~~TERRAS INDÍGENAS
ROGÉRIO TADEU ROMANO
Procurador Regional da República aposentado
As populações indígenas, a teor do artigo 231, caput, § 1º e 2º, e da Lei Complementar 75, de 20 de maio de 1993, têm no Ministério Público Federal a defesa de seus interesses para a proteção de seus direitos indisponíveis, sejam difusos, coletivos ou individuais. Mesmo um índio, desde que os direitos em discussão digam respeito a sua condição de indígena, pode ser defendido pelo Ministério Público Federal, razão pela qual fica a competência da Justiça Federal, a teor do artigo 109 da Constituição Federal, para instruir e julgar a questão.
Desperta a atenção a ideia de indigenato. Aqui indispensável a participação do Ministério Público Federal na demanda, em defesa das populações indígenas.
O indigenato é tradicional instituição jurídica que deita raízes nos velhos tempos da Colônia quando o Alvará de 1º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, às terras outorgadas a particulares seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas.
O indigenato não se confunde com a ocupação, portanto, com a posse civil. O indigenato é fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. Essa a lição obtida de João Mendes Júnior é observada por José Afonso da Silva . Esse desenvolvimento é feito sobre a tese de que as terras de índios, congenitamente apropriadas, não podem ser consideradas nem como res de ninguém, nem como res derelictae. Não é uma simples posse, mas um reconhecido direito originário e preliminarmente destinado ao indígena.
Sabe-se que o artigo 231 da Constituição Federal reconhece o direito ao usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras que tradicionalmente ocupam. Tal usufruto é intransferível como lembra Pontes de Miranda
Tal a tradição do direito brasileiro, exposto na Lei nº 601/1850, no Decreto Regulamentar nº 1318, de 1854, que fez respeitar o direito originário dos índios às terras de ocupação tradicional.
Não está em jogo, no tema da posse indígena, como revelou o Ministro Victor Nunes Leal (voto proferido nos autos do recurso extraordinário nº 44.585 – MT, julgado a 28.6.61), um conceito de posse, nem de domínio, no sentido civilista dos vocábulos. Trata-se de um habitat de um povo. Assim, a Constituição Federal determina que num verdadeiro parque indígena, com todas as suas características naturais primitivas, possam permanecer os índios vivendo naquele território.
A posse indígena distingue-se da posse civil. Aquela é mais ampla, mais flexível como conceituado no artigo 23 da Lei nº 6001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio).
Nas terras indígenas, a propriedade é da União (Constituição Federal, artigo 20, inciso XI). Dos índios é o usufruto exclusivo abrangendo o aproveitamento das riquezas do solo, dos rios e lagos neles existentes. Tais terras são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
Mesmo que houver prova do fato do particular portar título de domínio, devidamente registrado em Cartório de Imóveis, prevalece o comando constitucional que declara nulo e sem nenhum efeito jurídico atos que tenham por objetivo o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas por silvícolas.
Reconhecida a tradicionalidade da ocupação indígena sobre o local os ocupantes da terra devem ser indenizados, apenas, pelas benfeitorias que fizerem no local.
Sobre terras indígenas, já decidiu o STF que que "não há direito de retenção nessas ações, porque a Constituição prevê a desocupação imediata. Sendo a terra pública, a sentença que declara a nulidade implica o cancelamento do registro e a desocupação, não havendo como se manter no imóvel o ocupante ilegítimo, mesmo porque não há posse em terra pública, mas, sim, mera ocupação de terra pública, que não dá direito a retenção" (ACO 323/MG).
O marco regulatório da matéria foi objeto de extenso voto do Ministro Ayres Britto, no julgamento do caso Raposa/Serra do Sol, que abaixo se arrola:
O conteúdo positivo do ato de demarcação das terras indígenas
“80. Passemos, então, e conforme anunciado, a extrair do próprio corpo normativo da nossa Lei Maior o conteúdo positivo de cada processo demarcatório em concreto. Fazemo-lo, sob os seguintes marcos regulatórios:
I– o marco temporal da ocupação. Aqui, é preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro. Com o que se evita, a um só tempo: a) a fraude da subitânea proliferação de aldeias, inclusive mediante o recrutamento de índios de outras regiões do Brasil, quando não de outros países vizinhos, sob o único propósito de artificializar a expansão dos lindes da demarcação; b) a violência da expulsão de índios para descaracterizar a tradicionalidade da posse das suas terras, à data da vigente Constituição. Numa palavra, o entrar em vigor da nova Lei Fundamental Brasileira éa chapa radiográfica da questão indígena nesse delicado tema da ocupação das terras a demarcar pela União para a posse permanente e usufruto exclusivo dessa ou daquela etnia aborígine. Exclusivo uso e fruição (usufruto é isso, conforme Pontes de Miranda) quanto às “riquezas do solo, dos rios e dos lagos” existentes na área objeto de precisa demarcação (§ 2º do art. art. 231), devido a que “os recursos minerais, inclusive os do subsolo”, já fazem parte de uma outra categoria de “bens da União” (inciso IX do art. 20 da CF);
II – o marco da tradicionalidade da ocupação. Não basta, porém, constatar uma ocupação fundiária coincidente com o dia e ano da promulgação do nosso Texto Magno. É preciso ainda que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário se revista do caráter da perdurabilidade. Mas um tipo qualificadamente tradicional de perdurabilidade da ocupação indígena, no sentido entre anímico e psíquico de que viver em determinadas terras é tanto pertencer a elas quanto elas pertencerem a eles, os índios (“Anna Pata, Anna Yan”: “Nossa Terra, Nossa Mãe”). Espécie de cosmogonia ou pacto de sangue que o suceder das gerações mantém incólume, não entre os índios enquanto sujeitos e as suas terras enquanto objeto, mas entre dois sujeitos de uma só realidade telúrica: os índios e as terras por ele ocupadas. As terras, então, a assumir o status de algo mais que útil para ser um ente. A encarnação de um espírito protetor. Um bem sentidamente congênito, porque expressivo da mais natural e sagrada continuidade etnográfica, marcada pelo fato de cada geração aborígine transmitir a outra, informalmente ou sem a menor precisão de registro oficial, todo o espaço físico de que se valeu para produzir economicamente, procriar e construir as bases da sua comunicação lingüística e social genérica. Nada que sinalize, portanto, documentação dominial ou formação de uma cadeia sucessória. E tudo a expressar, na perspectiva da formação histórica do povo brasileiro, a mais originária mundividência ou cosmovisão. Noutros termos, tudo a configurar um padrão de cultura nacional precedente à do colonizador branco e mais ainda a do negro importado do continente africano. A mais antiga expressão da cultura brasileira, destarte, sendo essa uma das principais razões de a nossa Lei Maior falar do reconhecimento dos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O termo “originários” a traduzir uma situação jurídicosubjetiva mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Termo sinônimo de primevo, em rigor, porque revelador de uma cultura préeuropéia ou ainda não civilizada. A primeira de todas as formas de cultura e civilização genuinamente brasileiras, merecedora de uma qualificação jurídica tão superlativa a ponto de a Constituição dizer que “os direitos originários” sobre as terras indígenas não eram propriamente outorgados ou concedidos, porém, mais que isso, “reconhecidos” (parte inicial do art. 231, caput); isto é, direitos que os mais antigos usos e costumes brasileiros já consagravam por um modo tão legitimador que à Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988 não restava senão atender ao dever de consciência de um explícito reconhecimento. Daí a regra de que “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto a benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”. Pelo que o direito por continuidade histórica prevalece, conforme dito, até mesmo sobre o direito adquirido por título cartorário ou concessão estatal. Também assim o prefalado absurdo jurídico de se afirmar que “índio atrapalha o desenvolvimento”, pois o desenvolvimento que se fizer sem os índios, ou, pior ainda, contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, será o mais rotundo desrespeito ao objetivo fundamental que se lê no inciso II do art. 3º da nossa Constituição, assecuratório de um de um tipo de “desenvolvimento nacional” francamente incorporador da realidade indígena. Como deixará de cumprir o objetivo igualmente fundamental de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso III do mesmo art. 3º da CF). Em suma, a carga de proteção constitucional que se extrai do reconhecimento de “direitos originários” é logicamente maior do que a defluente da simples outorga de direitos que não gozam de tal qualificação. É a diferença que existe entre norma especial e norma geral, esta a sucumbir perante aquela. Quanto mais que, em matéria de tutela dos “direitos e interesses indígenas”, as normas constitucionais se categorizam como de natureza especialíssima, carregadas que são de uma finalmente clara consciência histórica de compensação e de uma cósmica percepção de que nos índios brasileiros é que vamos encontrar os primeiros elos de uma identidade nacional que urge, mais que tudo, preservar. Essa identidade que nos torna sobremodo criativos e que o cronista Eduardo Gonçalves de Andrade (o “Tostão” da memorável Copa do Mundo de 1970) assim magistralmente sintetiza: “O futebol e a vida continuam prazerosos e bonitos, porque, mesmo em situações previsíveis, comuns e repetitivas, haverá sempre o acaso e um artista, um craque, para transgredir e reinventar a história” (artigo publicado no Jornal “Folha de São Paulo, edição de 18 de maio de 2008, Caderno D, p. 3);
III – o marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional.
