Introdução
O presente artigo originou-se a partir de um recurso de apelação em uma Ação Civil Pública impetrada pelo Ministério Público Federal em Minas Gerais contra o procedimento de privatização da empresa Aço Minas Gerais S.A.(AÇOMINAS). Segundo o Parquet federal, o referido procedimento foi totalmente irregular por ferir vários ditames constitucionais. No entanto, a Douta Juíza Federal não acatou as razões do órgão ministerial, interpondo este apelação para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Para a melhor compreensão de todos os problemas envolvidos em tal privatização, dividiremos este artigo em seis grandes partes. Na primeira, iremos analisar a questão do desrespeito ao princípio da legalidade no referido procedimento. A seguir, analisaremos a teoria da natureza das coisas, que hoje já admitida por nossos Tribunais Superiores (STJ e STF). Em um terceiro momento, teceremos alguns comentários em relação ao princípio da moralidade administrativa e em que momento a União Federal e seus agentes desviaram-se deste princípio constitucional. A seguir, trataremos do princípio da supremacia do interesse público em relação à privatização da empresa mineira. Por fim, nos dois últimos capítulos, examinaremos o princípio da proporcionalidade e sua relação com o tema que estamos a tratar e a teoria do fato consumado do STJ, teoria esta que deve lançar uma "pá de cal" sobre o problema, sem examinar a racionalidade e a Justiça do procedimento de privatização da Aço Minas Gerais S.A.
No entanto, antes de ferirmos a questão do princípio da legalidade, importante se faz desenvolvermos uma idéia de grande importância para a plena compreensão do problema que passaremos a discutir, qual seja, a noção de paradigma, cunhada por THOMAS KUHN, em obra hoje clássica(KUHN:1997). Este filósofo da Ciência perquiriu os meios pelos quais a ciência evolui, chegando à conclusão de que as evoluções científicas são, na verdade, fruto de grandes rupturas, às quais ele denominou de revoluções. Estas, rompem com o paradigma anterior, começando do zero, com um novo paradigma que satisfaça as novas exigências científicas. Paradigmas, para este autor, são um conjunto de crenças compartilhadas por determinada comunidade científica, conceitos e pre-compreensões que permitem o desenvolvimento da ciência e, em última instância, a própria comunicação em sociedade. Segundo CARVALHO NETTO(CARVALHO NETTO:1996), esta noção apresenta um duplo aspecto. Por um lado, possibilita explicar o desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rupturas, através da tematização e explicitação de aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensões e visões de mundo, consubstanciados no pano-de-fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais, que a um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação, e limitam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepção de nós mesmos e do mundo. Por outro lado, também, continua o autor, padece de óbvias simplificações, que só são válidas na medida em que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas em determinadas sociedades por certos perídos de tempo e em contextos determinados.
Tendo em vista todo o exposto, podemos perceber hoje a existência de três paradigmas constitucionais: o paradigma do Estado de Direito; o do Estado de Bem-Estar Social e o do Estado Democrático de Direito. É bem verdade que a recuperação histórica que aqui esboçaremos é apenas parcial, pois a história é incomensuravelmente mais rica do que qualquer esquema de interpretação que se possa lançar, sendo, portanto, impossível o desenvolvimento de uma ciência histórica sob os cânones das ciências empíricas(VEYNE: 1998). Assim, faremos uma recuperação apenas parcial da história, com o intuito claro de entendermos um pouco melhor as irregularidades cometidas no procedimento de privatização da Aço Minas Gerais S.A.
O primeiro paradigma constitucional de Estado surge em decorrência de lutas sangrentas contra o Antigo Regime e o Absolutismo Monárquico. É o Estado de Direito. Caracterizado pelas máximas do liberalismo econômico, seus defensores entendiam que o Estado tinha sido criado para a realização da felicidade humana, sendo esta alcançada se a sociedade fosse deixada livre para que pudesse se desenvolver. Acreditava-se que apenas através do egoísmo humano poder-se-ia alcançar a felicidade e riqueza para todos(RIALS:1988). É dessa época o surgimento dos primeiros direitos: igualdade, liberdade e propriedade. Desde logo, é bom que se diga que tais direitos eram garantidos apenas formalmente, ou seja, a igualdade era na lei, a propriedade era apenas para poucos e a liberdade era entendida como a possibilidade de se fazer tudo aquilo que a lei não proibisse. O Estado devia apenas assegurar estes direitos e dar aos cidadãos segurança para que a sociedade se desenvolvesse. Como se vê, este modelo não poderia vingar, como de fato, em pouco tempo, foi contestado.
