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Marco civil da internet: uma lei sem conteúdo normativo?

Agenda 22/12/2015 às 10:19

Embora se tenha comemorado a aprovação da Lei 12.965/14, por supostamente as demais normas jurídicas vigentes no Brasil não terem aplicação nas relações sociais na Internet, esta lei apresenta poucas inovações e muitas insuficiências de cunho jurídico.

1 - A Internet e as transformações da convivência humana

No prefácio de seu livro intitulado “A condição humana”, Hannah Arendt expressou seu espanto com a colocação de um satélite artificial na órbita terrestre, porque esse fato representava a permanência dos humanos na “sublime companhia” dos astros, pela libertação dos limites terrenos, ao mesmo tempo em que tal conquista só teria sido possível por força da Guerra Fria, o que implicava a tomada de decisões políticas em assuntos científicos.[1] Por causa desse mesmo conflito, desenvolveu-se naquela época outra criação humana, então desconhecida da citada filósofa, que modificou os limites do mundo sem precisar sair do planeta: a Internet. Criada para fins militares nos Estados Unidos devido ao temor de que a centralização das informações de uma rede de computadores pudesse resultar a perda total dos dados, a Internet caracteriza-se pela descentralização das informações pelos diversos computadores conectados, de modo que, em caso de pane, apenas parte dos dados é perdida e a rede continua a funcionar em caso de ataques ou de problemas técnicos. Em 1995, franqueou-se o acesso à rede para toda e qualquer pessoa, no contexto da globalização intensificada com o fim da União Soviética em 1991.[2]

Em menos de vinte anos de uso comercial, a Internet modificou diversos aspectos da convivência humana. O principal deles foi a ampliação do conhecimento e do acesso à cultura. Tomando apenas por base os cinquenta anos anteriores à abertura da Internet, as informações difundiam-se pelos livros impressos. As pesquisas escolares eram realizadas em enciclopédias e almanaques, disponíveis, respectivamente, em bibliotecas e bancas de jornais. Na Internet, esses materiais logo perderam espaço para as homepages com seus reduzidíssimos custos de divulgação das informações. Pela facilidade do acesso em qualquer hora e lugar, a velocidade da transmissão do conhecimento aumentou quase ao infinito. De igual modo, os jornais impressos, que apresentavam defasagem de tempo na transmissão das notícias de aproximadamente um dia, assim como as revistas, com defasagens de uma semana a um mês, foram reinventados, mediante edições em tempo real, o que fez da Internet concorrente feroz do rádio e da televisão. Quanto aos livros, cresceu o número de textos que substituíram o suporte material em papel pelas telas dos computadores, tablets e similares. Ademais, a disponibilização de obras raras escaneadas, esquecidas nas estantes das grandes bibliotecas, gerou novas perspectivas de pesquisa e de conhecimento histórico, sobretudo nas ciências sociais.

Isso não significa, contudo, que o conhecimento melhorou: a plena liberdade de difusão de informações e opiniões exige rigor na seleção e síntese das informações corretas e das incorretas, o que era feito pelos redatores das enciclopédias. Com isso, a arquitetura descentralizada da Internet concorreu para a nova visão acerca do conhecimento, baseada no acentrismo, na historicidade e na heterogeneidade. Como explicou Nilson José Machado,[3] o acentrismo significa que o conhecimento sobre determinado assunto não está reunido em um ponto, mas está distribuído por toda a parte. Não existem pontos de partida obrigatórios ou caminhos a serem seguidos: a pesquisa tornou-se transdisciplinar. Em termos de historicidade, a facilidade de difusão de informações permite que a atualização seja muito rápida, defasando-se os conhecimentos em pouco tempo. Por fim, a heterogeneidade desfragmentou o conhecimento, evitando-se o empobrecimento dos conteúdos pela busca da uniformização, departamentalização e especialização.