Quanto ao recheio topográfico ou efetiva abrangência fundiária do advérbio “tradicionalmente”, grafado no caput do art. 231 da Constituição, ele coincide com a própria finalidade prática da demarcação; quer dizer, áreas indígenas são demarcadas para servir, concretamente, de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas (deles, indígenas de uma certa etnia), mais as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (§ 1º do art. 231). Do que decorre, inicialmente, o sobredireito ao desfrute das terras que se fizerem necessárias à preservação de todos os recursos naturais de que dependam, especificamente, o bem-estar e a reprodução físico-cultural dos índios. Sobredireito que reforça o entendimento de que, em prol da causa indígena, o próprio meio ambiente é normatizado como elemento indutor ou via de concreção (o meio ambiente a serviço do indigenato, e não o contrário, na lógica suposição de que os índios mantêm com o meio ambiente uma relação natural de unha e carne). Depois disso, o juízo de que a Constituição mesma é que orienta a fixação do perímetro de cada terra indígena. Perímetro que deve resultar da consideração “dos usos, costumes e tradições” como elementos definidores dos seguintes dados a preservar em proveito de uma determinada etnia indígena: a) habitação em caráter permanente ou não-eventual; b) as terras utilizadas “para suas atividades produtivas”, mais “as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar” e ainda aquelas que se revelarem “necessárias à reprodução física e cultural” de cada qual das comunidades étnico-indígenas. São os quatro círculos concêntricos a que se refere Nelson Jobim na decisão administrativa que proferiu, a propósito da demarcação da reserva indígena “Raposa-Serra do Sol”, quando ainda ministro de Estado da Justiça (decisão de 20 de dezembro de 1996). Mas quatro círculos concêntricos que explicitam o propósito constitucional de fazer dessa qualificada ocupação (porque tradicional) de terras indígenas o próprio título de constitutividade do direito a uma posse permanente e ao desfrute exclusivo das riquezas nelas existentes. Com o que, no ponto, o ato de demarcação passa a se revestir de caráter meramente declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Situação que a nossa Lei Fundamental retratou como formadora de um indissociável laço entre cada etnia indígena e suas terras congenitamente possuídas; ou seja, possuídas como parte elementar da personalidade mesma do grupo e de cada um dos seus humanos componentes. O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse fundiária um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Visto que terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, deixa de ser um mero objeto de direito para ganhar a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. É o que Boaventura de Sousa Santos chama de “hermenêutica diatópica”, para dar conta do modo caracterizadamente cultural de interpretação dos direitos fundamentais2. Metodologia interpretativa que, no caso dos indígenas, sedimentada na própria Constituição, nos orienta para fazer dos referidos “usos, costumes e tradições” o engate lógico para a definição da semântica da posse indígena, da semântica da permanência, da semântica da habitação, da semântica da produção, e assim avante;
IV -o marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da proporcionalidade”.
Esse novo marco regulatório-constitucional é também uma projeção da metodologia diatópica de que há pouco falamos. Por ela, o próprio conceito do chamado princípio da proporcionalidade, quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo irrecusavelmente extensivo. Quero dizer: se, para os padrões culturais dos não-índios, o imprescindível ou o necessário adquire conotação estrita, no sentido de que “somente é dos índios o que lhes for não mais que o suficiente ou contidamente imprescindível à sua sobrevivência física”, já sob o visual da cosmogonia indígena a equação é diametralmente oposta: “dêem-se aos índios tudo que for necessário ou imprescindível para assegurar, contínua e cumulativamente: a) a dignidade das condições de vida material das suas gerações presentes e futuras; b) a reprodução de toda a sua estrutura social primeva. Equação que bem se desata da locução constitucional “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, pela cristalina razão de que esse reconhecimento opera como declaração de algo preexistente. Preexistente, por exemplo, à própria Constituição. Como também preexistente, enfatize-se, à transformação de um Território Federal em Estado-membro. Pois o que se tem, nesse tipo de transformação de Território em Estado-membro é apenas a concessão ou o deferimento de um status de ente federado a quem não o detinha. Daí o § 1º do art. 14 do ADCT bem assinalar que a instalação dos Estados do Amapá e de Roraima ocorreria (somente ocorreria, entenda-se) “com a posse dos governadores eleitos em 1990”. Por conseqüência, o novo Estado já nasce com seu território jungido a esse regime constitucional da preexistência de direitos à ocupação de terras que, por serem indígenas, pertencem à União. É a diferença entre o “doravante”, favorecedor dos novos Estados, e o “desde sempre”, superiormente favorecedor dos indígenas. Não cabendo falar, então, frente a “direitos originários”, de coisas como redução do patrimônio ou subtração do território estadual a cada ato de demarcação de terras indígenas. Assim o quis a Lei Republicana e contra esse querer normativo só podemos render vassalagem. Como rendemos vassalagem a ela, Constituição, na parte em que obsequiou os Estados-membros com a titularidade dominial das terras devolutas “não compreendidas entre as da União” (inciso IV do art. 26). Até porque pensar diferente, para desproteger as populações aborígines, seria a continuidade de uma soma perversa que a nossa Lei Maior quis apagar do mapa do Brasil: a soma de um passado histórico de perseguição aos índios com uma hermenêutica jurídica da espécie restritiva. Esta, uma segunda subtração, constitutiva do que se tem chamado de “arma limpa”, por implicar um processo de dizimação sem derramamento de sangue. Sem que esse especialíssimo regime constitucional de proteção indígena, contudo, venha a significar recusa a cada qual dos entes federados brasileiros da adoção de políticas públicas de integração dos nossos índios a padrões mais atualizados de convivência com o todo nacional. Políticas públicas de mais facilitado acesso à educação, lazer, saúde, ciência, tecnologia e profissionalização, de permeio com assistência na área da segurança pública e desfrute dos direitos políticos de votar e até de ser votado. Tudo na linha do pensamento integracionista que marcou a militância indigenista do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (ele mesmo um descendente de índios) e conforme dispositivos constitucionais de que o § 2º do art. 210 chega a ser emblemático: “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. O advérbio “também” a patentear que as línguas maternas dos aborígines hão de conviver com o domínio do português, para que eles, os índios, melhor se comuniquem com os seus irmãos brasileiros não índios e vice-versa. Isto porque a fraternidade como signo constitucional de última geração axiológica é de preservar características étnicas, renove-se a proposição quantas vezes for necessário, mas sem o viés separatista dos que pretendem fazer de cada área de concentração indígena um apartado e cômodo laboratório de enfatuadas teses acadêmicas, à moda de ajardinamento antropológico (talvez por isso que a nossa Constituição preferisse, como de fato preferiu, não usar da expressão “reserva indígena”, mas “terras indígenas”).