Devido a inúmeras críticas e lutas sociais, principalmente após o surgimento do operariado e do sucesso da Revolução Russa, o modelo liberal foi substituído pelo Estado de Bem-Estar Social, caracterizado, principalmente, pelo surgimento de novos direitos, ditos sociais, tais como saúde, educação, trabalho etc. Se antes o Estado deveria ficar inerte, agora ele é chamado a atuar, já que as pessoas não são iguais na realidade. Os direitos garantidos anteriormente, denominados por BOBBIO(BOBBIO:1992) de direitos de primeira geração, foram reformulados por essa nova série de direitos, denominados pelo italiano de direitos de segunda geração. Agora, igualdade é também material, devendo o Estado intervir quando haja uma grande desigualdade entre as partes; liberdade, é fazer tudo o que a lei permite, já que o Estado deve intervir na sociedade e só pode fazê-lo através de lei; a propriedade agora deve realizar sua função social. Este paradigma funcionou muito bem até meados da década de 1970, quando, com as crises do petróleo, percebeu-se que o modelo era bastante frágil. E, por uma simples razão: tinha ele falhado na sua pretensão maior, que era a de formar cidadãos; este paradigma, segundo seus críticos, formou, no máximo, clientes do Estado, já que este dava tudo e, quem nunca teve alguma coisa, quando passa a usufruir de algo, mesmo que de péssima qualidade, achava um grande avanço e não pedia melhorias. Assim, o Estado Social ofereceu saúde, educação etc., mas de péssima qualidade. E não se pense que esta crítica tenha sido feita apenas aos países de Terceiro Mundo, pois até mesmo na Europa ela foi recorrente.
Tendo em vista tudo isso, começou-se a desenvolver um novo paradigma, o do Estado Democrático de Direito, restando ainda inacabado. Para este novo modelo, todos os direitos anteriores só servem enquanto um meio para se alcançar mais direitos e de melhor qualidade. Em outras palavras, todos os direitos são vistos em um sentido caráter procedimental, não sendo fins em si mesmos. Surgem, a partir de 1970, novos direitos, ditos de terceira geração ou difusos, exatamente porque não pertencem mais a apenas um indivíduo, mas a uma coletividade indeterminada de pessoas, às vezes mesmo, dizendo respeito ao mundo inteiro. Assim, são os direitos relacionados com a ecologia, consumidor, patrimônio histórico e cultural, direitos da mulher, a uma administração pública moralizada e correta, que faça bom uso do dinheiro dos cidadãos etc. Além disso, uma característica central deste paradigma é a necessidade de fundamentação de todos os atos estatais, para que se possa controlar, democraticamente, os governantes de determinado país. E uma reformulação do que seja o público. Se sob a égide dos dois paradigmas anteriores, público era considerado apenas o estatal, para o paradigma do Estado Democrático de Direito, público é bem mais amplo, englobando a sociedade civil organizada, já que muitas vezes o estatal é privado, de acesso de poucos.
É nesse paradigma que surge a Ação Civil Pública, como instrumento processual hábil a controlar os atos lesivos aos direitos difusos ou de terceira geração e, dentre estes, o uso do dinheiro público por parte do Estado. Assim, se o Estado usa de maneira irresponsável suas verbas, causando prejuízos ao erário público, seja por não respeitar os procedimentos legais em um processo de privatização, originando uma subvalorização de seus bens, seja ao favorecer uma empresa em processo de licitação, devem seus agentes ser responsabilizados penal, civil e administrativamente, para que toda uma coletividade não reste lesada, em decorrência da ação inescrupulosa de alguns poucos.
Ora, o caso que a seguir vamos analisar adequa-se muito bem ao já exposto. O Estado, através de seus agentes, cometeu diversas ilegalidades e inconstitucionalidades, quando da realização da privatização da empresa Aço Minas Gerais S.A. A seguir, analisaremos algumas dessas irregularidades, dentre as quais o descumprimento dos princípios constitucionais da legalidade, da moralidade administrativa, da proporcionalidade, da supremacia do interesse público, etc.
