discricionariedade política que, nas palavras de Streck, “acabou por eclodir em um espúrio de Estado de Direito, que mostrou sua pior feição na radicalização dos Estados totalitários nazi-fascistas”[115], tampouco a discricionariedade judicial originariamente ligada à política de juízes formulada por Kelsen. Nesse sentido, o autor aponta que após a Constituição Federal de 1988 temos no Brasil um sistema eficaz à limitação da discricionariedade política, de forma que a vontade da maioria encontra freios no texto constitucional.[116] De outra sorte, não observamos efetivo controle à atuação do Poder Judiciário.

Em artigo recente, Maneira[117] afirma que os princípios constitucionais da legalidade, anterioridade e irretroatividade, que constituem o núcleo da segurança em matéria tributária, não deixam margem alguma para o ativismo judicial. Não obstante, o Poder Judiciário tem exercido o papel de verdadeiro legislador positivo, inclusive com a prerrogativa – conferida ao Supremo Tribunal Federal – de modular os efeitos temporais de suas decisões. Em suas palavras, “a partir do momento em que a lei oriunda do Poder Legislativo deixa de ser a única fonte de obrigação tributária, a segurança jurídica fica abalada”.

A invasão da esfera legislativa pelo Judiciário é, de fato, um dado preocupante e abala a segurança jurídica na medida em que o fundamento das decisões (eivado de subjetividade) passa a tomar o espaço das leis, numa afronta direta à previsibilidade. Porém, o grande equívoco cometido pelos juristas brasileiros está – antes disso – no que Streck denomina “filosofia da consciência”[118], paradigma epistemológico que sustenta a vinculação do produto final da sentença judicial à consciência do julgador – onde compreendem-se e influenciam-se moral, vontade e outros critérios subjetivos – amplamente aceito e difundido no Brasil.[119] Seguindo tal linha de pensamento, o autor indaga: “onde ficam a tradição, a coerência e a integridade do direito? Cada decisão parte (ou estabelece) um grau zero de sentido?”[120]

Se a resposta for positiva, resta justificado o fato de que um mesmo tribunal ofereça respostas diferentes a casos semelhantes ou que dois juízes de primeiro grau emitam pareceres contrários com (ou sem) base em uma única lei, afinal tudo é uma questão de opinião. Contudo, se a resposta é negativa – e assim deveria ser em um Estado democrático – devemos reconhecer uma grave distorção que, muito além do mal causado àqueles que integram a relação processual, nas palavras de Nader, “institucionaliza a incerteza do direito vigente”[121], o que ficará evidenciado na análise das decisões a seguir.

Ao relacionar previsibilidade e estabilidade, Marinoni faz a seguinte observação: a estabilidade depende da previsibilidade, pois “não há como ter estabilidade quando os juízes e tribunais não se vêem como peças de um sistema, mas se enxergam como entes dotados de autonomia para decidirem como quiserem”.[122] De certo, a autonomia do direito se sobressai nesse sentido (em detrimento da “autonomia” do intérprete) e, enquanto ciência autônoma, não está subjugada ao que pensam a seu respeito.

Do exposto, pode-se dizer que mais que um princípio, a segurança jurídica é uma imposição ao Estado Democrático, posto que lhe confere equilíbrio entre os Poderes, respeito ao ordenamento jurídico e às relações sociais que sob sua égide se institucionalizam.

3.2 ATIVISMO JUDICIAL PARA ALÉM DA TEORIA: AFRONTAS DIRETAS À SEGURANÇA JURÍDICA NA PRÁXIS JUDICIAL BRASILEIRA

Em larga escala, o ativismo judicial no Brasil é discutido em sede de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, onde o fenômeno ganha de fato mais visibilidade. Matérias polêmicas, como o reconhecimento das uniões homoafetivas, foram objeto de decisão do Supremo Tribunal Federal e posteriormente ratificadas pelo Conselho Nacional de Justiça na Resolução n° 175/2013, que autoriza o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, tornando obrigatório seu registro pelos cartórios, embora até o presente momento inexista produção legislativa acerca do tema. Contudo, acreditamos que é nas instâncias inferiores e, mais precisamente, no primeiro grau de jurisdição que as condutas ativistas podem produzir seus resultados mais nefastos. Ora, se no Supremo são travados intensos debates entre sujeitos que divergem ou concordam, no todo ou em parte e, ainda assim, se verifica a prevalência do arbítrio judicial sobre os preceitos legais – seja para contrariar-lhes, seja para dar-lhes sentidos variados –, o que dizer de decisões tomadas individualmente?[123] Vejamos.

