Introdução
O presente texto pretende analisar os termos materialismo, vitalismo e racionalismo trabalhados por Antoine Augustin Cournot e sua relação com o Direito, especialmente com o biodireito.
Materialismo
O materialismo é a teoria que atribui causalidade apenas à matéria, admitindo que esta é a única causa de todos os fenômenos físicos e químicos. O materialismo metodológico é colocado como a única explicação possível dos fenômenos, recorrendo aos corpos e seus movimentos mecânicos.
A matéria é aqui compreendida como aquilo de que algo é feito, aquilo que num ser se constitui o elemento potencial, aquilo que é móvel no espaço e que possui uma massa mecânica, com extensão e movimento. Seriam os objetos naturais que o trabalho do homem utiliza ou transforma com vistas a um determinado fim, como, por exemplo, a madeira.
Esse termo foi referido em 1702 por Leibniz, e reivindicado pela primeira vez em 1748 por La Mettrie. Entretanto, em termos da origem das idéias, pode-se considerar que os primeiros filósofos materialistas, são alguns filósofos pré-socráticos: Demócrito, Leucipo, Epicuro, Lucrécio.
Essa doutrina atribui causalidade apenas à matéria. Não existe outra substância além da matéria e esta é a única causa das coisas, ou seja, os fenômenos físico-químicos.
Assim, há um menor número de princípios para elucidar os fatos. Aqui, para o chamado “materialismo metodológico” a única explicação possível dos fenômenos naturais é a que recorre aos corpos e seus movimentos.
No que se refere à natureza do homem, pela ótica do materialismo, o homem será tido como um ser simples, do qual todas as tendências acabam por formar um sistema harmônico e homogêneo e não um ser que pudesse ser “duplo” em si mesmo.
Para o materialismo, não existe nada que seja separável da matéria corporal e essa doutrina exclui a idéia de existência da “alma”.
A filosofia marxista cunhou o termo “materialismo histórico” como uma tese segundo a qual o modo de produção da vida material determina, em última instância, o conjunto da vida social, política e espiritual.
Esse foi um método de compreensão e análise da história, das lutas e das evoluções econômicas e políticas, nessa tese definida e utilizada por Karl Marx, Friedrich Engels, Rosa Luxemburgo e Lênin.
Em síntese pode-se dizer que o materialismo histórico é um marco teórico que visa explicar as mudanças e o desenvolvimento da história, utilizando-se de fatores práticos, tecnológicos (materiais) e o modo de produção.
Na perspectiva do materialismo histórico, a economia e os fatos econômicos em geral, seriam como a “matéria” como base e causa determinante de todos os fenômenos históricos e sociais.
A estrutura econômica seria a base sobre a qual se elevaria a estrutura jurídica e política. Isso, através principalmente das mudanças tecnológicas e do modo de produção – este compreendido como as técnicas e as relações de trabalho e produção - seriam os dois fatores principais de mudança social, política e jurídica.
O materialismo histórico é associado ao marxismo e muitos acreditam que foi Karl Marx que desenvolveu esta teoria. Porém, o desenvolvimento desta teoria esta presente na história da sociologia e antropologia. Contudo, o materialismo histórico se popularizou com o desenvolvimento do marxismo no final do século XIX e começo do XX.
Vitalismo
Diferentemente do materialismo, o vitalismo vai admitir a idéia de alma. Para essa teoria filosófica, os fenômenos vitais não podem ser inteiramente explicados com causas mecânicas.
Na concepção vitalista existe, em cada indivíduo, uma energia universal, um “princípio vital” que, além de ser a origem de todo o Universo, também permeia tudo o que existe. Esse “princípio vital” seria a alma. Essa alma não se confundiria com a mente, a razão, essa alma é distinta dela bem como das propriedades físico-químicas do corpo e é esse “princípio vital” que governa os fenômenos da vida.
Esta atuação energética supra material seria fundamental para a manutenção do bem-estar do Universo e do corpo humano. A doença, por exemplo, seria uma conseqüência do desequilíbrio desta “energia vital”.