1. Do Desrespeito ao Princípio da Legalidade
O Estado Democrático de Direito se alicerça, do ponto de vista orgânico, sobre o primado da legalidade e da divisão de poderes. Legalidade que fornece a medida de contenção e, no viés social, de programação do Estado, controlável pela sociedade e, em particular, pelo Judiciário. Divisão de poderes que conforma um certo sentido de lagalidade, distribuindo tarefas e funções entre os órgãos estatais de soberania.
Ao que aqui nos interessa houve desrespeito aos princípios por ter o Executivo, contra qualquer autorização constitucional, se excedido em seu poder regulamentar no disciplinamento dos passos de concretização da privatização da AÇOMINAS.
Sem intentar ressuscitar a polêmica não resolvida satisfatoriamente da reserva legal para efeito de transferência do controle acionário de empresa estatal no certo paralelismo do art. 37, XIX da Constituição Federal, que lançaria no limbo da ilicitude o Decreto n. 426/92 que incluiu, per se, a Aço Minas Gerais S.A. no Programa Nacional de Privatização, impende reconhecer a ilegalidade do Decreto n. 724/93 que, por sua graça e imperium, inovou na ordem jurídica, ao elastecer o rol de modalidades de pagamento, exaustivamente previsto em lei, designadamente no art. 16 da Lei n. 8.031/90. Por facilidade, cotejemos ambos os enunciados:
"Art. 16 Para o pagamento das alienações previstas no Programa Nacional de Desestatização, poderão ser adotadas as seguintes formas operacionais:
I as instituições financeiras privadas, credoras das empresas depositantes de ações junto ao Fundo Nacional de Desestatização, poderão financiar a venda das ações ou dos bens das empresas submetidas à privatização, mediante a utilização, no todo ou em parte, daqueles créditos;
II os detentores de títulos da dívida interna vencidos, emitidos pelo alienante das ações ou dos bens e que contenham cláusula de coobrigação de pagamento por parte do Tesouro Nacional poderão utilizá-los como forma de quitação de aquisição, caso sejam adquirentes das referidas ações ou bens;
III mediante transferência de titularidade dos depósitos e outros valores retidos junto ao Banco Central do Brasil, em decorrência do Plano de Estabilização Econômica.
Parágrafo único. A utilização das formas operacionais mencionadas neste artigo será aprovada com base nos procedimentos previstos nos arts. 5º e 21 desta lei(Lei 8.031/90)."
"Art. 1º. O art. 16 da Lei nº 8.031, de 12 de abril de 1990, assegura aos titulares de créditos e títulos o direito de utilizá-los na aquisição de bens privatizáveis, não limitando as formas operacionais, as formas de pagamento e os bens, inclusive creditórios, que poderão ser aceitos em permuta daqueles bens(Lei 8.250/91)."
O art. 1º da Lei n. 8.250/91 padece da clareza requisitada a todo texto legal, máxime àquele de pretensão interpretativa. Seria, inclusive como já admitido em doutrina e jurisprudência de países europeus, de ser reconhecida a sua invalidade técnico-jurídica em razão disso. Sem embargo, fazendo-se certa concessão ao ilógico e à atecnia, não há de se vislumbrar no citado dispositivo senão uma dimensão prática, instrumental, às modalidades de pagamento previstas no art. 16 da Lei n. 8.031/90, ali não inovando ou incluindo outras espécies não previstas. De modo que aos titulares de créditos e títulos(digam-se: instituições financeiras privadas, credoras das empresas depositantes de ações junto ao FND art. 16,I; detentores de títulos de dívida interna vencidos, emitidos pelo alienante com cláusula de coobrigação por parte do Tesouro Nacional art. 16, II; e titulares de depósitos e outros valores retidos junto ao Bacen, por força do chamado Plano Collor art. 16, III) continua a se assegurar a utilização de bens privatizáveis, de seus títulos e créditos, não limitando agora as formas operacionais(v.g., por meio físico ou escritural, por endosso ou cessão de crédito), as formas de pagamento(se à vista ou prazo, conquanto que vencidos) e os bens, inclusive creditórios(contrato, cártulas, notas, cédulas de crédito, etc). A mera disposição não criou outro tipo de pagamento, mas apenas "operacionalizou", ou a tanto desejou, as modalidades antes previstas.