Sete Lagoas – MG, 12 de fevereiro de 2007. Foi publicada nos autos da Ação Penal n° 222.942-8/06, sentença que assim dispunha:

Vistos, etc...

 O tema objeto destes autos é a Lei nº 11.340/06, conhecida como “Lei Maria da Penha”. Assim, de plano surge-nos a seguinte indagação: devemos fazer um julgamento apenas jurídico ou podemos nos valer também de um julgamento histórico, filosófico e até mesmo religioso para se saber se esse texto tem ou não autoridade? (...)

Esta “Lei Maria da Penha” — como posta ou editada — é portanto de uma heresia manifesta. Herética porque é anti-ética; herética porque fere a lógica de Deus; herética porque é inconstitucional e por tudo isso flagrantemente injusta.

Ora! A desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher — todos nós sabemos — mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem. Deus então, irado, vaticinou, para ambos.[124]

Ao fim, o magistrado afirma negar a vigência dos artigos 1° ao 9°; artigo 10°, parágrafo único; artigo 11, inciso V; artigo 12, inciso III; artigos 13 e 14; artigos 18 e 19; artigos 22, 23 e 24 e também dos artigos 30 a 40 da Lei 11.340/06, por considerá-los inconstitucionais “na medida em que ferem o princípio da isonomia”.

Em que pese o magistrado haver empregado a isonomia como fundamento da decisão, o teor desta é maciçamente religioso, excessivamente subjetivo e preconceituoso e não exprime mais que a sua opinião acerca dos fatos. Com efeito, a LOMAN (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) prescreve em seu artigo 41 que, ressalvados os casos de impropriedade ou excesso de linguagem, o magistrado não pode ser punido pelas opiniões manifestadas ou pelas decisões proferidas.[125] No caso em tela, além do excesso judicial vislumbrado, o juiz não atenta para o dever constitucional de motivar a decisão[126], que não pode ser manifestado por meros critérios de convicção pessoal. Nesse sentido, é válida a lição de Streck ao afirmar que “o direito não é (e não pode ser) aquilo que o intérprete quer que ele seja”.[127]

Brasília – DF, 09 de outubro de 2013. Nos autos da Ação Penal n° 2013.01.1.076604-6, foi proferida sentença absolutória cuja fundamentação continha o seguinte:

Em Juízo, o acusado afirmou que transportava a droga no interior de seu estômago, que pretendia entregá-la a um amigo que se encontrava preso no estabelecimento penal e que no momento da abordagem provocou o vômito e expeliu as trouxinhas de maconha, o que confirma os depoimentos e apreensão constantes do auto de prisão em flagrante. (...)

A conduta praticada pelo acusado, com efeito, parece se adequar àquela descrita no art. 33, caput, cc art. 40, da lei 11343/06.

Contudo, no meu entender, há inconstitucionalidade e ilegalidade nos atos administrativos que tratam da matéria. (...)

A portaria 344/98, indubitavelmente um ato administrativo que restringe direitos, carece de qualquer motivação por parte do Estado e não justifica os motivos pelos quais incluem a restrição de uso e comércio de várias substâncias, em especial algumas contidas na lista F, como o THC, o que, de

plano, demonstra a ilegalidade do ato administrativo. (...)

Soa incoerente o fato de outras substâncias entorpecentes, como o álcool e o tabaco, serem não só permitidas e vendidas, gerando milhões de lucro para os empresários dos ramos, mas consumidas e adoradas pela população, o que demonstra também que a proibição de outras substâncias entorpecentes recreativas, como o THC, são fruto de uma cultura atrasada e de política

equivocada e violam o princípio da igualdade, restringindo o direito de uma grande parte da população de utilizar outras substâncias.

O THC é reconhecido por vários outros países como substância entorpecente de caráter recreativo e medicinal, diante de seu baixo poder nocivo e viciante e ainda de seu poder medicinal para a saúde do usuário, sem mencionar que em outros o seu uso é reconhecido como parte da cultura. (...)

