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A ALCA, as compras governamentais e a defesa do interesse público nacional

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Agenda 09/11/2003 às 00:00

4 AS CONTRATAÇÕES GOVERNAMENTAIS BRASILEIRAS E O INTERESSE PÚBLICO NACIONAL

Na eleição presidencial de 2002, um dos temas discutidos foi a questão das compras governamentais brasileiras e a defesa dos interesses nacionais. O Presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, alertou sobre a licitação para a compra dos novos caças supersônicos realizada pela Força Aérea Brasileira (FAB) e o processo licitatório para a construção de plataformas para extração de petróleo em águas profundas pela Petrobrás. Disse o então candidato que as contratações da Petrobrás e da FAB podem ter influência fundamental no desenvolvimento da indústria aeronáutica e dos estaleiros brasileiros, uma vez que, no caso da FAB, a pura e simples importação dos aviões apenas agravaria o déficit comercial brasileiro e perpetuaria a nossa dependência tecnológica, enquanto que sobre as plataformas, seria um absurdo que uma empresa estatal, a Petrobrás, exportasse dinheiro e empregos, em face à atual situação da economia brasileira.48

A FAB estava realizando licitação para a compra de 12 novos aviões caças, para substituição dos Mirage F-103 da base de Anápolis (GO), negócio de aproximadamente US$ 700 milhões, e o certame foi suspenso por pelo menos um ano pelo Governo atual.49

A Petrobrás, no ano de 2002, contratou uma empresa que construirá a maior parte da plataforma P-50 em Cingapura, e está realizando licitações para a construção de pelo menos outras quatro (P-51, 52, 53 e 54). As regras das licitações para a contratação das plataformas P-51 e P-52 (orçadas em US$ 1 bilhão) foram alteradas no Governo atual,50 e as novas licitações abertas no ano de 2003 (P-53 e P-54) já foram iniciadas com regras que garantem a presença da indústria nacional.

Pode-se garantir de duas formas o conteúdo nacional mínimo: ou fixando um percentual, que pode variar de 40% a 60% do total das encomendas, ou obrigando o vencedor a fazer algumas partes da obra e comprar certas peças no país.51 Como uma das principais bandeiras do então candidato Lula, com o ideário de que o Estado deve ser um agente ativo de política industrial por meio de suas compras, nas licitações da Petrobrás realizadas no novo Governo Federal está sendo exigido um percentual mínimo reservado à indústria nacional (conteúdo nacional de no mínimo 60% a 75%), excluindo-se as compras de equipamentos que não são feitos no Brasil, para o estímulo da indústria brasileira e geração de empregos, obrigando que a construção e a montagem de boa parte das plataformas seja no Brasil.52

Julio Gomes de Almeida entende que "no Brasil, é necessário resgatar o poder de compra do Estado, sobretudo para o país ter condições para desenvolver uma política tecnológica, até mais importante que a industrial". As aquisições relativas à informatização do aparelho Estatal, as compras dos aviões da FAB, as compras da Petrobrás têm que levar em conta o incentivo ao desenvolvimento nacional. A agência aeroespacial norte-americana (NASA), não apenas compra mas também financia pesadamente pesquisas de novos materiais, microeletrônica, lembra Gomes de Almeida.53

Enfim, não é compatível com o interesse público nacional a contratação de empresas estrangeiras situadas fora do Brasil para a execução/fornecimento desses objetos a serem contratados, sem se levar em conta a questão da remessa de dinheiro para o exterior e a própria exportação de investimentos e empregos.

Outro ponto a ser melhor analisado é se é possível que o Governo brasileiro privilegie os interesses nacionais em compras governamentais de grande vulto como as aqui citadas.

Uma das primeiras emendas constitucionais aprovadas no Governo Fernando Henrique, a EC nº 06/95, que segundo Paulo Bonavides "insere-se no esquema de desnacionalização da economia brasileira, fomentada pelo neoliberalismo instalado no poder",54 entre outras coisas, revogou o art. 171 da Constituição da República, que disciplinava o seguinte:

"Art. 171. São consideradas:

I - empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País;

II - empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades.

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§ 1º - A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital nacional:

I - conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País;

II - estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras condições e requisitos:

a) a exigência de que o controle referido no inciso II do "caput" se estenda às atividades tecnológicas da empresa, assim entendido o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para desenvolver ou absorver tecnologia;

b) percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou entidades de direito público interno.