No entanto, o art. 45 do Decreto n. 724/93, aí sim, por graça e imperium, ampliou o que a lei restringia. Assim:
"Art. 45. No pagamento do preço de aquisição dos bens referidos no art. 4º, por autorização da comissão diretora:
I a instituição financeira privada, credora de sociedade depositante de ações no Fundo Nacional de Desestatização poderá financiar a venda de ações do capital social ou de elementos do ativo patrimonial da sociedade incluída no Programa Nacional de Desestatização, mediante utilização no todo ou em parte, do respectivo crédito;
II o credor por título emitido em moeda nacional pelo alienante das ações do capital social de sociedade incluída no Programa Nacional de Desestatização, ou de bens, que, garantido pelo Tesouro Nacional, desde que vencido e exigível poderá utilizar, total ou parcialmente, o respectivo crédito;
III o adquirente de participação societária ou de elementos do ativo patrimonial de sociedade incluída no Programa Nacional de Desestatização poderá, no todo ou em parte:
a. utilizar o certificado de privatização, observado o disposto na Lei nº 8.018, de 11 de abril de 1990;
b. adotar outras formas de pagamento definidas em resolução da comissão diretora, inclusive a assunção do controlador; e
c. o titular dos direitos a que se refere o art. 1º da Lei nº 8.250, de 24.10.1991, poderá utilizá-los total ou parcialmente."
O Executivo utilizou-se do argumento de que os arts. 6º, XIV e 28 da Lei n. 8.031/90 atribuiria a ele e à Comissão Diretora competência regulamentar. Certo, a competência regulamentar, não autônoma, subordinada ou simplesmente executiva; jamais originária, independente e inovadora como fez o malsinado Decreto.
Outro ponto problemático no procedimento de privatização da Aço Minas Gerais S.A. diz respeito à admissão de títulos da dívida pública como moeda de pagamento pelas ações da empresa, títulos estes que têm valor muito inferior ao valor pelo qual serão aceitos por ocasião da venda. Na decisão de primeiro grau, a Douta Juíza se manifestou no sentido de que "o credor da dívida pública da União tem o direito de livre dispor de seu crédito, isto é, pode até mesmo destruir os papéis que incorporam seu crédito. Pode também negociá-los a valor inferior ao de face, é direito seu. A compra e venda de títulos públicos no mercado é negócio jurídico estranho à União Federal, pois para ela a obrigação é de adimplir seus débitos, pagando o que se obrigou a pagar". Com todo respeito à Magistrada, entendemos que ela incorreu em equívoco, tendo em vista que a União Federal, quando realiza negócios jurídicos normalmente o faz em nome de terceiros(todo o povo brasileiro) e não como mero particular. Assim, a compra e venda de títulos públicos no mercado não é negócio estranho à União, já que ela defende ou deve defender o interesse do país, devendo adimplir sim seus débitos, mas tendo sempre em vista o interesse público, como corolário do paradigma do Estado Democrático de Direito, insculpido no art. 1º, da Constituição da República. Além do mais, a União, ao admitir títulos da dívida pública como moeda de pagamento pelas ações da empresa, com um valor bem inferior ao valor pelo qual serão aceitos por ocasião da venda, feriu a exigência de atenção à "natureza das coisas".