Historicamente, o vitalismo é tão antigo quanto a idéia de Deus e da alma, tão antigo quanto o próprio registro do pensamento humano.
Entre os chineses, por exemplo, encontramos o conceito de ch´i, desempenhando um papel fundamental em quase todas as escolas chinesas de filosofia natural, significando, literalmente “gás” ou “éter” e denota o sopro vital ou a energia que anima o cosmo. No organismo humano há os caminhos do ch´i, que é toda a base da medicina tradicional chinesa, havendo harmonia ou saúde quando o fluxo do ch´i estiver livre e doença quando ocorrer o contrário.
Na Grécia antiga, entre os pré-socráticos, havia o predomínio da visão vitalista na concepção da natureza (physis). Teorias vitalistas sustentam que a vida só pode ser explicada por leis intrínsecas aos organismos vivos, basicamente diferentes daqueles da vida orgânica, enquanto teorias mecanicistas (ou "reducionistas") tentam explicar com base na teoria da natureza orgânica, ou seja, exclusivamente a partir dos pressupostos básicos da física e da química.
Os vitalistas postulam algum princípio ou força de ligação, sem a qual o mundo e suas partes não poderiam interagir e manter-se unidos, e sua ação é vista, especialmente, para explicar a peculiaridade dos organismos vivos.
Do ponto de vista da história da ciência, a polêmica entre o vitalismo e o materialismo é muito grande.
Por sua vez, o racionalismo, termo que surgiu no século XVII, é a concepção filosófica que afirma a razão como única faculdade a propiciar o conhecimento adequado da realidade.
A razão, por iluminar o real e perceber as conexões e relações que o constituem, é a capacidade de apreender ou de ver as coisas em suas articulações ou interdependência em que se encontram umas com as outras.
Esta doutrina elimina da religião todas as coisas que estão acima da própria razão, rompendo com os dogmas, e afirma que tudo que existe tem uma causa inteligível, mesmo que não possa ser demonstrada de fato, como a origem do Universo. Assim, vai privilegiar a razão, o raciocínio, em detrimento da experiência do mundo sensível como via de acesso ao conhecimento.
Racionalismo
Para o racionalismo, o raciocínio é a operação mental, discursiva e lógica, que usa proposições e comparações entre elas para extrair conclusões acerca das verdades que encerram. Essa é sua base: os princípios da busca da certeza e da demonstração, sustentados por um conhecimento que não vem da experiência, mas são elaborados somente pela razão.
Essa era a idéia central comum ao conjunto de doutrinas conhecidas tradicionalmente como racionalismo: tudo o que pode ser conhecido pode ser transformado num conceito ou numa idéia clara e distinta, demonstrável e necessária, formulada pela razão.
Assim, a Natureza e a sociedade podem ser inteiramente conhecidas pelo indivíduo, pois seriam inteligíveis em si mesmas, racionais em si mesmas e passíveis de representação pelas idéias do sujeito do conhecimento.
Essa concepção da realidade como intrinsecamente racional foi concebida por Galileu, por exemplo, como um sistema racional de mecanismos físicos, cuja estrutura profunda e invisível é matemática. Conforme citado por ele, o “Livro do Mundo”, diz Galileu, “foi escrito em caracteres matemáticos.”
Para essa teoria, não há nada que não seja inteligível, nada existe que não tenha sua razão de ser, por direito. O racionalismo é a corrente central no pensamento liberal e Kant foi o primeiro a adotar esse termo como símbolo de sua doutrina.
Para Cournot, o conhecimento não possui acesso à realidade em si mesma. Para ele, o homem somente seria capaz de apreender o real desde uma perspectiva fenomênica.
Cournot procede, em suas investigações filosóficas, seguindo o método que consiste em alcançar princípios cada vez mais simples e abrangentes, de modo que se possa encontrar um número de leis que possam abranger os mais diversos fatos, unificando-os. Esse seria o método também utilizado nas ciências, como na física.