O modelo peculiarmente contínuo de demarcação das terras indígenas
81.Agora é de se perguntar, naturalmente: o modelo geográfico de demarcação das terras indígenas é orientado pela idéia de continuidade, no sentido de evitar, ao máximo, interrupção física entre o seu ponto de partida e o de chegada? Como se dá, funcionalmente, com o território de cada pessoa estatal federada, apenas interrompido pelos marcos do território federativamente alheio? Demarcação por fronteiras vivas ou abertas em seu interior, para que, no âmbito delas, tanto se viabilize o exercício de um poder administrativo (não político) quanto se forme um perfil coletivo e ainda se afirme a auto-suficiência econômica de toda uma comunidade usufrutuária? Modelo bem mais serviente da idéia cultural e econômica de abertura de horizontes do que de fechamento? Por conseguinte, modelo contraposto ao tracejamento por “ilhas”, blocos ou porções geográficas de identificação prática entre demarcação e asfixia espacial ou confinamento sem grades?
82.A resposta é afirmativa, desde que observado o peculiaríssimo regime constitucional das terras indígenas. Terras que não são uma propriedade privada nem um território federado, mas um espaço fundiário que tem suas riquezas afetadas ao exclusivo desfrute de uma dada etnia autóctone. Etnia que, no seu espaço físico de tradicional ocupação e auto-suficiência econômica, detém autoridade para ditar o conteúdo e o ritmo de sua identidade cultural, partilhando com a União competências de índole administrativa. À diferença, porém, de uma propriedade privada, o título de domínio é de um terceiro (a União) que somente o possui para servir a eles, índios de uma determinada etnia. E também diferentemente do território de uma pessoa estatalfederada, cuida-se de terras que somente se vocacionam para uma livre circulação dos seus usufrutuários (índios de uma destacada etnia).
A conciliação entre terras indígenas e a visita de nãoíndios, tanto quanto com a abertura de vias de comunicação e a montagem de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública.
83.Não se pense, contudo, que a exclusividade de usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos das terras indígenas seja inconciliável com a eventual presença dos não-índios, bem assim com a instalação de equipamentos tecnológicos, a abertura de estradas e outras vias de comunicação, a montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública. A conciliação das coisas é possível, reafirme-se, desde que tudo se processe debaixo da liderança institucional da União, controle do Ministério Público e atuação coadjuvante de entidades tanto da Administração Federal quanto representativas dos próprios indígenas.
84.Em tais situações, o que é preciso assegurar de logo avulta: de uma parte, que as visitas de não-índios em nada signifique desproteção dos indígenas; de outra, que as empreitadas estatais nunca deixem de contribuir para a elevação dos padrões de bem-estar das próprias comunidades autóctones, embora também possam irradiar seus benéficos efeitos para a economia e as políticas de saúde, educação, transporte e segurança pública desse ou daquele Estado. O que já impede que os indígenas e suas comunidades façam justiça por conta própria contra quem que seja, como, por exemplo, interditar ou bloquear estradas, cobrar pedágio pelo uso delas, invadir estabelecimentos públicos. É que, se as terras permanecem indígenas, a despeito dos empreendimentos públicos nela incrustados, nem por isso a União decai do seu poder-dever de comandar ou coordenar o uso comum de tais empreendimentos.
85.Tudo isso dito com outras palavras, o formato de toda e qualquer demarcação de terras indígenas é o contínuo, porque somente ele viabiliza os imperativos constitucionais que o ministro Nelson Jobim resumiu nos quatro mencionados círculos concêntricos. Imperativos que respondem pela vertente fundiariamente generosa da Constituição, inclusive para o efeito de incorporar todos os recursos ambientais servientes da reprodução física e cultural de uma dada etnia. Sem prejuízo, porém, do regime constitucional-integracionista dos índios, propiciador da monitorada interação com outras etnias indígenas e com não-índios. E também sem impossibilitar a construção de vias de comunicação e outros empreendimentos públicos, pois o que se reserva para o usufruto exclusivo das populações nativas são as riquezas do solo, dos rios e dos lagos em terras indígenas (§2º do art. 231 da CF). Observado, claro, o seguinte dispositivo da nossa Constituição:
“Art. 231. (...) §3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes asseguradas participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.
A relação de pertinência entre terras indígenas e meio ambiente
86.O momento é propício para remarcar a perfeita compatibilidade entre meio ambiente e terras indígenas, ainda que estas envolvam áreas de “conservação” e “preservação” ambiental, pois o fato é que a Constituição dá por suposto o que dissemos um pouco mais atrás: índios e meio ambiente mantêm entre si uma natural relação de unha e carne. Não são como óleo e água, que não se misturam. Com o que de pronto ressai a seguinte compreensão das coisas: mais que uma simples relação de compatibilidade, o vínculo entre meio ambiente e demarcação de terras indígenas é de ortodoxa pertinência. Razão pela qual o decreto homologatório das Terras Indígenas Raposa-Serra do Sol (antecipo o juízo) é inclusivo do Parque Nacional do Monte Roraima, conferindo-lhe, redundantemente, aliás, uma dupla afetação: a ecológica e a propriamene indígena.
87.No particular, nada mais confortador do que trazer de volta o abalizado testemunho intelectual de Viveiros de Castro, a nos dar inteirar de que, no Estado do Mato Grosso, “o único ponto verde que se vê ao sobrevoá-lo é o Parque Nacional do Xingu, reserva indígena. O resto é deserto vegetal. Uma vez por ano, o deserto verdeja, hora de colher a soja. Depois, dá-se-lhe desfolhante, agrotóxico... E a soja devasta a natureza duplamente. Cada quilo produzido consome 15 litros de água” (continuação da mesma entrevista concedida ao Jornal Estado de São Paulo). Depoimento que reforça, já por um ângulo pragmático, a generosa vontade constitucional objetiva para com o modelo peculiarmente contínuo da demarcação das terras indígenas. Afinal, os índios são os brasileiros de vista mais alongada e pernas mais solicitadas, porque virginalmente afeitos à imensidão territorial deste Paíscontinente. O que já se reflete nas técnicas de um manejo temporalmente mais curto de suas terras agricultáveis e também de suas pastagens. Numa frase, os índios brasileiros são visceralmente avessos a qualquer idéia de guetos, nichos, cercas, muros, grades, viveiros, que são práticas apropriadas para uma demarcação parcimoniosamente insular ou do tipo queijo suíço. Sendo que o formato contínuo, ora sustentado, fica restrito a cada etnia aborígine. Com o que também se peculiariza o regime de visitas dos não-índios e se baliza a implantação de empreendimentos públicos em qualquer das áreas demarcadas. Respeitando-se, ademais, a identidade cultural que a nossa Constituição igualmente assegura às etnias aborígines lindeiras.