2. A Teoria da Natureza das Coisas(Natur der Sache)
Por mais que se tente recorrer a um princípio de lealdade a que se veria vinculada a União na obrigação de pagar o valor nominal e encargos de seus débitos, incorporados nos títulos dados em pagamento da AÇOMINAS, não se pode obnubilar a "natureza das coisas"(Natur der Sache). Ocorrem-nos as lições de KARL LARENZ, secundado por RADBRUCH, KAUFFMANN, MÜLLER, HENKEL, ZIPPELLIUS, ENGISCH, MAIHOFFER e até BOBBIO, que propugnam o desenvolvimento do Direito superador da lei por recurso do juiz à realidade do existencial, que "transcende a mera factualidade e que penetra na esfera do que é suscetível de sentido e de valor"(LARENZ:1997). Sua exigência deriva da justiça de tratar igualmente aquilo que é igual e desigualmente aquilo que é desigual tanto no tráfego jurídico-negocial como em relação à responsabilidade jurídico-civil e jurídico-penal. Daí por que, o exemplo é do ex-professor da Universidade de Munique, "da natureza da coisa dinheiro resulta, para a dívida pecuniária, que esta não pode simplesmente equiparar-se a mera obrigação real normal. O devedor de dinheiro está obrigado a proporcionar um valor em dinheiro nominal expresso em cifras, não à entrega de uma determinada mercadoria"(LARENZ:1997). Esse exemplo, por paradoxal, nos remete à "realidade da coisa" chamada mercado. Os "títulos podres", admitidos como moeda de pagamento da privatização, circulavam no mercado por um valor significativamente abaixo de sua expressão facial. Eram chamados de "podres" exatamente por isso e, pelo fato de, em seus vencimentos, ou sofrerem calotes ou serem rolados, jamais quitados, à exceção talvez dos títulos da dívida agrária. Não há que se falar aqui em lealdade ou obrigação ética de a União honrá-los, pois a engenharia da dívida pública, por um lado, se alimenta e, bem ou mal, dá sustentação à política econômica por esse mecanismo; e pelo mesmo mecanismo, por outro lado, especuladores do mercado compram, trocam e vendem os títulos representativos dessas dívidas, mas não há expectativa de virem a receber o valor de face, senão de ganharem com a valorização ou desvalorização relativa desse valor de face de um para outro mês e, às vezes, de um para outro dia, ou até no mesmo dia. Ao interromper esse ciclo, a União proporcionou um enriquecimento sem causa do investidor-especulador em detrimento dos cofres públicos. Em lugar de lealdade, houve transferência de riqueza pública, comum, para o patrimônio privado, em troca de uma redução virtual da dívida interna. Em lugar da "realidade das coisas" do mercado, ainda que sob uma "lógica" complicada, um artifício de sangria do Tesouro Nacional, a face perversa da "privatização do público".
Pode parecer, à primeira vista, que a realidade das coisas estaria no pagamento pontual e integral do título de crédito. Mas isso não se sustenta após uma análise mais detida. O mercado é auto-programável; suas leis muito mais que regulativas, são constitutivas de sua realidade. Essa dinâmica auto-gerativa só pode ser alterada por força exógena e lícita, se houver uma sólida argumentação em seu favor que delucide a exigência imperiosa de preservação do próprio mercado. Jamais sem uma pauta de ponderação de interesses bem formada; nunca, com a "expropriação" de um bem público em prol de reduzidíssima parcela de já privilegiadas pessoas.
É em situações como essa que GUSTAV BOEHMER reconhece a criação judicial do Direito em correção à atitude presunçosa do legislador que intenta moldar o mundo a seus caprichos e não conforme à natureza das coisas(BOEHMER:1952). E que também fez LARENZ valer-se da máxima horaciana "naturam expellas furca tamen usque recurret" para ver o efeito corretivo da jurisprudência dos tribunais ali "onde a regulação legal falseie de modo grosseiro a natureza das coisas"(LARENZ:1997).
E, de fato, a Jurisprudência alemã tem atuado nesse sentido, destacadamente o Tribunal Constitucional Federal(BverfGe 3, 427; 12, 251; 26, 257). Assim também o nosso Supremo Tribunal Federal(HC nº 77.444-RJ, Rel. Min. Néri da Silveira, 28 de abril de 1999) e Superior Tribunal de Justiça(RESP 153155/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 16/03/98, p. 167; RESP 12507/RS, Rel. Min. Athos Carneiro, DJ de 01/02/93, p. 465; RESP 17073/MG, Rel. Min. Claúdio Santos, DJ de 23/11/92, p. 21883).
É em face dessa doutrina que se defende a irregularidade da venda da AÇOMINAS por terem sido admitidas formas de pagamento que contrariam o mercado, seu regular funcionamento, importando a mais prejuízo ao Erário Público. Nesse caldo de ilicitude estão submersos o Decreto n. 724/94 e mesmo o art. 2º da Lei n. 8.018/90.