Portanto, no meu entender, a portaria 344/98, ao restringir a proibição do THC não só é ilegal, por carecer de motivação expressa, como também é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade, da liberdade e da dignidade humana.[128]

No caso em comento resta muito mais clara a pretensão do julgador de se sobrepor à atividade legislativa, na medida em que pretende “descriminar” o uso da maconha pelo simples fato de entender que a portaria que veda seu uso, bem como a lei que pune seu tráfico, estão defasadas ou, em suas palavras, “são fruto de uma cultura atrasada e de política equivocada”. Com base em tal argumentação, o magistrado absolveu o réu da acusação de tráfico de entorpecentes, numa notável afronta ao que dispõe a legislação atinente aos fatos. Apesar de ter se empenhado em demonstrar motivação mais contundente, à vista do caso anterior, ao fim e ao cabo o que prevalece da decisão é também o que o juiz pensa acerca da lei.

Aqui, merece espaço uma observação: as decisões judiciais acima citadas tentam justificar-se por princípios constitucionais, cada qual à sua maneira. No primeiro caso, temos o que o magistrado entende por “isonomia”; no segundo, as razões são “igualdade”, “liberdade” e “dignidade humana”. Em ambos, temos regras sendo violadas ou ditas inválidas em nome da subjetividade do julgador e os princípios constitucionais lhes servindo de “muleta para todo e qualquer argumento”, como pontua Trindade[129]. Fato digno de atenção também é que nenhuma das demandas tratava-se de um “caso difícil”; pelo contrário, em ambas a solução legal era cristalina. Porém, como nem sempre ao ativismo apetece utilizar-se de standards reconhecidos pela Constituição, passemos ao próximo caso.

Conforme discorrido, é nas decisões de primeiro grau de jurisdição que se vislumbra os maiores riscos do ativismo judicial, ao passo que em sua maioria são fundamentadas na consciência do juiz, que ali exerce com individualidade – e maior subjetividade – sua função. Porém, o “panprincipiologismo”, nos moldes propostos por Streck, é observado caracteristicamente na atuação dos tribunais brasileiros, razão pela qual optou-se por tratar também de decisões oriundas do segundo grau de jurisdição para que se possa visualizar melhor o fenômeno.

Rio de Janeiro – RJ, 12 de dezembro de 2012. Acórdão proferido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 1ª região:

AVALIAÇÃO PROBATÓRIA. PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE DO JUIZ COLETOR. Pelo princípio da imediatidade ou imediação, o Juízo de primeiro grau tem contato direto com a colheita e própria produção das provas. Por meio desse contato, encontra-se esse mesmo Juízo apto a graduar ou valorar o conjunto probatório. Não deve, pois, em princípio, a Instância ad quem, cujo contato com as provas é apenas indireto, modificar o ato valorativo do órgão originário, salvo quando verificar assimetrias nesse processo de valoração.[130]

Trata-se, pois, do “princípio da imediatidade”, que autoriza o juízo de primeira instância a “graduar ou valorar o conjunto probatório”, graduação esta que será preponderante sobre as posteriormente realizadas, posto que configura o primeiro contato com o conjunto probatório. Mas, afinal, a que classe de princípios pertence a “imediatidade”? Aos princípios constitucionais, dotados de conteúdo deontológico ou aos princípios gerais do direito, que atuarão apenas para suprimir lacunas legais? Que norma legal institui a “imediatidade” ou que omissão legal leva o intérprete a empregá-la? Em nossa visão, não se trata a “imediatidade” senão de um instrumento discricionário e performativo por meio do qual o juízo ad quem reconhece, em detrimento de sua própria função, que ao juízo a quo compete valorar provas e, assim sendo, a interpretação do tribunal nada deve dispor – via de regra – a esse respeito; uma espécie de abdicação funcional justificada por um “princípio”. À parte isso, cumpre destacar que a valoração de provas pelo juiz implica em outro problema – tão gravoso quanto a criação de princípios –, conforme demonstra Streck ao citar decisão do Superior Tribunal de Justiça em sede de Habeas Corpus: “(...) o Magistrado, no exercício de sua função judicante, não está adstrito a qualquer critério de apreciação de provas carreadas aos autos, podendo valorá-las como sua consciência indicar, uma vez que é soberano dos elementos probatórios apresentados”.[131] Para o autor, tal afirmação implica dizer que, embora na vigência da Constituição Federal de 1988, o resultado do processo “dependerá do que a consciência do juiz indicar”, eis que a gestão da prova não se dá por critérios intersubjetivos – a exemplo do devido processo legal – e sim pelo “critério inquisitivo do julgador”.[132]