§ 2º - Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional." (Grifei.)

Com a revogação desse dispositivo constitucional, que trazia as definições de empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional, pretendeu-se acabar com qualquer vantagem para as empresas brasileiras de capital nacional, sobre as empresas instituídas no Brasil que não tenham capital eminentemente nacional. Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "sua supressão visa estabelecer igualdade entre empresas, de capital nacional ou não, no mercado brasileiro".55

O que continua vigente, assim, é a definição de sociedade anônima nacional, disposta no art. 60 do Decreto-Lei nº 2.627/40: "São nacionais as sociedades organizadas na conformidade da Lei brasileira e que têm no País a sede de sua administração".56 A mesma é a definição de sociedade nacional no novo Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406/2002), art. 1.126: "É nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua administração". Com o desaparecimento do conceito de empresa brasileira de capital nacional, José Afonso da Silva alerta:

"Assim, temos, agora, empresas brasileiras e empresas não-brasileiras, com diferença exclusivamente formal entre elas, pois basta que a empresa estrangeira ou multinacional (ou parte dela) se organize aqui segundo as leis brasileiras e tenha sede aqui para ser reputada brasileira, pouco importando a nacionalidade de seu capital e a nacionalidade, domicílio e residência das pessoas que detêm o seu controle".57 (Grifei.)

Antes da EC nº 06/97 não havia dúvida sobre a possibilidade da Administração Pública brasileira, quando fosse contratar bens ou serviços, desse tratamento preferencial às empresas brasileiras de capital nacional.

Contudo, mesmo não existindo mais o conceito de empresa brasileira de capital nacional na Constituição da República, ainda há em nosso ordenamento as empresas nacionais, com sede e administração no país, e criadas conforme a legislação brasileira, que poderão ter benefícios em licitações realizadas pela Administração Pública brasileira, desde que seja demonstrado que com essa contratação sejam mantidos ou criados postos de trabalho, investimentos e mais tecnologia em nosso país.

Note-se, ainda, que Celso Antônio Bandeira de Mello entende que a revogação do art. 171 da Constituição "só poderia interferir com benefício concedido a empresa brasileira de capital nacional", sendo "inequívoco que não foram afetadas outras preferências estabelecidas em prol de bens e serviços produzidos no País ou com maior valor agregado local". O autor ainda aduz que mesmo não existindo mais a obrigação de haver lei nacional que dê preferências às empresas brasileiras de capital nacional, não há impedimento que sejam mantidas ou existam novas leis que possibilitem essa preferência, concluindo que "de modo algum, procede o entendimento segundo o qual, a partir da Emenda Constitucional nº 6/95, deixaram de ser admissíveis preferências estabelecidas em favor de empresa brasileira de capital nacional".58 (Grifei.)

Um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, segundo o art. 3º, inc. II, da nossa Constituição, é a garantia do desenvolvimento nacional:

"Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

(...)

II - garantir o desenvolvimento nacional;"

Assim, a Administração Pública ao realizar contratações, seja por meio de licitação, dispensa ou inexigibilidade, deve atentar para o princípio que almeja atingir o desenvolvimento nacional. Sobre esse princípio fundamental constitucional, Eros Roberto Grau diz o seguinte:

"Garantir o desenvolvimento nacional é, tal qual construir uma sociedade livre, justa e solidária, realizar políticas públicas cuja reivindicação, pela sociedade, encontra fundamentação neste art. 3º, II. O papel que o Estado tem a desempenhar na perseguição da realização do desenvolvimento, na aliança que sela com o setor privado, é, de resto, primordial."59 (Grifei.)

Alerte-se que o inc. XXI do art. 37 da Constituição deve ser interpretado levando-se em conta o princípio da garantia do desenvolvimento nacional:

"XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações." (Grifei.)

Como regra, uma licitação (ou contratação direta) deve atender o interesse público no sentido de buscar a melhor proposta para a Administração, sempre com a preocupação de não desrespeitar princípios como o da isonomia, legalidade, etc. Entretanto, um dos princípios fundamentais que a Administração Pública deve levar em conta é a necessidade de garantia do desenvolvimento nacional.