Assim, na filosofia, seria possível estabelecer grupos que classificassem e alcançassem um número cada vez maior de relações fenomênicas, aproximando-se, assim, ao máximo, do limite imposto a todo conhecimento. A partir de tais categorias, elevaria-se a chance de encontrar uma lei que pudesse agrupá-las de forma inteligível.
Na história da ciência a polêmica referente às teorias materialistas, vitalistas e racionalistas pode ser relacionada com a própria definição de “vida” que é adotada pelo Direito.
Afinal, a “vida” de uma pessoa seria sinônimo de vida fisiológica ou um conceito mais amplo, como vida emocional?
Como caracterizar a tutela de interesses de um ser como pessoa? Apenas um indivíduo que desempenha funções vitais, compreendidas mecanicamente?
O que temos é que o nível com que um indivíduo consegue desenvolver tais funções vai desempenhar um papel importante no processo de se tomar decisões médicas, e por que não jurídicas, por exemplo. Haja vista a recente questão do aborto dos fetos anencéfalos.
Não se pode negligenciar tais fatores, mas qual será o aspecto central da decisão sobre o que é o correto e mais benéfico para o indivíduo? Como atribuir prerrogativas a um ser, considerando-o como pessoa, bem como à sua dignidade?
No Brasil, a Constituição Federal trouxe como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, contudo, o legislador não explicitou qual seria esse conceito de “pessoa humana”, em qual momento essa pessoa humana passaria a existir, tampouco o que viria a ser a “dignidade” da “pessoa humana”.
A definição de tais conceitos é de enorme relevância, principalmente para assegurar a defesa dos direitos a eles relacionados. Mas não são conceitos simples, criaram e criam polêmicas que persistem até os dias de hoje.
Para o vitalismo, pessoa humana seria todo ser que possui o que podemos chamar de “genoma humano”, ou seja, pois não haveria corpo humano sem alma, o princípio dessa teoria.
Desse modo, um óvulo fecundado já possuiria a estrutura de pessoa humana, então seu surgimento seria a partir do momento da fecundação. Não haveria necessidade de capacidade de conviver em sociedade para tal definição.
Já para o racionalismo, a existência de razão, intelecto, seria a condição para existência de pessoa humana. Aqui estariam compreendidas a capacidade de participar e conviver em uma sociedade. Nessa concepção, nem todos os seres humanos seriam pessoa humana.
Por essa definição, aqueles que não são dotados de razão, não tem consciência de si mesmos e da sociedade, são seriam pessoas em potencial e não teriam os mesmos direitos das pessoas já constituídas.
E aqui voltamos ao recente exemplo dos fetos. Por não serem “pessoas humanas” poderiam ser mortos? Mas seriam pessoas em potencial, com exceção dos fetos anencéfalos...? Com o avanço da ciência, nesse momento não deveríamos levantar a questão da prática de eugenia?
Conclusão
Em face da grande polêmica trazida por esses pontos e as várias teorias que se pronunciam a seu respeito, a bioética e o biodireito devem buscar soluções para essas questões, de modo interdisciplinar, debatendo o conceito de natureza humana com integridade e praticidade.
O avanço descontrolado da ciência irá refletir nos direitos da pessoa humana, haja vista a busca de melhoramento genético, a eugenia, que culminou no Holocausto. Então, nesse cenário o biodireito deve alertar a sociedade para as conseqüências de uma “evolução” sem controle democrático.
Esse mesmo avanço científico reflete também uma nova dimensão dos direitos da personalidade e propõe a releitura dos mesmos, respeitando sempre o direito à vida.
O papel do biodireito não deve ser, posto que incapaz para tal, impedir o desenvolvimento humano e científico, mas garantir que esse desenvolvimento, do homem e de sua vida, sejam resguardados.
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia; tradução Alfredo Bosi. 2ª. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
COURNOT, Antoine Augustin. Tradução baseada no texto Materialisme, Vitalisme, Rationalisme. Paris: Vrin, 1979, p.75-78.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 2ª. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 650-653, 720-726, 910-913, 1223 e 1224.
TATON, René. História Geral das Ciências. V. 2 pt. 7 A ciência moderna. São Paulo: Difusão Européia do Livro.1960.