4. O poder público como garantidor do patrimônio cultural e urbanístico.
Explica Barros (2006) que nos crimes omissivos impróprios (impuros, espúrios ou comissivos por omissão) o núcleo do tipo é uma ação, mas a tipicidade compreende também a conduta daquele que não evitou o resultado, por atuação ativa. A tipicidade consiste na violação do dever jurídico de impedir o resultado. É o chamando non facere.
O dever jurídico, específica o § 2.° do art. 13 do Código Penal Brasileiro, incumbe a quem:
a.) tenha por lei a obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b.) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c.) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
Só pode ser autor de crime aquele que tem o dever jurídico, emanado de uma das três situações acima mencionadas. Trata-se de rol taxativo, que não pode ser ampliado a outras hipóteses ali não contempladas, pois é inadmissível a analogia in malam partem. Convém lembrar, porém, que a flexibilização das alíneas b e c conferem ao magistrado o poder de complementar a tipicidade dos crimes omissivos impróprios. Trata-se, como se vê, de tipos penais abertos (BARROS, 2006).
Chama atenção a argumentação de Rieger (2011), quando questiona o princípio da legalidade e os crimes omissivos impróprios, senão vejamos:
“A responsabilização por um delito omissivo impróprio enseja fundadas dúvidas acerca do respeito ao princípio da legalidade e parece violentar a ideia da interpretação restritiva da lei penal. Isso porque, como se observou, esses delitos não estão expressamente previstos na legislação, advindo a responsabilização do sujeito da simples equiparação como crimes comissivos ou, ainda, da combinação de dispositivos legais (o tipo legal do crime comissivo e a norma de extensão que equipara a omissão à ação). Como consequência disso, condutas inicialmente atípicas ou caracterizadoras de um delito de omissão própria tornam-se crimes omissivos impróprios respondendoomitente como se tivesse agido”.
Nesse particular compartilhamos com o entendimento de Juarez Tavares que salienta que os crimes omissivos impróprios são compatíveis com o princípio da legalidade.
Registra que a solução mais adequada, mais consentânea como o princípio da legalidade, seria, sim, a tipificação expressa, mas observa que tal solução só é admitida de lege ferenda, pois implica a tipificação de diversas condutas. No momento, sem essa alteração legislativa, sem novas tipificações, o autor considera necessário combinar conteúdo da posição de garantia com aquelas exigências formais do art. 13, § 2°, do Código Penal. Afora isso, Juarez Tavares considera imprescindível demonstrar que “[...] o sujeito se encontra em situação real de possibilidade de atender ao dever ou, ainda, quando da ingerência, que a conduta anterior, geradora do perigo para o bem jurídico, tenha ela mesmo violado um dever de cuidado (RIEGER, 2011).
Crime contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural – desabamento parcial de bem tombado pela má conservação [...]Possibilidade de configuração do crime por conduta omissiva de quem tinha o dever de agir – Possibilidade de configuração do crime por conduta omissiva de quem tinha o dever de agir – Inteligência do art. 13, § 2.°, do CP - Responsabilidade penal configurada pela demonstração de ciência da ré de que se tratava de bem tombado e de que precisava de obras de manutenção/reparo[2].
A incidência e efetiva aplicação do Direito Penal, como objeto simbólico, é ferramenta importante na tutela e defesa do patrimônio cultural e do meio ambiente ecologicamente equilibrado, especialmente no que tange aos crimes omissivos (comuns omissões estatais).
O Direito Penal (última razão), é um ramo do Direito, pelas suas características peculiares, que tem a capacidade de movimentar a máquina Estatal, sobretudo na hipótese em estudo, quebrando-se a inércia.
A quantidade de prédios públicos abandonados por todos Brasil é espantosa, sendo que na cidade de Santos vimos os prédios que eram utilizados como terminais no Porto de Santos (hodiernamente tombados), em verdadeiro estado de abandono.
Esse relevante patrimônio cultural e histórico, protegido por tombamento, é um exemplo clássico de que o Estado, garantidor por excelência, abandonou esses prédios, sem qualquer ônus ou punição, desrespeitando os compromissos de preservação ambiental para as presentes e futuras gerações.
