A princípio, os contratos reger-se-ão pela autonomia da vontade das partes, sendo possível a escolha da lei reguladora desses. Porém, em cotejo com o ordenamento jurídico, esse princípio autônomo volitivo encontra entraves por causa da LICC, em seu artigo 9º, parágrafo 2º, no qual aplicar-se-á a lei do local onde foi celebrada a obrigação ou a lei do Estado da parte proponente, de sua residência, criando, desse modo, um vínculo imprescindível com o domicílio das partes. No Brasil, respeitar-se-á a LICC, tornando relevante o devido cuidado e análises dos documentos pré-contratuais, tornando possível a visualização das vantagens e desvantagens, e equilíbrio de obrigações e deveres. Segundo definição de Irineu Strenger:
(...) chamam-se formação do contrato internacional do comércio todas as fases, a partir das tratativas iniciais, que têm por finalidade a colocação de pressupostos do objeto consensual, com força vinculativa, e eficácia jurídica, que prevalece para todos os efeitos posteriores, salvo revogação expressa das partes.
Em contratos internacionais é habitual a realização de negociações prévias, preliminares. Nelas são traçadas as diretrizes do contrato, formas de eventuais reparações ou indenizações, as responsabilidades pré-contratuais e, posteriormente, constituir-se-á o próprio contrato por meio da oferta (ou policitação) e aceitação, constituindo o binômio inglês offer e acceptance. Três fases são relevantes: a formação (ou geração), conclusão (fase de aperfeiçoamento) e a execução (quando se consuma a relação). No decorrer de cada uma das fases supramencionadas exigir-se-ão distintos acordos e manifestações volitivas das partes. Tratativas a respeito da língua a ser usada (pode ser bilíngue, ou os envolvidos convencionarão uma terceira língua para a celebração), a moeda utilizada, a cláusula de eleição de foro em hipóteses de conflitos futuros, decorrentes do próprio negócio jurídico, verificando, rigorosamente, as quais regras de competência internacional dever-se-á obediência, e a certificação de que houve livre vontade dos contratantes são elementos essenciais para a constituição e validade da relação contratual.
Nos contratos internacionais existe a preocupação maior com a prevenção de problemas, por, em sua grande maioria, tratarem de transações de extrema importância entre diferentes países, gerando não só obrigações quanto conflitos concernentes ao tratamento jurídico que será dispensado nas situações conflituosas. Cláusulas de implicações financeiras podem minimizar os efeitos nocivos da variação cambial e flutuações de valor aquisitivo das moedas. Porém, em casos de eventos imprevisíveis ou de quase impossível previsão, pode-se usar cláusulas de força maior ou de hardship, objeto deste presente estudo.
CLÁUSULA HARDSHIP – DEFINIÇÃO E OCORRÊNCIA
Ante o surgimento de fatos imprevistos e excepcionais que tornem o contrato, excessivamente oneroso para uma das partes, os contratos internacionais, sobretudo os de longa duração, devem procurar prever tais possibilidades.
Neste contexto, surgem as chamadas hardship clauses, (o termo “hardship” pode ser livremente traduzidas como “dificuldade”, “adversidade”, “infortúnio” ou “privação”- de fatos e circunstâncias), elaboradas padronizadamente pela Câmara de Comércio Internacional (CII). Desde então, sempre quando for incluída em algum contrato, deve ser referida como ICC Hardship Clause 2003. A inspiração para sua padronização advém dos princípios UNIDROIT (International Institute for the Unification of Private Law) e do art. 1.467 do Código Civil Italiano. Apresenta muita influência das regras de Common Law, principalmente por muita ênfase em tribunais arbitrais e pelo uso da língua inglesa como base da maioria dos contratos internacionais.
Trata-se de uma disposição especial em que as partes poderão demandar uma reorganização do contrato que integram, no caso, um evento inesperado, superveniente, ou, até mesmo, já existente, mas que a parte prejudicada não tivesse ciência, interfira nas condições iniciais acordadas, vindo a alterar o equilíbrio do contrato a ponto de fazer com que uma das partes se submeta a um rigor (hardship) injusto. A comparação ocorre entre o momento de assinatura do acordo e o da execução do contrato.
Pode-se dizer, em outras palavras, que a cláusula de hardship consiste numa norma de revisão, cujo objetivo é a reorganização do equilíbrio contratual, com o propósito de readaptá-lo, preservando a equidade das partes ao novo contexto gerado pela superveniência de fato imprevisível, ou, não sendo possível a reorganização, proceder à resolução do contrato sem onerar excessivamente qualquer das partes. A readequação oriunda desta cláusula não pode ser confundida com a proveniente da adaptação automática, a qual, simplificadamente, troca uma prestação por outra. A hardship exige renegociação dos termos por partes dos contratantes. Orlando Gomes explana:
[...] permite a revisão do contrato se sobrevierem circunstâncias que alterem substancialmente o equilíbrio primitivo das obrigações das partes. Não se trata da aplicação especial da teoria da imprevisão à qual querem reconduzir a referida cláusula, no vezo condenável de transferir mecanicamente os institutos do armário civilístico clássico aos novos contratos comerciais. Trata-se de nova técnica para encontrar uma adequada superveniência de fatos que alterem a economia das partes para manter (...) sob o controle das partes, uma série de controvérsias potenciais e para assegurar da relação de circunstâncias que, segundo os esquemas jurídicos tradicionais, poderiam levar à resolução do contrato
A própria doutrina não é unânime e deixa clara a dificuldade de afastar a “força maior” da cláusula hardship. Isto ocorre, pois, em ambos os casos, a superveniência de um fato transformou as situações originais do contrato, gerando relevante desequilíbrio na relação. Porém, segundo entendimento doutrinário, a força maior acarreta a impossibilidade de cumprimento da obrigação, temporária ou definitivamente. Deste modo, enquanto perdurar a força maior, a realização contratual torna-se simplesmente impraticável. Uma explicação esclarecedora fica a cargo de Luiz Olavo Baptista:
"As circunstâncias, imprevisíveis sempre, e exteriores à vontade das partes, ao contrário do que ocorre com a força maior, não se devem às forças da natureza ou a fatos de terceiros, mas a movimentos do ambiente do contrato, especialmente os da economia.”
