I - Introdução
Este artigo tem a finalidade de dissecar a Lei Ordinária 12.830/13, publicada no Diário Oficial da União em 21 de junho de 2013, que regulamentou a investigação policial presidida pelo Delegado de Polícia, função originariamente prevista na Constituição da República, no Capítulo atinente à Segurança Pública.
II – A Investigação
Antes de adentramos no objeto de estudo, relativo aos impactos trazidos pela Lei 12.830/13, é importante trazer à baila o real significado da Investigação, definida pelo Dicionário Aurélio como:
“1. Indagação ou pesquisa que se faz buscando, examinando e interrogando”;
“2. Inquirição de testemunhas”.
Afora o significado trazido pelo dicionário, que não traduz sobremaneira a essência da expressão, a Investigação pode ser definida em sentido amplo como o procedimento, de atribuição da Polícia Civil, Polícia Militar, Ministério Público e outras instituições, que visa à obtenção de elementos concretos quanto à autoria e materialidade de infrações penais ou administrativas.
Neste ponto vale a primeira observação, pois conforme exposto acima, a Investigação pode ser interpretada e conceituada em sentido amplo ou estrito, de modo que no aspecto lato, abrange o trabalho investigativo realizado por quaisquer Instituições que possuam atribuição para tanto, a exemplo da Polícia Militar, que pode investigar tão somente infrações penais de caráter militar, conforme preceitua o art. 144, §4°, parte final, da Constituição Federal, abaixo transcrito:
“Às polícias civis, dirigidas por Delegados de Polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares” (grifo nosso)
Não perderemos o foco do objeto deste artigo elencando todas as demais Instituições que, assim como a Polícia Militar, possuem competência para realizar certos tipos de investigação, mas é importante frisar que, a Investigação stricto sensu, relacionada à apuração de infrações penais comuns é de atribuição da Polícia Civil e da Polícia Federal, que exercem por mandamento constitucional as atividades de polícia judiciária.
III – A Polícia Investigativa e a Polícia Judiciária
Alguns autores, a exemplo de Renato Brasileiro de Lima, defendem que a Constituição Federal diferenciou as atividades relacionadas ao exercício de polícia investigativa e as funções de polícia judiciária, asseverando que: “por funções de polícia investigativa devem ser compreendidas as atribuições ligadas à colheita de elementos informativos quanto à autoria e materialidade das infrações penais (...) a expressão polícia judiciária está relacionada às atribuições de auxiliar o Poder Judiciário, cumprindo as ordens judiciárias relativas à execução de mandados de prisão, busca e apreensão, condução coercitiva de testemunhas, etc.”.
No entanto, em que pese tais argumentos, é majoritário o entendimento de que a expressão polícia judiciária abarca o exercício das atividades relacionadas à apuração de infrações penais, não somente atribuições de auxílio ao Poder Judiciário.
Tal conclusão é feita a partir da leitura do texto da Súmula Vinculante n° 14 do Supremo Tribunal Federal: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa” (grifo nosso).
A redação do enunciado da Súmula Vinculante deixa claro que as funções de polícia judiciária e investigativa se confundem, pois utilizadas dentro do mesmo contexto, conforme bem exposto acima.
III - Atribuição constitucional para a investigação de infrações penais e a atuação do Ministério Público para a colheita de elementos de prova
Nunca é demais ressaltar que é a própria Constituição Federal que confere à Polícia Civil e Federal, através dos Delegados de Polícia que presidirão os Inquéritos Policiais, a atribuição originária para investigar e colher na fase inquisitorial os elementos de prova relacionados à autoria e materialidade de infrações penais, conforme pressupõe o §4° do artigo 144, da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, anteriormente exposto neste trabalho.
Fato é que com o passar dos anos e o alarmante crescimento da criminalidade na nossa sociedade, alguns autores passaram a defender a legitimidade do Ministério Público para realizar investigações relacionadas à prática de infrações penais, sob o argumento de que tal órgão, por titularizar a ação penal poderia colher autonomamente os elementos de prova e formar, através de seu representante o convencimento acerca da necessidade ou não do oferecimento da peça acusatória.