88.Que o final deste núcleo temático coincida com duas novas proposições, que tenho como de sólido assento constitucional: a primeira é a de que não descontinuam as terras demarcáveis como indígenas os comentados empreendimentos públicos (estradas, instalações tecnológicas, prédios, etc.); a segunda está em que eventual e significativo agravo à natureza, pelos próprios índios, tem na Constituição Federal possibilidade de pronto reparo, pois “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (...) proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” (art. 23, VI). Reação estatal, no entanto, que é de ser coordenada pela União, e somente por ela, por se tratar da pessoa federada em cujos bens se incluem as terras indígenas e de cujas competências faz parte a mais centrada proteção aos índios de toda e qualquer etnia aborígine.
A demarcação necessariamente endógena ou intraétnica
89.Por esse modo de ver as coisas, o que afinal se homenageia é a própria realidade plural-endógena dos índios. Cada etnia autóctone a ter para si, com exclusividade, uma porção de terra compatível com sua peculiar forma de organização social, seus usos e costumes, tradições, artes, culinária, terapias, meios e técnicas de subsistência econômica e de reprodução física. Trato de terra ou de terras ocupadas por modo tão permanente quanto tradicional, por isso que referidas à memória e à psicologia de cada tribo em especial, cada população aborígine em seu ontologicamente distinto modo de falar, produzir, invocar seus deuses, conceber e praticar a vida, enfim.
90.Esse modelo peculiar ou restritamente contínuo de demarcação é monoétnico portanto (não pluriétnico). Formato que deve atentar para a vontade fundiariamente generosa da Constituição, é lógico, mas ainda assim balizado pela realidade de cada etnia. Logo, interditado fica todo impulso, tentação ou veleidade antropológica de conectar, mais que os tradicionais espaços de ocupação fundiária por uma destacada etnia, aqueles que também englobam diferenciados grupos étnicos no interior de um só Estado-membro, inclusive os espaços que por acaso sejam de outra ou de outras etnias igualmente aborígines. Sem o que resulta inconstitucionalmente desconsiderada a própria interculturalidade étnico-nativa, com a circunstância agravante de acarretar movimentos de incorporações e fusões que são próprias de Municípios (§ 4º do art. 18 da CF), mas não de etnias indígenas.
91.Convém insistir na advertência: é de se excluir da demarcação das terras indígenas os intervalados espaços fundiários entre uma etnia e outra, até para não aproximar demasiadamente tribos eventualmente inimigas e de línguas diferentes, nem criar gigantescos vazios demográficos. Vazios demográficos que poderão dificultar a efetiva presença de Estado, com o risco de vir a configurar a chamada “ameaça não-armada” à soberania nacional: a solerte, maliciosa, esperta divulgação estrangeira de que o Brasil não tem competência para cuidar desse pulmão do mundo − mais que isto, desse melhor quinhão do mundo que é a Amazônia (região brasileira de maior concentração indígena, como amplamente sabido).
92.Conforme dissemos a partir do tópico de nº 51 deste voto, a Constituição não falou de “índio”, assim no singular. E não falou de índio, assim no singular, por não ser ele uma categoria humana puramente abstrata ou fora de qualquer realidade geográfica e social concreta. Corresponde a dizer: a Constituição não mencionou o vocábulo índio como categoria individual-platônica ou tãosó imaginária, supostamente apetrechado com o divino dom da ubiqüidade para merecer prerrogativado amparo jurídico em qualquer lugar do País ou situação existencial em que se encontrasse. Ela não fez de cada índio isolado um favorecido centro subjetivado de direitos pelo exclusivo fato de ser ele o primitivo habitante do Brasil e se dotar de caracteres físicos, lingüísticos e culturais salientemente distintos do colonizador europeu e do africano para aqui forçosamente importado. Não foi somente por isso.A Constituição falou de “índios”, na forma plural, também para dar conta de mais de uma centena de etnias autóctones já conhecidas no território brasileiro por ocasião dos trabalhos constituintes de 1987/1988 (227 etnias e 180 línguas ou dialetos, segundo dados oficiais da Fundação Nacional do Índio -FUNAI). Sendo assim, não há como refugar o juízo de que os índios foram normatizados numa dada situação social-endógena (intra ou monoétnica, destarte) e num concreto ambiente fundiário, porquanto coletivamente considerados de permeio com as terras por eles tão originária quanto permanentemente possuídas e tradicionalmente ocupadas. Exatamente porque dessa espécie de perdurável relação orgânica entre cada etnia indígena e o seu ainda rústico habitat é que se pode falar de direitos originários. Como também se pode falar de uma cultura tão diferenciada quando geradora de todo um perfil coletivo. Tudo a ser documentado em criteriosos laudos antropológicos, pois a sociedade “pluralista” de que trata o preâmbulo da nossa Constituição é do tipo social genérico, e, por isso mesmo, copiosa o bastante para alcançar as próprias diferenças entre os índios de uma etnia e de outra.
A permanência do modelo peculiarmente contínuo ou intraétnico, mesmo nos casos de etnias lindeiras
93.Esse desabono constitucional a demarcações de cambulhada ou interétnicas se mantém até mesmo na situação em que duas ou mais etnias indígenas se caracterizem pela contigüidade geográfica. Etnias lindeiras ou vizinhas de porta, então, o que propicia um mais freqüente visitar de tribos distintas. Mas ainda assim os marcos geodésicos e as placas sinalizadoras devem separar os espaços interétnicos; ou seja, cada etnia indígena deve saber onde começa e onde termina o espaço de trabalho e de vida que por direito originário lhe cabe com exclusividade (monoetnicamente, reitere-se). Essa é a regra geral a observar, de matriz diretamente constitucional, embora perfeitamente previsível que prolongadas relações amistosas entre etnias aborígines possa gerar, com o passar dos anos, uma condivisão empírica de espaços que em muito dificulta uma precisa fixação de fronteiras interétnicas.
94.Desponta claro, portanto, que o referido conceito fundiariamente extensivo do princípio da proporcionalidade aumenta a possibilidade de aproximação física entre as diferenciadas etnias autóctones. Se tal ocorrer no plano dos fatos, não há como falar de espaços intervalados para legítima ocupação por não-índios, caracterização de terras estaduais devolutas, ou implantação de Municípios. Todavia, entre as próprias etnias nativas a demarcação permanece com seu constitucional formato intraétnico. Uma etnia somente circulando com toda liberdade pelos espaços da outra, na medida em que haja o consentimento daquela cujas terras se façam objeto de visitas.
95. Em síntese, tudo consiste em saber, primeiro, se os índios se isolaram dos não-índios por sua espontânea vontade, criando intervalados espaços que não passam, só por isso, à condição de terras estaduais devolutas, nem se disponibilizam para uma apropriação da espécie privada. Segundo, se os intervalos fundiários apenas separam uma etnia aborígine de outra, situação em que as terras por inteiro são de natureza indígena. Apenas com sua demarcação vincada ao formato intraétnico de que vimos falando.