No ano de 2006 (há quase dez anos atrás), foi firmado o contrato n.º DP 41/2006 para a obra de execução dos serviços de restauração do armazém n.º 4 do Centro administrativo integrado do Porto de Santos, no valor de R$ 2.118.798,67 (dois milhões cento e dezoito mil setecentos e noventa e oito reais e sessenta e sete centavos), porém, ao que se observa, com muito pesar é apenas a incidência do crime por omissão contra o meio ambiente.
O Poder Público, na questão que estamos tratando, é o garantidor por excelência, nas hipóteses taxativas descritas na lei – todavia, o crime omissivo parece invisível aos olhos da Administração.
5.Crimes comissivos por omissão na tutela do patrimônio cultural e urbanístico.
Segundo se ensina (MANTOVANI apud RIEGER 2011), enquanto o direito penal da ação reprime o mal, o direito penal da omissão busca, persegue, o bem.
Para conferir dignidade dogmática ao estudo proposto estabelecemos algumas premissas essenciais: a.) por força de lei, o Estado é garantidor por excelência, nos termos do art. 13, § 2.°, do Código Penal; b.) limitando-se, ao caso de bens especialmente protegidos; c.) apontamos o tombamento como bem especialmente protegido por lei, para restringir o estudo; d.) especificamos que o Estado comumente falha com o dever garantia; e.) observamos que as omissões estatais encontram sanções em matéria ambiental penal, por falta de suporte normativo; f.) defenderemos a integração do art. 13, § 2.º, do Código Penal aos tipos descritos nos artigos 62 até 65 da Lei n.° 9.065/98, como forma de tutela penal ambiental, solucionado a questão dos crimes comissivos por omissão contra o patrimônio cultural.
Quando o crime é doloso (eventual ou alternativo), as soluções jurídicas possíveis estão diretamente lançadas no corpo dessa norma; o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, inclusive o proprietário do bem especialmente protegido.
A questão apresenta-se complexa quando o delito é omissivo.
Destruir (arruimar, demolir, assolar); inutilizar (tornar inútil, imprestável); e, deteriorar (estragar, corromper, desfigurar) –são tipos autoexplicativos, e, que pressupõe uma conduta ativa.[3]
Quando um desses verbos típicos se conjugam através de uma conduta omissiva, o texto legal, que transcrevemos, silencia a respeito. Salvo, na hipótese de interpretação conjunta com o art. 13 § 2°, do Código Penal, onde, o Ente Estatal, garantidor, não poderá justificar seu estado teatral, e, efetivamente será responsabilizado pelo non facere[4],respondendo, como se tivesse feito, segundo a teoria-normativa da figura do garantidor[5].
Explicam Vladir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas que alteração, consiste na modificação ou desfiguração da aparência, do aspecto ou da estrutura, consistente na sua composição, de edifício ou local protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida. Esta última modalidade constitui uma forma qualificada de desobediência, pressupondo que o agente tenha obtido a autorização para alterar a feição ou estrutura da edificação ou local protegido e não tenha obedecido às regras impostas (FREITAS; FREITAS, 2006) [6]
Nenhum imóvel tombado, sob a tutela do Estado, na especial condição de garantidor, poderá ter alterado seu aspecto ou estrutura, sob a ótica do dolo, vontade livre e consciente de fazer a questão mostra-se simples. Todavia, quando enfrentada sob a vertente do crime comissivo por omissão, iniciam-se as controvérsias.
Se ocorrer a alteração de aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido, sem a autorização judicial, aquele que realizou a ação de alterar responderá pelo ilícito. E quando, essa alteração passa a ocorrer em razão da omissão. Verifica-se, com clareza, que o tipo penal em cotejo silencia completamente nesse particular.