Tal questão foi debatida pelo Supremo Tribunal Federal, que decidiu em sede de repercussão geral, no julgamento do Recurso Extraordinário 593727, que o Ministério Público possui poderes de investigação, desde que se respeite o princípio constitucional da razoável duração do processo, aplicável aos procedimentos administrativos, inclusive de natureza investigatória e que sejam garantidos todos os direitos constitucionais do investigado.
Aludida decisão, proferida pelo órgão pleno do nosso Tribunal Maior, acabou por alargar a atuação do Parquet, conferindo-lhe titularidade anteriormente concedida apenas às Polícias Civil e Federal pelo artigo 144 da Constituição Federal, mas possível graças ao caráter exemplificativo do rol de suas atribuições, previsto no artigo 129 da Carta Magna.
De todo modo, o teor da decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal não pode ser interpretado como desvalorização do trabalho investigativo realizado pela Polícia Civil e Federal, que contribuem diariamente para a aplicação da lei penal, concedendo subsídios valiosos à formação da opinio delicti pelo Ministério Público. Porém, é inegável que dentro de um Estado Democrático de Direito as instituições públicas devem trabalhar conjuntamente, em prol da coletividade, deixando de lado eventuais brigas institucionais, que em nada contribuem para a manutenção da paz e preservação da segurança pública.
Obviamente que aludido entendimento do Supremo Tribunal Federal não pode ser utilizado para que outros órgãos com atribuições distintas, mas não menos valiosas, como a Polícia Militar, pleiteiem igual tratamento e passem a investigar infrações penais comuns, sob pena de violação de diversos artigos constitucionais, a exemplo daqueles que compõem o Título relacionado à Segurança Pública.
Inclusive, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou neste sentido quando do julgamento da ADI 1570/DF:
“Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e §2°; e 144, §1°, I e IV, e §4°). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia”.
Portanto, não há que se falar em interpretação extensiva do entendimento do Supremo Tribunal Federal a demais instituições, devendo ser respeitada a vontade do constituinte, que separou voluntariamente as funções que seriam exercidas pelos órgãos integrantes do quadro da Segurança Pública. No mesmo sentido, interpretação distinta aniquilaria o Princípio da Justeza ou Conformidade Funcional, definido por Marcelo Novelino como aquele que “impede que os órgãos encarregados da interpretação da Constituição, sobretudo o Tribunal Constitucional, cheguem a um resultado contrário ao esquema organizatório-funcional estabelecido por ela”.
IV – Os reflexos trazidos pela Lei 12.830/13 à investigação policial conduzida pelo Delegado de Polícia
O advento da Lei 12.830/13 consolidou importantes aspectos relacionados à investigação conduzida pelo Delegado de Polícia, além de conferir ao dirigente da Polícia Civil importantes instrumentos, voltados justamente a garantir um procedimento investigatório eficiente, que atinja o objetivo de amealhar elementos suficientes de autoria e prova da materialidade da infração penal averiguada.
Neste ponto, vale um breve esclarecimento com relação ao procedimento investigatório que é conduzido pelo Delegado de Polícia, o Inquérito Policial, com natureza inquisitiva e que deve obedecer obrigatoriamente princípios constitucionais, dentre os quais o da razoável duração do processo, pois não é admissível que um sujeito seja investigado por prazo indeterminado, circunstância que feriria a sua dignidade, valor supremo que norteia a nossa Constituição Federal.
Nas palavras do professor Francisco Sannini Neto, o Inquérito Policial:
“É instrumento praticamente indispensável para uma persecução penal que deve ser inteiramente pautada pelos valores inseridos na Constituição da República, não podendo mais o investigado ser tratado como objeto de direito, mas, sim, como sujeito de direitos, o que apenas reforça a aplicação dos princípios do contraditório e da ampla defesa nesta fase, sempre que possível e que não for prejudicial às investigações”.
Além das inovações trazidas pela Lei 12.830/13, que serão estudadas logo adiante, aludido diploma legal concretizou e explicitou garantias e características, que anteriormente eram reconhecidas apenas doutrinariamente, a exemplo da natureza jurídica das funções exercidas pelo Delegado de Polícia, essenciais e exclusivas do Estado, que alçam o dirigente máximo da Polícia Civil ao mesmo patamar das demais carreiras jurídicas.