96.Em palavras outras, se uma terra indígena deixa de confinar com outra, o espaço intermediário que então se forma não é um indiferente jurídico: ele cai sob o regime comum da propriedade privada, ou é automaticamente incorporado aos bens de um certo Estado-membro como terra devoluta, ou se disponibiliza para a criação e instalação de um novo Município. Na primeira hipótese, todo o espaço que separa uma etnia indígena da outra é, em princípio, vocacionado para apropriação a título privado. Daí os seguintes dizeres da Constituição: a) “é garantido o direito de propriedade” (inciso XXII do art. 5º); b) “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: II – propriedade privada”. Já na segunda hipótese, o artigo constitucional a reger as coisas é o de n º 26, com o seu inciso de nº IV, que manda incluir “entre os bens do Estado” “as terras devolutas não compreendidas entre as da União”. E quanto à terceira prefiguração, enfim, aí o dispositivo a aplicar é o § 4º do art. 18 da Constituição, assim escrito: “A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei”.
97.Pois bem, exclusivamente nessa hipótese de não-contigüidade de terras indígenas é que se pode falar de prevalência tanto do princípio federativo quanto da livre iniciativa. Afinal, se, à época do seu descobrimento, o Brasil foi por inteiro das populações indígenas, o fato é que o processo de colonização se deu também pela miscigenação racial e retração de tais populações aborígines. Retração que deve ser contemporaneamente espontânea, pois ali onde a reocupação das terras indígenas, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, somente não ocorreu por efeito do renitente esbulho por parte dos não-índios, é claro que o caso já não será de perda da tradicionalidade da posse nativa. Será de violação aos direitos originários que assistem aos índios, reparável tanto pela via administrativa quanto jurisdicional. Para isso é que servem as regras constitucionais da inalienabilidade e da indisponibilidade das terras indígenas, bem assim a imprescritibilidade dos direitos sobre elas. Regras que se voltam para a proteção de uma posse indígena pretérita, visto que a Constituição mesma é que desqualifica a alegação de direito adquirido e em seu lugar impõe o dever estatal de indenizar os não-índios como instransponível óbice à tentação hermenêutica de se prestigiar o dogma da segurança jurídica em prejuízo dos índios (indenização, todavia, que somente ocorre “quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”, nos precisos termos do comando final do § 6º do art. 231 da Constituição).
98. Avanço no raciocínio para asseverar que, nessa hipotetização de terras indígenas efetivamente lindeiras, já não vale o argumento do risco de uma demarcação contínua que termine por acarretar vazios democráticos ou a não-presença de Estado. E não vale o argumento, porque a não-presença de Estado é de ser imputada a ele mesmo, Estado brasileiro. Não aos índios, que não podem pagar a fatura por uma dívida que não contraíram. Afinal, nada juridicamente impede, mas antes obriga, que o Poder Público brasileiro, sob a liderança institucional da União (nunca é demais repetir), cumpra o seu dever de assistir as populações indígenas. Dever que não se esgota com o ato em si de cada demarcação por etnia, pois ainda passa pela indispensável atuação das nossas Forças Armadas, isolada ou conjuntamente com a Polícia Federal, sempre que em jogo o tema fundamental da integridade territorial do Brasil (principalmente nas denominadas faixas de fronteira).
A perfeita compatibilidade entre faixa de fronteira e terras indígenas
99.Como derradeiro tópico nominado deste voto, afirmamos, sempre com base na Constituição, a serena compatibilidade entre apropriação usufrutuária de terras indígenas e faixa de fronteira. Isto pela consideração inicial de que, ao versar o tema das terras indígenas, a Magna Carta Federal não fez nenhuma ressalva quanto à demarcação abrangente de faixa de fronteira ou nela totalmente situada.
100.Mas não é só. Além de não incluir nenhuma faixa de fronteira entre os bens pertencentes à União, a Constituição ainda deixou expressa a possibilidade de uso e ocupação não-estatal de qualquer delas. Apenas arrematando o seu discurso com a regra de que tal ocupação e uso “serão regulados em lei”, tendo em vista que toda faixa de fronteira é de logo qualificada por ela, Constituição, como “fundamental para defesa do território nacional”. Eis o texto:
“A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei” (§2º do art. 20).
101.Uma dessas possibilidades de uso de faixa de fronteira, por sinal, já vem disciplinada na própria Constituição. Diz respeito às atividades de pesquisa e lavra de recursos minerais e ao aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica, a saber:
“A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas” (§ 1º do art. 176).
102.Não podia ser diferente essa compatibilidade, que apenas retrata o fato de que justamente nas fronteiras terrestres do Brasil é que mais se concentram as nossas populações indígenas, especialmente nas regiões norte e centro-oeste. Concentração contemporânea da descoberta do País, é sabido, assim como por efeito de migrações espontâneas, ou, então, forçadas pela intolerância e perseguição por parte dos não-índios (a espremedura topográfica a que nos referimos no capítulo de nº 61). Seja como for, concentração indígena que se fez e se faz decisiva para a preservação da integridade territorial brasileira (esse elemento da soberania nacional), pois os nossos aborígines, amantes e profundos conhecedores da nossa geografia, sempre souberam se opor com toda eficiência e bravura às tentativas de invasões estrangeiras em nosso País.
103.Realmente, os nossos indígenas sempre se dispuseram a defender a integridade do território brasileiro, ora por si mesmos, ora em articulação com lideranças patrióticas nacionais. O que nos dá a certeza da continuidade dessa colaboração junto às Forças Armadas e à Polícia Federal, esta última no desempenho de sua função constitucional de polícia de fronteiras (inciso III do §1º do art. 144), e, aquelas, no cumprimento do seu mister igualmente constitucional de defesa da Pátria (art. 142, cabeça). Donde escrever, em artigo recente, a atual senadora e ex-ministra do Meio Ambiente, Marina da Silva, também ela uma grande conhecedora da região norte desta nossa Terra de Santa Cruz: “A defesa das nossas fronteiras na Amazônia sempre recebeu grande contribuição das comunidades indígenas. Por exemplo, pela incorporação de seus jovens ao Exército para ações em áreas onde ninguém quer ou sabe ir” (jornal Folha de São Paulo, Caderno A, p. 2, edição de 4 de agosto de 2008). Isto sem deixar de tecer comentários sobre a particular situação do Estado de Roraima, a propósito, justamente, da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, literis: “A população de Roraima não chega a 400 mil habitantes. Para os cerca de 350 mil não-índios há quase 11 milhões de hectares de terras disponíveis, diz estudo do Instituto Socioambiental. Comparando, Pernambuco tem 9,8 milhões de hectares para cerca de 8 milhões de habitantes”.
104. Nesse contexto, longe de se pôr como um ponto de fragilidade estrutural das nossas faixas de fronteiras, a permanente alocação indígena nesses estratégicos espaços em muito facilita e até obriga que as duas citadas instituições de Estado (Forças Armadas e Polícia Federal) se façam também permanentemente presentes com seus postos de vigilância, equipamentos, batalhões, companhias, agentes e tudo o mais que possa viabilizar a mais otimizada parceria entre o Estado e as nossas populações nativas.