Santa Catarina – SC, 27 de setembro de 2010. Acórdão proferido pela Primeira Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina:

APELAÇÃO CÍVEL. AGRAVO RETIDO. AÇÃO DE REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. EXISTÊNCIA DE DEMANDA ANTERIOR FUNDADA NO MESMO DESENCADEAMENTO DE FATOS. IDENTIDADE DA CAUSA DE PEDIR REMOTA. PRINCÍPIO DO DEDUZIDO E DO DEDUTÍVEL. TEORIA DA INDIVIDUALIZAÇÃO. COISA JULGADA RECONHECIDA. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. Consoante o princípio "do deduzido e do dedutível", todas as alegações e defesas concernentes ao mérito da causa de que dispunham as partes consideram-se deduzidas e repelidas (art. 474 do Código de Processo Civil), operando-se a preclusão maior (coisa julgada) sobre elas, razão pela qual se mostra descabida a sua arguição em nova demanda. Desse modo, em que pese a faculdade de propositura de várias ações com pedidos diferentes fundados na mesma causa de pedir estar amparada pela teoria da consubstanciação, parece mais adequada no sistema jurídico vigente a adoção da teoria da individualização, que preconiza que toda violação ou ameaça a direito subjetivo haverá de ser articulada numa única ação ou em outra demanda conexa, sob pena de perpetuação da lide sociológica. Nessa esteira, se o autor ajuíza uma segunda ação objetivando a satisfação de pretensões fulcradas no mesmo desencadeamento de fatos (identidade da causa de pedir remota) que motivaram a propositura de demanda primitiva cuja sentença já transitou em julgado, há de se reconhecer a existência de coisa julgada em relação aos pedidos posteriores e, por conseguinte, deve o processo ser extinto sem resolução do mérito (art. 267, V, do Código de Processo Civil).[133]

A decisão toma por base o artigo 474 do Código de Processo Civil[134], que dispõe acerca do efeito preclusivo da coisa julgada, reputando que esta incide sobre todas as alegações e defesas feitas no curso do processo e também sobre aquelas que se deixou de fazer, não cabendo às partes alegá-las em momento posterior. Contudo, embora a legislação seja clara (e nem um pouco omissa) a esse respeito, achou por bem o julgador empregá-la como “princípio do deduzido e do dedutível”. Uma regra que serve, portanto, à segurança jurídica – eis que trata de coisa julgada e, por assim dizer, de estabilidade – sendo posta a serviço do exercício criativo dos juízes que, não satisfeitos em aplicá-la como deve ser, dão-lhe indevidos adornos, por razões que fogem ao nosso entendimento porque – repita-se – são demasiado subjetivas. Não ousamos deduzi-las.

Outra questão controvertida na prática forense brasileira é a utilização da proporcionalidade, tida como um “princípio”.

Goiânia, 16 de maio de 2014. Decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás em sede de Habeas Corpus:

HABEAS CORPUS. FURTO SIMPLES. DECISÃO DESFUNDAMENTADA. INOCORRÊNCIA. PRINCIPIO DA PROPORCIONALIDADE. NÃO CONFIGURADO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. PREDICADOS PESSOAIS ABONADORES. IRRELEVÂNCIA. 1) Não carece de fundamentação a decisão que convolou o flagrante em preventiva quando corretamente arrimada na garantia da ordem pública, consubstanciada na necessidade de preservar-se a garantia da ordem pública consubstanciada na possibilidade concreta de reiteração delitiva diante da extensa folha de antecedentes criminais, evidenciando a periculosidade social do paciente. 2) Não há se falar em ofensa ao Princípio da Proporcionalidade, pois o inciso LXI do artigo 5º da Constituição Federal permite a possibilidade de prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade competente, requisito implementado no caso. 3) Ornamentos pessoais, por si sós, não obstam a segregação cautelar, mormente quando não comprovados e presentes os requisitos dos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal. 4) Considerando que esta Corte de Justiça estabeleceu o prazo de 110 (cento e dez) dias para conclusão da audiência de instrução e julgamento nos crimes afetos ao procedimento comum ordinário e que percorrido o hiato de 95 (noventa e cinco) dias desde a prisão em flagrante do paciente, a delonga para a formação da culpa, ainda que verificada, deve ser analisada à luz do princípio da razoabilidade. ORDEM CONHECIDA E DENEGADA.[135]