A hardship, diversamente, ainda permite a execução contratual, todavia este ato seja de extrema onerosidade ou sem mais utilidade para uma ou ambas as partes. Alguns dos contratos que contêm a cláusula hardship procuram indicar quais são os eventos que a ela podem-se ajustar, outros, unem este rol exemplificativo a uma fórmula genérica, e uma terceira modalidade tão somente apresenta uma disposição geral, de caráter exemplificativo. A semelhança entre as duas figuras não impede que se coadunem em uma única cláusula, desde que sejam arroladas as situações que caracterizarão cada situação.
Em suma, pode-se citar três hipóteses caracterizadoras da hardship: execução contratual física ou juridicamente impossível; permanecendo física e juridicamente possível, se o cumprimento da obrigação tornar-se inatingível ou indesejável, situação em que não existe mais utilidade ou valor na execução contratual e; mesmo física e legalmente possível, a prestação se dê perante excessivo dispêndio, perfazendo-se o desequilíbrio evidente da relação obrigacional. Isto fica claro após os ensinamentos de Maurício C. A. Prado:
A cláusula partiria de uma concepção contemporânea do princípio do rebus sic stantibus, possibilitando a relativização do princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda), em situações em que ocorressem fatos ou eventos que não poderiam, de maneira razoável, ser previstos quando da contratação, e que estivessem fora do controle de ambas as partes. Estes eventos deveriam desequilibrar o contrato, seja pelo aumento dos custos da sua execução, ou ainda pela redução dos valores de sua contraprestação.
Concretizada a hipótese de incidência da cláusula de hardship será processada a readaptação do contrato, por solicitação da parte prejudicada, mediante a aplicação da mencionada regra. Esse requerimento deverá ser feito tão logo a parte tome conhecimento do evento oneroso, de maneira que o não exercício da faculdade de readaptação do contrato, nele prevista, implica automaticamente na continuação de seus efeitos jurídicos, obrigando as partes desde a ocorrência do evento gerador de hardship até o momento da readaptação.
A readaptação terá sua concretização voluntária e consensualmente ou por meio da intervenção de um árbitro, que decidirá conforme os limites da situação jurídica em questão. A eventual recusa de renegociação quando perfeita a incidência da cláusula traz a possibilidade de rescisão do contrato, que, no âmbito jurídico brasileiro, acarreta responsabilidade contratual.
O ordenamento jurídico brasileiro admite a possibilidade de relativização do pacta sunt servanda, desta forma torna-se viável a existência da cláusula e renegociação dos termos do contrato. após o advento do Código Civil de 2002 (especificamente nos seus arts. 474 a 480), tratou da cláusula hardship, até então sem tratamento direto, mesmo que não explicitamente, além do cenário no qual trata do princípio da conservação do contrato, da lesão e revisão do princípio da imprevisibilidade.
Anteriormente, já se encontrava aportava a teoria da imprevisão, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, além do Código de Defesa do Consumidor, com referências a cláusulas abusivas e onerosidade excessiva, e a Lei de Locação. Isto significa dizer que, no caso de litígios provenientes de relações contratuais internacionais, o magistrado ou árbitro brasileiro fará análise da cláusula hardship em questão. A autonomia da vontade aparece no caso das arbitragens, de acordo com o art. 2º, da Lei nº 9.307/96, ficando a cargo das partes disporem sobre arbitragens internas e internacionais. A regra geral vigorante atualmente, mesmo apresentando controvérsias, é de que do local de constituição da obrigação, exceto em casos do uso da expressão “salvo estipulação em contrário”, sairá a lei aplicável ao negócio, conforme art. 9º, caput, da LICC, e art. 435 do Código Civil.
BIBLIOGRAFIA:
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BAPTISTA, Luiz Olavo. O risco nas transações internacionais: problemática jurídica e instrumentos (de defesa). In Revista de Direito Público, nº 66. São Paulo: RT, Abril/Junho 1983, p.270.
CRETELLA NETO, José. Contratos internacionais: cláusulas típicas – Campinas, SP: Millenium Editora, 2011.
CÁRNIO, Thaís Cíntia. Contratos internacionais: teoria e prática – São Paulo: Atlas. 2009
FREDERICO EDUARDO ZENEDIN GLITZ e THAYSA PRADO RICARDO DOS SANTOS. A cláusula de Hardship e o equilíbrio contratual – Uma fórmula de justiça e democracia contratual?. Disponível em: < http://www.fredericoglitz.adv.br/upload/tiny_mce/CAPITULOS_DE_LIVROS/GLITZ__PRADO_-_Clausula_de_hardship_e_equilibrio_contratual.pdf>. Acesso em: 27 de agosto de 2015
GOMES, Orlando. Novíssimas questões de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1984. P. 187 – 188.
PRADO, Maurício C. A. Novas perspectivas do Reconhecimento e Aplicação do Hardship na jurisprudência Arbitral Internacional. Revista Brasileira de Arbitragem. São Paulo, n.2, p. 32-60. Abr./jun. 2004. P. 32.
STRENGER, Irineu. Contratos internacionais do comércio. 4ª ed. São Paulo: LTr, 2003