105.Conforme dito precedentemente, se o Poder Público se faz ausente em terras indígenas, tal omissão é de ser debitada exclusivamente a ele, Estado, e não aos índios brasileiros. Índios que não podem se opor a essa presença (juridicamente não podem, frise-se) e ainda necessitam dela para a contínua elevação dos seus padrões de segurança, politização, educação, saúde, transporte e demais itens de bem-estar material. Não é por aí, portanto, que se pode falar de abertura de flancos para o tráfico de entorpecentes e drogas afins, nem para o tráfico de armas e exportação ilícita de madeira. Tampouco de perigo para a soberania nacional, senão, quem sabe, como uma espécie de desvio de foco ou cortina de fumaça para minimizar a importância do fato de que empresas e cidadãos estrangeiros é que vêm promovendo a internacionalização fundiária da Amazônia legal, pela crescente aquisição de grandes extensões de terras. A cupidez estrangeira a se aproximar cada vez mais, acrescente-se, das nossas incomparáveis reservas de água doce, biodiversidade e jazidas de urânio, nióbio, ouro, diamante e cassiterita, além petróleo e gás natural (ao menos na franja da divisa do Brasil com a Venezuela).
106.Enfim, quem proíbe o Estado brasileiro, mormente o Estado-União, e mais especificamente ainda o Estado-Forças Armadas e o Estado-Polícia Federal, − quem proíbe o Estado brasileiro, dizia eu, de ocupar o espaço funcional que lhe cabe em terras indígenas? Quem impede o governo brasileiro de responder às ONG’s estrangeiras, e até mesmo à ONU, com toda altivez e em alto e bom som, que neste nosso território somos nós que mandamos? Quem obsta o Estado soberano do Brasil de espalhar pelos quatro cantos do mundo que nenhum outro Estado independente avançou tanto na questão indígena, tutelarmente, como o Estado brasileiro pós Constituição de 1988? E que, portanto, nenhum outro povo tem lições pra nos dar na matéria? Resposta: unicamente ele mesmo, Estado brasileiro, certamente por motivo de uma acanhada interpretação das suas próprias competências constitucionais, no tema, como, por exemplo, a que assiste à União para “assegurar a defesa nacional”, de permeio com a execução dos “serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras” (incisos III e XXII, respectivamente, do art. 21 da Constituição). Despercebidas, talvez, as nossas autoridades, tanto civis quanto militares, do enorme trunfo que é poder conscientizar ainda mais os nossos indígenas, instruí-los (a partir dos conscritos), alertá-los contra a influência malsã de certas ONG’s, mobilizá-los em defesa da soberania nacional e reforçar neles o sentimento de brasilidade que nos irmana a todos. Missão até favorecida pelo fato de serem os nossos índios as primeiras pessoas a revelar devoção pelo nosso País e até hoje dar mostras de conhecerem o seu interior e as suas bordas mais que ninguém. Olho e pálpebra que são de uma terra que lhes dá um multimilenar sustento e que lhes povoa o sonho imemorial de nela viver em paz para todo o sempre.
O caso concreto da demarcação da terra indígena “Raposa Serra do Sol”
107.Chego à derradeira parte deste voto, que outra não pode ser senão o exame do caso concreto. Fazendo-o, enfrento, como de estilo, as questões formais. Isso para de logo me contrapor às alegações de nulidade do processo demarcatório, por suposta agressão às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, pois as duas situações jurídicas ativas foram plenamente exercitadas tanto pelo Estado de Roraima quanto pelos demais atores processuais.
108.No ponto, anoto que os trabalhos de demarcação da área indígena Raposa/Serra do Sol começaram em 1977, data a partir da qual o tema ganhou todas as tintas dos chamados “fatos públicos e notórios”. Daí porque, em acréscimo a essa publicidade natural, o estudo de 1991/1992 foi sinteticamente publicado no diário oficial da União já em abril de 19933, tudo conforme os dizeres do § 7º do art. 2º do Decreto 22/91 e como decorrência do aforismo do tempus regit actum e do princípio processual da instrumentalidade das formas. Tempo mais que suficiente para que todas as partes e demais interessados se habilitassem no procedimento e ofertassem eventuais contraditas, porquanto o primeiro despacho do Ministro da Justiça Nelson Jobim somente se deu em 1996 (despacho de nº 80/96, excluindo da área a demarcar parte das terras atualmente reivindicadas por arrozeiros). Noutros termos, nulidade haveria tão-somente se os interessados requeressem e lhes fossem negados pela Administração Federal seus ingressos no feito, o que jamais ocorreu.
109.O mesmo é de se dizer quanto à participação de qualquer das etnias indígenas da área: Ingarikó, Macuxi, Patamona, Wapichana e Taurepang. Sendo que somente se apresentaram para contribuir com os trabalhos demarcatórios os Makuxi, filiados ao Conselho Indígena de Roraima – CIR4 . Os demais indígenas, tirante os Ingarikó, atuaram diversas vezes nos autos com cartas e petições. Todos forneciam informações e nenhum deles subscreveu o relatório nem o parecer antropológico, elaborados pela antropóloga Maria Guiomar Melo, servidora da FUNAI, e pelo Prof. Paulo Santilli, respectivamente.
110. Também não vejo como causa de nulidade o fato de o advogado responsável pelo parecer jurídico (Felisberto Assunção Damasceno) haver sido indicado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Tal parecer não foi além de sua natureza opinativa e passou pelo crivo da Presidência da FUNAI, da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça e de outras instâncias administrativas em sucessividade processual endógena, como, v.g., o Consultor Jurídico da Casa Civil da Presidência da República. É o que também penso quanto à alegada não participação de membros do grupo oficial de trabalho na confecção do laudo antropológico, bem assim no que tange ao fato de servidores administrativos, devidamente treinados, efetivarem levantamentos de índole meramente censitária de pessoas e bens. Já aqueles que representavam os interesses do Estado de Roraima − também o demonstram os documentos dos autos5 −, tinham eles por função apresentar estudos de que não se desincumbiram por vontade própria. Resultando claro que tal inércia não era mesmo de estancar um proceder administrativo que já se fazia em descompasso com a determinação constitucional de conclusão de todas as demarcações de terras indígenas “no prazo de até cinco anos a partir da promulgação de Constituição” (art. 67 do ADCT).
111. O que importa para o deslinde da questão é que toda a metodologia propriamente antropológica foi observada pelos profissionais que detinham competência para fazê-lo: os antropólogos Maria Guiomar Melo e Paulo Brando Santilli. Este último indicado e permanentemente prestigiado pela Associação Brasileira de Antropologia, de cujos quadros societários faz parte como acatado cientista. Ele foi o responsável pela confecção do parecer antropológico que, a partir dos estudos e levantamentos feitos pela Dra. Maria Guiomar (ela também um destacado membro da Associação Brasileira de Antropologia), serviu de base para os trabalhos demarcatórios em causa, assinando-o solitariamente, como estava autorizado a fazêlo (tanto quanto a Dra. Guiomar). Afinal, é mesmo ao profissional da antropologia que incumbe assinalar os limites geográficos de concreção dos comandos constitucionais em tema de área indígena. O que se lhe mostra impertinente ou estranho é laborar no plano de uma suposta conveniência da busca de um consenso entre partes contrapostas e respectivos interesses, que ele, Paulo Santilli, acertadamente não intentou.