Afirma o Tribunal que a decisão que convalida a prisão em flagrante, convertendo-a em prisão preventiva, não carece de fundamentação – ao contrário do que dispõe o artigo 310 do Código de Processo Penal.[136] Aqui, pressupõe-se que o auto de prisão em flagrante estava devidamente fundamentado e que o juiz, diante disso, prescindiu (como se fosse possível) da atribuição legal de fazê-lo, ao converter a prisão em preventiva. O Tribunal entendeu que não haveria, assim, uma ofensa ao “princípio da proporcionalidade”, eis que a primeira decisão (da prisão em flagrante) foi emitida regularmente. Em que pese a dificuldade de estabelecer uma dicção constitucional válida do que seria o “princípio da proporcionalidade”, não se pode negar que a natureza abstrata deste permite empregá-lo como “fundamento” quase sempre. E é isso que se tem feito. Ao fim, em nome da “razoabilidade” e do primado pela “proporcionalidade”, é sanada a falta de fundamentação da decisão do juiz e mantida a prisão decretada por meio daquela – que já durava noventa e cinco dias –, o que não nos parece nenhum pouco razoável e proporcional. Desnecessário dizer que o artigo 310 do Código de Processo Penal sequer foi mencionado.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O nosso ir faz o caminho – disse Lewis Carroll –, frase precedida da afirmação de que não existem caminhos já feitos. Da Segunda Guerra até aqui, fez-se o neoconstitucionalismo – controverso e incompreendido paradigma constitucional que sustenta o Estado Democrático de Direito. Como vimos, há quem o considere mera continuação. Entendemos, porém, que ele representa uma ruptura com os paradigmas que o antecedem ao passo que inaugura uma nova forma de pensar o direito, na qual a Constituição é o parâmetro de validade das demais leis e seu texto pode ser invocado e aplicado diretamente pelo Poder Judiciário. Ocorre também a aproximação entre moral e direito através da incorporação de princípios ao texto constitucional e do método da ponderação como alternativa à subsunção. Acreditava-se que dessa forma estaria resolvido o problema da discricionariedade dos juízes. Todavia – voltando à frase inicial –, se somos responsáveis pela construção do caminho, há que se ter muita prudência.

Um dos grandes problemas enfrentados pelo neoconstitucionalismo é o ativismo judicial, favorecido pela expansão da jurisdição constitucional e pela judicialização da política e das relações sociais. Não se pode negar que a figura do juiz positivista – acorrentado pela lei e cego para o seu conteúdo – foi desconstituída, pois os princípios constitucionais consagram valores democráticos, possuem um caráter mais aberto que as regras e impõem respeito absoluto. Todavia, instaurou-se sobretudo nos países de tradição romano-germânica a ideia de que, em nome da justiça tão perseguida, os magistrados podem ir além da lei ou mesmo portarem-se contra ela. Entenda-se “lei” em sentido lato, eis que a Constituição aqui também se insere.

A discussão acerca do ativismo judicial nos países de tradição norte-americana conta com mais de cem anos, se considerada a teoria departamentalista de James Bradley Thayer, em muito anterior ao uso da expressão “ativismo”. Com efeito, o constitucionalismo norte-americano já vivenciava realidade diversa, com ares de neoconstitucionalismo, embora o termo não seja lá empregado. Contudo, até os dias atuais, tanto a common law quanto a civil law ainda não conseguiram solução eficaz para o problema do ativismo.

Abre-se aqui espaço para uma observação necessária: a cultura jurídica norte-americana é demasiado diferente da nossa. A Constituição dos Estados Unidos da América data de 1787 e possui apenas sete artigos e vinte e sete emendas. No mais, o direito é construído pela atividade jurisprudencial. No Brasil, temos uma Constituição com vinte e seis anos de vigência, duzentos e cinquenta artigos e, até o presente momento, oitenta e três emendas. Jurisprudência não vincula a atividade jurisdicional e, ainda assim, há quem insista na ideia do ativismo. Embora não apregoemos uma “suficiência ôntica”, é forçoso reconhecer que temos matéria constitucional e legal capazes de orientar satisfatoriamente a atividade judicial. Por isso, a ponderação não é regra. Por isso, temos o dever constitucional de fundamentação das decisões.