O art. 3º da Lei nº 8.666/93, que é a Lei Nacional das Licitações e Contratos Administrativos, disciplina que a licitação deve observar o princípio constitucional da isonomia e selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração, e o seu § 1°, inc. I, ainda proíbe a restrição ao caráter competitivo do processo licitatório, a não ser que existam circunstâncias pertinentes e relevantes que justifiquem alguma restrição. O art. 3º, § 1º, incs. I e II, da Lei nº 8.666/93, dispõe o seguinte:

"Art. 3º. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.

§ 1°. É vedado aos agentes públicos:

I - admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato;

II - estabelecer tratamento diferenciado de natureza comercial, legal, trabalhista, previdenciária ou qualquer outra, entre empresas brasileiras e estrangeiras, inclusive no que se refere a moeda, modalidade e local de pagamentos, mesmo quando envolvidos financiamentos de agências internacionais, ressalvado o disposto no parágrafo seguinte e no art. 3° da Lei n° 8.248, de 23 de outubro de 1991." (Grifei.)

Como se vê, mesmo a Lei nº 8.666/93 permite que haja cláusulas no edital de licitação que restrinja o caráter competitivo da licitação, estabelecendo preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou do domicílio dos interessados, desde que, é claro, seja uma circunstância pertinente e relevante para o objeto do contrato, devidamente demonstrada.

Sobre os dispositivos citados, Marçal Justen Filho entende que "afigura-se juridicamente inconstitucional vedar ao estrangeiro participar de licitação", alegando a vigência do art. 3º, § 1º, inc. II, reiterando "o princípio da isonomia entre nacionais e estrangeiros". O autor alega que "as garantias de igualdade não são afetadas pela naturalidade e nacionalidade" (conforme caput do art. 5º da Constituição), e que "é vedado estabelecer preferências em virtude da nacionalidade do licitante. Especialmente quando se trate de pessoa física". Por fim, Justen Filho ainda entende que com a revogação do art. 171 da Constituição, "não há mais fundamento constitucional para estabelecer preferência em favor de empresa brasileira".60

Entendemos que o princípio constitucional fundamental estampado no art. 3º, inc. II, da nossa Carta Magna e a própria Lei de Licitações Nacional permitem que a Administração Pública brasileira busque em suas contratações a garantia do desenvolvimento nacional, mesmo com a revogação do art. 171. Assim, é possível que o Poder Público, com as devidas justificativas, dê preferência para a contratação de empresas nacionais ou mesmo de produtos fabricados com conteúdo nacional.


5 CONCLUSÕES

Diante de todo o exposto, concluímos que são vários os motivos para o Brasil não concordar com a ALCA nos termos propostos, devendo ser prioritário o fortalecimento do MERCOSUL, até com sua ampliação a toda a América Latina, e aumento de contatos comerciais com países de outros continentes.

Com relação às compras governamentais, existem várias dificuldades na negociação, pois nem o Brasil, nem os Estados Unidos abrem mão de certas questões, sendo que a divergência também se mantém sobre que pontos serão discutidos apenas na OMC.

O fato é que o Brasil deve tratar as suas compras governamentais com o intuito de fortalecer a política industrial do país, pois movimenta bilhões em suas contratações, e definir certos produtos que devem ser fornecidos apenas por empresas nacionais, assim como faz os EUA com as armas e equipamentos militares e com os incentivos às suas micro e pequenas empresas.

Por fim, entendemos que o nosso ordenamento jurídico permite que a Administração Pública brasileira, como no exemplo da Petrobrás, com as devidas justificativas, realize licitações com regras que garantam a presença da indústria e de produtos nacionais, excluindo-se as compras de equipamentos e contratações de serviços que não sejam fabricados ou realizados no Brasil, evitando-se a exportação de investimentos e empregos.

Sobre o autor
Tarso Cabral Violin

advogado, assessor jurídico da Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego e Promoção Social do Paraná (SETP), professor de Direito Administrativo do Centro Universitário Positivo (UnicenP), ex-integrante da Consultoria Zênite, pós-graduado no Curso de Especialização em Direito Administrativo pelo Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos (IBEJ), mestrando em Direito do Estado na UFPR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIOLIN, Tarso Cabral. A ALCA, as compras governamentais e a defesa do interesse público nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 126, 9 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4435. Acesso em: 23 dez. 2024.

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