Imaginemos dois exemplos, um nacional e outro internacional. O Estádio do Pacaembu (tombado em 1998), terá sua fachada alterada em razão da poluição de São Paulo, pois a chuva ácida e a ação de sólidos suspensos no ar, alteram a cor do concreto armado, danificando, por conseguinte, seu aspecto original. O exemplo dado encontra paralelo no processo do Taj Mahal na Índia, aonde a quantidade de indústrias que utilizavam como combustível a queima de carvão modificavam o aspecto daquele monumento, alterando a coloração da fachada de mármore branco brilhante. Foi necessário um grandioso processo para fechar e deslocar a maior parte daquelas indústrias para fora do triangulo do Taj, há 80 (oitenta) quilômetros de distância.[7]
Sendo assim, qualquer omissão do Garantidor, que venha a redundar em alteração em aspecto ou estrutura de local especialmente protegido, responderá penalmente conjugando a figura típica do art. 63, da Lei n.° 9.065/1998 cumulado com o postulado normativo integrativo do art. 13, § 2°, do Código Penal[8].
Extremamente importe o enfrentamento dessa questão, face aos postulados constitucionais, infraconstitucionais e os mecanismos de tutela penal ambiental.
Os abusos são incontáveis. Os grandes centros, em sua maioria, cresceram sem uma planificação mais séria, com reduzidas áreas verdes e total desprezo pelas consequências de tal conduta no homem. As cidades litorâneas receberam, e ainda recebem em alguns casos, grandes edifícios sem a necessária estrutura e até mesmo sem sistema de esgoto. Cidades serranas veem condomínios em total desacordo com o local. Tudo é feito em nome de um discutível progresso e com o inconfessado objetivo do lucro a qualquer custo (FREITAS; FREITAS, 2006).
Por todo o Brasil, assistimos a expansão e invasão de conglomerados humanos (formação de favelas)em áreas de especial proteção, como sítios arqueológicos de interesse paleontológico (animais e vegetais de épocas pretéritas – fósseis), geológico (conservação do subsolo e das reservas naturais), e, áreas de preservação permanente.
A perplexidade reside no fato de que a fiscalização e ação estatal agem no sentido de responsabilizar penalmente indivíduo por indivíduo.
O dispositivo em cotejo silencia completamente no que tange a efetivação da figura do crime comissivo por omissão por parte do garantidor, configurando-se somente na hipótese da aplicação da figura equiparada.
A bem da verdade, o Estado, garantidor, quando se omite, e, ocorre a promoção de construção em solo não edificável, ou no seu entorno (formação ou não de conglomerados humanos - favelas), incide no art. 64, da Lei n.° 9.065/98 cumulado com o art. 13, § 2.°, do Código Penal.
Por essa quadra, imperioso destacar, que o estudo apresentado, não busca ampliar e desnaturar a interpretação das normas penais. Ocorre que o Direito Ambiental ostenta tratamento jurídico diverso, pois trata de princípios e normas metaindividuais, portanto, a sua não observância, sobretudo na comum omissão Estatal, trará reflexos para a presente e para as futuras gerações.
Portanto, no que tange a essa sensível área, correta a aplicação da figura do garantidor (CP, art. 13, § 2.°), pois somente através desse postulado normativo integrador, poderemos preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Alerta para o fato de que infelizmente, nem sempre o Estado conjuga, com igual ênfase, atuação legislativa e implementadora. É comum o Poder Público legislar, não para aplicar, mas simplesmente para aplacar, sem resolver, a insatisfação social (BENJAMIN, 2003). Parte da doutrina não comunga com nosso entendimento, porém verifica-se claramente que o Estado não criará normas que minimamente poderão criar ônus (processo-crime), ao Administrador Público, ainda que o resultado seja favorável ao ideário constitucional. É o que chama de Estado teatral.
Rieger (2011), sustenta posição contrária, salientando que com tantas alterações na relação entre homem e natureza, os problemas, em sede de ofensividade, evidenciaram-se: muitas condutas tipificadas na lei ambiental consistem na atuação sem autorização, sem licença ou em desacordo com determinações legais. Ou seja: não é incomum que se busque a responsabilização criminal pela simples inobservância de licenças, determinações legais ou regulamentares, e não pela prática de um ato efetivamente perigoso ou danoso ao meio ambiente. Nesse contexto, verifica-se a pretensão de usar o direito penal como um reforço à organização administrativa e surgem delitos de mera desobediência: nesta forma de ver, o núcleo do crime está em normas administrativas. Assim, o Direito Penal perde sua identidade, passando a ser manipulado exclusivamente em razão de seu caráter simbólico e estigmatizante.