Em nossa visão, o problema da discussão do ativismo desdobra-se em outros dois: a má interpretação das teorias que conformam o neoconstitucionalismo e o desprezo pelos efeitos das decisões ativistas. Com relação ao primeiro, tomemos como exemplo a teoria da argumentação de Robert Alexy: se aceitamos – como propõe Alexy – que os princípios são “mandados de otimização” e que podem ser utilizados em diferentes medidas, desprezamos o valor normativo destes e, por assim dizer, assentimos que a sua diminuição (diante de um caso concreto) não configura um risco para o Estado Democrático, ao passo não seriam um conteúdo legal propriamente dito. Restaria ao intérprete, pois, a faculdade de fazer uso dos princípios como e quando lhe parecesse conveniente ou apenas diante dos chamados “casos difíceis” (hard cases). Outro ponto a ser considerado é que, embora comprometida com a racionalização da decisão judicial, a teoria de Alexy é compreendida e aplicada por vezes sem essa preocupação, a exemplo do que ocorre no Brasil, onde a proporcionalidade é utilizada como princípio, sob o pretexto de justificar as mais diversas situações e a ponderação torna-se uma escolha do juiz, entre princípios conflitantes. No que tange ao segundo problema – e este nos parece tão grande quanto o próprio ativismo – observamos que, na tentativa de fazer prevalecer seus pontos de vista sobre o fenômeno, os juristas acabam por menosprezarem seus efeitos. Ora, dizer que o ativismo judicial satisfaz os ideais de justiça e atua na inércia do legislador não basta, tampouco afirmar seu caráter antidemocrático e subjetivista. A questão é: o que fazer com o produto do ativismo judicial?

No terceiro capítulo do presente trabalho, debruçamo-nos sobre a análise de decisões judiciais ativistas em sede de primeiro e segundo grau de jurisdição. Decisões estas ainda passíveis de recursos e, por conseguinte, de revisão e reforma pelas instâncias superiores. A velha e boa prática ensina que, se há recurso, há esperança. Claro, pois. O erro está em conformarmo-nos com isso.

Não se pretende assim dizer que os juízes não erram – até porque essa é a mensagem que o ativismo quer nos passar –, e sim que a função jurisdicional pressupõe um mínimo de comprometimento com o bom senso e a racionalidade. Para ilustrar tal necessidade no ordenamento pátrio, basta lembrar que o artigo 93, IX, da Constituição Federal de 1988 impõe aos magistrados o dever de fundamentar todas as suas decisões, sob pena de nulidade. Daí, temos que decisão não fundamentada é decisão nula de pleno direito. Mas, o que dizer das decisões fundamentadas em critérios pessoais e princípios inexistentes ou mesmo das que contrariam a lei? A esse respeito, digamos uma palavra: previsibilidade.

Conforme visto, a previsibilidade é premissa básica da segurança jurídica, posto que possibilita aos jurisdicionados orientarem-se de acordo com a lei e, notadamente, deduzir a sanção a determinadas condutas e o conteúdo das decisões judiciais a partir dos fatos, num silogismo claro com o direito aplicável. Com efeito, na realidade brasileira, o desconhecimento da lei não escusa o cidadão de seu cumprimento. Por isso, quando, a despeito das disposições legais, o juiz opta por decidir de forma subjetiva e arbitrária, temos – para além de uma afronta à segurança – uma incoerência considerável, pois se é correto dizer que “ninguém se escusa de cumprir a lei alegando que não a conhece”, é injustificável conhecê-la e proferir ou reputar válida decisão que a contrarie. E mais: se os juízes passaram, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, a serem seus guardiões, como explicar que as maiores ofensas a ela se dêem justamente no âmbito do Poder Judiciário?