112. De se ver que o Estado de Roraima teve sua participação garantida no grupo de trabalho da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), bastando lembrar que foi prontamente acatada sua indicação de nada menos que sete (07) servidores da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, do Interior e Justiça. Ademais, poderia exercer os seus direitos também sob o mecanismo posto no § 5º do art. 2º do Decreto nº 22/91:
§ 5º. Os órgãos públicos federais, estaduais e municipais devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar, perante o Grupo Técnico, informações sobre a área objeto de estudo, no prazo de trinta dias contados a partir da publicação do ato que constituir o referido grupo.
113.Sigo para realçar que a participação de índios vinculados ao CIR, aliada ao fato de apenas dois antropólogos assinarem suas peças técnicas (cada qual a sua), nada disso habilita o autor popular e seus assistentes a concluírem pela parcialidade do laudo antropológico. Da mesma forma que não se pode impugnar o laudo dos peritos do Juízo, sob a argumentação de que todos eles simpatizavam com as teses defendidas pelo Estado de Roraima, na medida em que publicaram trabalhos de defesa da demarcação em forma de ilhas e revelaram o máximo de preocupação com a mantença da soberania nacional (em especial quanto à fronteira do Brasil com a Venezuela), além de que centraram suas pesquisas no desenvolvimento tecnológico de solos com o fito de demonstrar a possibilidade de maior produtividade em reduzidas dimensões de terra. Não é isso que atesta a parcialidade de quem quer que seja, como não infirma aquilo que verdadeiramente conta para o desate da causa, como reiteradamente vimos enfatizando: as coordenadas diretamente constitucionais sobre o magno tema da demarcação de toda e qualquer terra indígena.
114.Também não se reveste da importância que lhe emprestam o autor popular e seus assistentes a alegação de que houve uma proliferação artificial de malocas, no curso do processo administrativo, dado que tal expansão, além de não provada como artificial, somente se deu após a feitura do parecer antropológico. Também assim a fraude que decorreria da distância de 180 km entre as malocas (famílias extensas) Mapaé e Cedro, pois é fato que tal distanciamento foi medido a partir de uma maloca ingarikó, situada no extremo norte da área, até outra maloca da etnia makuxi, situada mais ao sul dessa mesma área. Sendo que na demonstração desse preciso trajeto foi omitida, sabe-se lá por que, a real presença de nada menos que 81 malocas (segundo mapas constantes dos autos)6. Por fim, ações pretensamente fraudulentas, como o emprego de motoristas como se técnicos agrícolas fossem, mas que se revelaram como argumento equivocado, pois o que se tem como indicativo de fraude não foi senão um erro material: chamar de técnicos agrícolas quem, de fato, era motorista. Por isso mesmo que, logo nas páginas seguintes do laudo, o erro foi reparado: quem era de fato motorista como tal foi nominado7.
115. Mácula processual ou defeito de forma também não se extrai da consideração do crescimento, entre o laudo antropológico e o concreto ato de demarcação, de 1.678.800 ha para 1.747.089 ha (Decreto de 15/04/2005) como o real perímetro da área afinal demarcada. Cuida-se de diferença que os próprios autos sinalizam como natural ou não desarrazoada. É que o técnico que definiu a primeira “marca” o fez em caráter estimativo, tanto assim que até então não comparecera fisicamente ao local e se valera tão só de instrumentos mecânicos de mensuração (planímetro e curvímetro), considerada a definição antropológica da área e apenas de posse de mapa cartográfico. Num segundo momento, porém, profissional diverso já se deslocou pessoalmente até a área a mensurar para então se valer, agora sim, de fontes cartográficas mais precisas e tecnologia atualizada, como sistema de posicionamento global -GPS, imagens de satélite e cálculos computacionais8 . Tudo a rechaçar qualquer eiva de nulidade processual.
116. Encerro este enfrentamento das questões formais para estranhar que, mesmo à face de trabalhos antropológicos revestidos de todos os elementos de uma etno-antropologia e de uma antropologia social e cultural adequada, pois reveladores da interatividade orgânica dos índios com suas terras e consigo mesmos, tudo enlaçado ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à riqueza sentimental das relações uxórias e de parentesco, cosmogonia, artes, coleta, caça, pesca, festas, tradições, crenças, economia, etc., insistam o autor popular e todos que o secundam neste processo em adjetivar tais peças antropológicas como simplesmente genéricas ou abstratas. Supostos repositórios de “guarda-chuvas”, pois serviriam para qualquer demarcação de terra indígena. Afirmação, contudo, que penso derivar do desconhecimento da multifacetada cultura aborígine, como o próprio fato de que muitas etnias são dispersões originárias de um mesmo tronco, inclusive lingüístico e religioso, variando tão-só a forma de expressão ou de produtividade. Casos típicos do “timbó”, planta que se usa como instrumento de pesca; das imbiras, que são armadilhas de caça; da coivara, uma técnica de rotatitividade de solos para plantio; ou da areruia como sincretismo religioso.
117. Muito bem. Superadas as questões formais, avanço para o lado substantivo da demarcação. Não sem antes ressaltar que a presente ação tem por objeto tãosomente a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com extensão a abranger, aproximadamente, 7,5% do território do Estado de Roraima. Fazendo-o, estou convicto de que os autos retratam o seguinte:
I – toda a área referida pela Portaria nº 534/2005, do Ministro de Estado da Justiça, é constituída de terras indígenas, como conceituado pelo § 1º do art. 231 da Constituição Federal. Terras indígenas contíguas ou lindeiras, ainda que ocupadas, em grande parte, indistinta ou misturadamente pelas etnias Ingarikó, Makuxi, Taurepang, Patamona e Wapichana. Indiferenciação, essa, que se evidencia pelos 150 anos sem conflitos armados interétnicos e reforçada pela presença de: a) uma língua franca ou de tronco comum; b) intensas relações de trocas; c) uniões exogâmicas. Mais: cuida-se de terras indígenas ocupadas por forma tradicional e permanente à face do marco temporal do dia 05 de outubro de 1988 conforme demonstração convincentemente feita pelo laudo e parecer antropológicos de fls. 423/548. Todas elas em nada descaracterizadas pelo fato das posses ilegítimas que se deram com maior vigor no século XX, mediante a expulsão dos índios das margens dos rios e igarapés e das terras ao pé das montanhas. Posses ilegítimas, protagonizadas pelos “civilizados [que] ambicionavam para seus gados as pastagens” (Serviço de Proteção ao Índio)9/10;
II – em que pese a demarcação pecar pela falta de observância do vetor monoétnico para a definição dos limites das várias terras indígenas lindeiras que formam toda a área conhecida como Raposa Serra do Sol – tema nem sequer agitado pelas partes e seus assistentes –, de tal circunstância nenhum prejuízo resultou para os índios das cinco etnias em comento. Motivo, aliás, da inexistência da irresignação de nenhum membro individual ou órgão representativo de qualquer das comunidades envolvidas, o que seguramente se explica: a) pelo fato da intensa e antiga miscigenação entre os seus componentes; b) pela concreta dificuldade de precisa identificação da área de movimentação física de cada uma dessas tribos ou etnias autóctones;