A consequência deste reconhecimento, anteriormente feito pela própria Constituição Paulista, é que o cargo de Delegado de Polícia deve receber tratamento análogo àquele conferido às demais carreiras jurídicas do Estado, exemplo disso é o teor do art. 3° da lei, que assevera ser o cargo privativo de bacharel em Direito, que deve receber o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública, do Ministério Público e advogados.
Afora a consolidação da natureza jurídica das funções exercidas pelo Delegado de Polícia, é facilmente perceptível no parágrafo 1° do art. 2° da Lei a intenção do legislador esclarecer de maneira definitiva que cabe exclusivamente ao dirigente máximo da Polícia Civil a condução do Inquérito Policial, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, materialidade e autoria das infrações penais.
No parágrafo 2° do art. 2° da lei se observa talvez o principal instrumento trazido por este importante diploma legal, o poder de requisição, uma vez que cabe ao Delegado de Polícia, independentemente de autorização judicial, a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.
Esta inovação é extremamente importante, salutar e traz benefícios à investigação, notadamente em virtude da celeridade conferida ao Inquérito Policial, pois o Delegado de Polícia pode a partir de então requisitar documentos e dados diretamente das empresas públicas e privadas, independentemente de autorização judicial. Obviamente que em determinadas hipóteses se mostra imprescindível a obtenção de autorização judicial, porém estas situações se restringem a casos excepcionalíssimos, que se inserem na chamada “cláusula de reserva legal”.
Outra inovação trazida pela “Lei do Delegado de Polícia” se relaciona à impossibilidade de avocação ou redistribuição do Inquérito Policial em curso pelo seu superior hierárquico. Tal previsão visa garantir a lisura na condução do Inquérito Policial, bem como a independência do Delegado de Polícia no que se refere à tomada de decisões no curso das investigações, permanecendo a salvo de ingerências externas e livre para decidir as diligências a serem realizadas.
Esta preocupação do legislador também é perceptível na redação do parágrafo quinto do art. 2° da Lei, que proíbe a remoção arbitrária do Delegado de Polícia, exigindo para tanto fundamentação idônea, circunstância que confere ao chefe máximo da Polícia Civil a estabilidade necessária ao exercício livre de suas funções.
Por fim, mas não menos importante, é a disposição constante no parágrafo sexto do art. 2° da Lei, que trata do Indiciamento, ato privativo do Delegado de Polícia, que deve ser precedido de ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.
Acerca do Indiciamento, nas palavras de Rafael Francisco Marcondes de Moraes:
“É o ato pelo qual o Delegado de Polícia manifesta a sua convicção jurídica motivada ao imputar a uma pessoa a condição de provável autor ou partícipe da infração penal investigada no Inquérito Policial”.
É importante destacar que os nossos Tribunais Superiores, nos julgamentos dos recursos STJ RHC n° 47.984/SP e STF HC n° 115015, reiteraram que cabe exclusivamente ao Delegado de Polícia a decisão sobreo indiciamento do averiguado, sendo descabida a requisição endereçada ao dirigente máximo da Polícia Civil oriunda do membro do Ministério Público ou até mesmo da Autoridade Judiciária.
Certamente tais entendimentos levaram em consideração justamente o fato de que cabe ao Delegado de Polícia decidir pelo indiciamento, que se funda em suas percepções e tirocínio na condução do Inquérito Policial, sendo livre de qualquer tipo de coação no que se refere à tomada desta importante decisão, que acaba por indicar a pessoa sob a qual recaem indícios veementes da prática da infração penal investigada.
Diante do exposto, verifica-se que a Lei 12.830/13 trouxe importantes instrumentos e garantias ao Delegado de Polícia, titular do Inquérito Policial, que contribuem para uma investigação célere e eficaz, que deve respeito à dignidade da pessoa humana, em estrita obediência ao Estado Democrático de Direito. Além disso, os reconhecimentos estampados no diploma legal conferem a necessária valorização ao dirigente máximo da Polícia Civil, responsável pelo exercício de funções que são essenciais à Justiça e à correta aplicação da lei penal.
BIBLIOGRAFIA
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Bahia: Juspodvm, 2014, 2° ed.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2009, 3° ed.
SANNINI NETO, Francisco. Inquérito policial: contraditório e garantismo. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3544, 15 mar 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/23935>. Acesso em 25 nov 2015.
MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Indiciamento na investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3849, 14jan 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/26390>. Acesso em: 25 nov 2015.