Na esteira da inconstitucionalidade, decisões que atentam contra os valores constitucionais não possuem validade. Destarte, se tomamos a segurança jurídica como um valor supremo da República (na forma do preâmbulo da Constituição Federal), padecem de nulidade todas as decisões que a ela se oponham, eis que são inconstitucionais. De outra sorte, enquanto direito fundamental (consoante dispõe o caput do artigo 5°), a segurança goza de aplicabilidade direta e está inserta nas matérias que constituem cláusula pétrea, não podendo ser objeto de emenda constitucional tendente a aboli-la, quiçá de decisões judiciais que o façam.

De uma forma ou de outra, não há escapatória: o ativismo judicial não se coaduna com a segurança jurídica e as decisões ativistas não possuem espaço de validade num Estado Democrático porque são fruto de deliberações individuais – fato reconhecido até por quem o considera um avanço – e revestidas da subjetividade do intérprete, promovendo assim imprevisibilidade e insegurança. Prova disso é que, enquanto a “razoabilidade” serviu de fundamento para manter uma prisão preventiva ilegal – eis que não obedecia à forma disposta no Código de Processo Penal –, o pensamento “inovador” do magistrado acerca da proibição da maconha absolveu um traficante confesso.

Admitir que o juiz possa, tomado pela própria vontade, decidir as questões que lhes são submetidas é largar direitos à própria sorte. O juiz serve ao direito, e não o contrário. Permitir que o magistrado construa, no exercício da tarefa que lhe foi outorgada pelo Estado, raciocínios que se impõem ao direito legislado, é substituir o “Estado-juiz” pelo “juiz-Estado”, cuja atuação não possui controle nem prévia legitimidade social. O juiz serve ao Estado, embora nem sempre o reconheça.

Do exposto – e agora de forma sintetizada –, ficam as seguintes observações:

1. O neoconstitucionalismo opera mudanças consideráveis e positivas na estrutura jurídica dos Estados. Porém, a má compreensão das teorias que o conformam, bem como a recepção destas em sua integralidade no direito brasileiro, sem a devida adequação à nossa realidade, ensejam embaraços de difícil superação, a exemplo do ativismo judicial. O problema não está no neoconstitucionalismo em si, mas na forma pela qual a interpretação judicial vem sendo realizada desde o seu advento.

2. Não há uma relação de causa e efeito entre neoconstitucionalismo e ativismo judicial, assim como entre judicialização e ativismo judicial. É certo que ambos os fenômenos propiciam em determinada medida a ocorrência do ativismo, mas neste não implicam necessariamente. Isso se torna mais claro se considerarmos as semelhanças havidas entre a discricionariedade positivista e o ativismo dos dias atuais, dados em paradigmas totalmente distintos. A diferença é que, enquanto o positivismo admitia a existência de lacunas legais e assim institucionalizava a influência direta da moral dos juízes ao tomar determinadas decisões com vistas a preenchê-las, o neoconstitucionalismo não se presta a reconhecer juízos morais ou arbitrários, ao passo que a aproximação entre direito e moral nele ocorre por meio dos princípios constitucionais. Tais princípios, se considerados deontológicos – assim como propõem Dworkin e Streck –, não serão utilizados para preencher lacunas, e sim para efetivar no mundo do direito os valores que conformam a sociedade, tornando sua aplicação invariavelmente democrática.

3. O ativismo judicial produz efeitos muito mais nocivos nos sistemas de tradição romano-germânica – caracterizados pelo maior apego legal – que aos sistemas de tradição norte-americana, onde os precedentes vinculam as decisões judiciais e a atividade criativa dos juízes é constitucionalmente reconhecida. No Brasil, sobretudo, as decisões ativistas partem de uma abstração muito maior porque os magistrados não possuem legitimidade para produzir a norma aplicável diante do caso concreto. Assim sendo, os decisionismos têm como ponto de partida tão-somente a consciência do intérprete.

4.  Em tempo: a leveza da palavra “superação” não traduz a real necessidade relacionada ao ativismo – o combate.

5. Combater o ativismo judicial não passa pela discussão de bons ou maus resultados, e sim pela análise de tais resultados como afronta direta à segurança jurídica e, por conseguinte, ao Estado Democrático de Direito.

6. Prescindir do valor “segurança”, bem como do direito fundamental a esta, é negar a tutela jurisdicional do Estado em sua essência, abdicando de um pressuposto primordial para o alcance de uma justiça democraticamente comprometida.

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Sobre o autor
Natália Juliana Oliveira Meneses

Advogada, com atuação voltada ao Direito Civil e Previdenciário.

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