III – a extensão da área demarcada é compatível com as coordenadas constitucionais aqui longamente descritas, sobretudo à vista do que vimos chamando de postulado da proporcionalidade extensiva. Valendo enfatizar que a demarcação de terras indígenas não se orienta por critérios rigorosamente matemáticos. Sem falar que não têm préstimo para esse fim critérios não-índios de mensuração, como, por exemplo, cálculo de hectare/habitante e clusters (demarcação por ilhas ou do tipo “queijo suíço”). As próprias características geográficas da região contra-indicam uma demarcação avara ou restritiva, pois a reconhecida infertilidade dos solos (causadora da necessidade da prática da coivara e da pecuária extensiva), os períodos de cheias e a acidentada topografia da região já são em si mesmos um contraponto ao generoso querer objetivo da Constituição em matéria de proteção indígena11;
IV -a desintrusão ou retirada dos não-índios, tão massiva quanto pacificamente, seguida de majoritário reassentamento por parte do governo federal, já sinaliza a irreversibilidade do procedimento. Daí porque o fato da antiguidade de instalação das vilas “Água Fria”, “Socó”, “Vila Pereira” (do Surumu) e “Mutum” não autoriza inferir que a Constituição, por haver proibido o garimpo em terras indígenas, optou pela permanência de qualquer dessas povoações. Ainda mais quando, a partir de 1990, a ocupação não-índia somente se deu em função da chegada dos garimpeiros que foram retirados da Terra Indígena Yanomami durante a operação conhecida por Serra Livre. Nada justifica tal ilação, pois o fato é que já não há como concluir pela viabilidade do retorno do garimpo e da economia privada das fazendas, num atual contexto sócio-econômico-institucional de quase absoluta presença de índios (nas vilas Socó e Água Fria, por ilustração, o que remanesce da presença não-índia se restringe a 1 e 3 ocupações, respectivamente);
V – são nulas as titulações conferidas pelo INCRA, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, assim como inválida é a ocupação da “Fazenda Guanabara”. Se não, veja-se: a) a autarquia federal, baseada em estudo de 1979, constante de procedimento demarcatório inconcluso12 (ausentes portaria declaratória e decreto homologatório), sem qualquer consulta à FUNAI arrecadou terras da União como se devolutas fossem, alienando-as diretamente a particulares; b) sucede que as terras já eram e permanecem indígenas, sendo provisoriamente excluídas dos estudos de 1979 e de 1985 apenas para superar “dificuldades que teria o Órgão Tutelar em demarcar” tal área (dificuldades consistentes em litígios dos índios frente aos nãoíndios13; c) já a titulação da Fazenda Guanabara, alegadamente escorada em sentença com trânsito em julgado, proferida em ação discriminatória, também ela padece de vício insanável. É que a referida ação não cuidou da temática indígena, pois, equivocadamente, partiu do pressuposto de se tratar de terra devoluta. O que se comprova pelo acórdão do TRF da 1ª Região, transitado em julgado, na ação de manutenção de posse que teve por autor o suposto proprietário privado. Acórdão que vocalizou o seguinte: “comprovada através de laudo pericial idôneo a posse indígena, é procedente a oposição para reintegrar a União na posse do bem”14 . Pelo que não podem prosperar as determinações do Despacho nº 80/96, do então Ministro de Estado da Justiça, pois o que somente cabe aos detentores privados dos títulos de propriedade é postular indenização pelas benfeitorias realizadas de boa-fé;.
VI – os rizicultores privados, que passaram a explorar as terras indígenas somente a partir de 1992 (após a promulgação da Lei Fundamental de 1988, destarte), não têm qualquer direito adquirido à respectiva posse. Em primeiro lugar, porque as posses antigas, que supostamente lhes serviram de ponto de partida, são, na verdade, o resultado de inescondível esbulho15 Como sobejamente demonstrado no laudo e parecer antropológicos, os índios foram de lá empurrados, enxotados, escorraçados. Não sem antes opor notória resistência, fato que perdura até hoje. Em segundo lugar, porque a presença dos arrozeiros subtrai dos índios extensas áreas de solo fértil, imprescindíveis às suas (dos autóctones) atividades produtivas, impede o acesso das comunidades indígenas aos rios Surumu e Tacutu e degrada os recursos ambientais necessários ao bem-estar de todos eles, nativos da região.
[sic.]132. Enfim, tudo medido e contado, tudo visto e revisto − sobretudo quanto a cada um dos dezoito dispositivos constitucionais sobre a questão indígena −, voto pela improcedência da ação popular sob julgamento. O que faço para assentar a condição indígena da área demarcada como Raposa/Serra do Sol, em sua totalidade. Pelo que fica revogada a liminar concedida na Ação Cautelar no 2009, devendo-se retirar das terras em causa todos os indivíduos não-índios.”
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou, em 2013, a validade das 19 salvaguardas adotadas no processo que decidiu pela manutenção da demarcação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, mas esclareceu que a decisão tomada na Petição (PET) 3388 não tem efeito vinculante, não se estendendo a outros litígios que envolvam terras indígenas. Os ministros também decidiram que os índios podem realizar suas formas tradicionais de extrativismo mineral, como para a produção de brincos e colares, sem objetivo econômico. O garimpo e a chamada faiscação, com fins comerciais, dependem de autorização expressa do Congresso Nacional.
Em março de 2009, ao concluir o julgamento da PET 3388, a Corte considerou válidos a portaria e o decreto presidencial que homologaram a demarcação da reserva, e listou uma série de condições para a execução da decisão, que seria supervisionada pelo Supremo com apoio do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). Contra a decisão foram apresentados sete embargos de declaração, pedindo esclarecimentos e até mesmo mudanças na decisão.
No que pertine às benfeitorias, reza o art. 517 do CC, aplicável ao caso, que "Ao possuidor de má-fé serão ressarcidas somente as benfeitorias necessárias; mas não lhe assiste o direito de retenção pela importância destas, nem o de levantar as voluptuárias." Entende-se por benfeitorias necessárias aquelas que têm por fim conservar o bem ou evitar que se deteriore (art. 96, § 3º do CC).
Discute-se a questão da posse das terras indígenas.
Aplica-se a disciplina de regência do instituto da posse de terras indígenas regida pela Constituição e a lei nº 6.001/73, observando-se subsidiariamente, o que preconiza a respeito o referido Código Civil de 1916 e o Decreto 9.760/46, que dispõe sobre os bens imóveis da União.
Dos referidos diplomas, é oportuno colacionar a definição civil para a posse de boa-fé, sendo relevante anotar que a mesma restou mantida no vigente Código de 2002:
Código de 1916:
Art. 490. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa, ou do direito possuído.
Parágrafo único. O possuidor em justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.
Art. 491. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.”
Código de 2002:
Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.
Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.
Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.
Outra não é a situação relativa à conceituação da posse de má-fé, que tanto na codificação anterior, quanto na atual, não possuía uma estipulação expressa na lei, mas construída por negação, ou seja, é uma decorrência lógica do sentido negativo das circunstâncias nas quais está ausente a boa-fé.
Cessa, portanto, a boa-fé, no momento em que cessar a ignorância do possuidor relativamente ao vício ou obstáculo que impede a aquisição da posse.
Nesse contexto, é oportuna a lição de Nelson Nery Jr. ao anotar que “(...) o legislador dá maior mobilidade ao intérprete da Lei para que este possa aferir em que casos há má-fé. Perceba-se que a boa ou a má-fé estará relacionada ao momento em que há a aquisição da posse. Se o possuidor posteriormente toma consciência do vício ou obstáculo pode agir de duas formas:1) mantém-se na posse, caso em que estará a mercê (...) das conseqüências da posse de má-fé; ou 2) deixa a posse do objeto...”.