Modificações ocorreram nos sistemas de proteção da propriedade intelectual e dos direitos autorais. Era comum entre as pessoas a oferta de CDs de presente nos aniversários e demais datas comemorativas. Os artistas recebiam prêmios pela quantidade de discos vendidos. Com a Internet, a facilidade de acesso aos arquivos digitais com tais gravações praticamente acabou com o mercado fonográfico tradicional. As receitas dos músicos voltam-se agora, desesperadamente, para a arrecadação pela execução comercial no rádio, na televisão e nas festas, bem como pelos cachês dos shows. A premiação de determinado artista dar-se-á pelo número de acessos à sua música. O mesmo se diga dos filmes, que estão migrando dos DVDs para a rede. Por outro lado, a Internet, potencializou o plágio, que é a apropriação indevida de uma ideia como sua, assim como a contrafação, que é a reprodução ilegal da propriedade intelectual, tal como ocorre com as músicas e os softwares aplicativos para computadores.

Mais um aspecto sofreu transformações pelo advento da Internet: as relações interpessoais. Antes havia o hábito de escrever longas cartas, postá-las nos correios e aguardar o seu recebimento. A Internet ocupou o espaço desses serviços tradicionais. Gratuita e imediatamente, e-mails são escritos em maior quantidade, porém, cada vez mais curtos. A telefonia migrou para a Internet e hoje é possível a realização de videoconferências, economizando tempo e recursos com viagens, inclusive para manter contato com parentes em localidades distantes. Os contatos físicos entre as pessoas ganharam concorrência dos contatos virtuais. As primitivas salas de bate-papo foram o primeiro espaço para a ampliação de relacionamentos. Popularizaram-se as redes sociais, nas quais as pessoas querem ver e ser vistas, conversando o tempo todo à distância. O aperfeiçoamento tecnológico de câmeras digitais e de telefones celulares permitiu a divulgação de todos os tipos de vídeos. Noutro aspecto, o teletrabalho vem ganhando maior número de adeptos, porque diversas atividades de natureza intelectual, realizadas nos computadores das empresas, podem ser igualmente realizadas nos computadores domésticos. A troca de informações entre empregadores e empregados pode ser feita pela rede. As próprias atividades comerciais foram modificadas pela Internet. O comércio era realizado em lojas físicas e a contratação a distância dava-se por revendedores autônomos. Agora as lojas são também virtuais. Os contratos entre ausentes do Código Civil ganharam importância. Sites especializados permitem a pesquisa imediata dos menores preços, reduzindo a quase zero os custos de transação em termos de descoberta de informações relevantes. Os serviços bancários foram ampliados por meio dos Internet bankings, com grande economia de tempo para quem os usa. No mesmo sentido, diversos serviços públicos estão sendo prestados pela Internet, contribuindo para a redução da burocracia, e pela formação de uma e-democracia.

            Retomando o pensamento de Hannah Arendt, a vida em sociedade fez surgir esferas de relacionamento do ser humano, as quais se transformaram com o passar dos séculos. Na Antiguidade, de um lado, havia a esfera pública, a qual, na Grécia, era a esfera da liberdade e da política, acessível a poucos, mas quem dela fazia parte, era considerado igual, por conviverem no mesmo espaço, bem como poderem ser vistos e ouvidos por todos. De outro lado, havia a esfera privada, na qual várias pessoas permaneciam afastadas de determinados relacionamentos sociais, impedidas de realizar ações mais duradouras que a duração da própria vida. Não pertenciam ao corpo político, não tinham propriedades que lhe permitiriam a liberdade de participação na esfera pública. Viviam como se não existissem. No final da Idade Moderna, surgiu a esfera social, que diluiu e avançou sobre os antigos domínios das esferas pública e privada. A esfera privada tornou-se a esfera da intimidade, espaço do qual o indivíduo tenta se proteger da sociedade a qual pertence, buscando não ser visto nem ouvido. Tarefas ligadas à própria sobrevivência, antes pertencentes à esfera privada, foram transferidas pela sociedade para a esfera social. Assim, todos foram reunidos na companhia recíproca e surgiram as sociedades de operários e de assalariados, na qual todos participam para sobreviver. Inclusive, as ações das pessoas na esfera pública tornaram-se comportamentos na esfera social.

A Internet transformou as distinções entre esses espaços. Sendo possível acessar a rede de qualquer lugar e a qualquer hora do dia, permite-se a atuação na esfera social, ser visto e ouvido por todos, sem o necessário contato presencial para o estabelecimento dessas relações. Dessa forma, surge uma terceira esfera: a esfera virtual, em que a pessoa se apresenta na rede sem estar presente. O trabalho pode ser realizado socialmente com os trabalhadores em seus lares. O comércio é realizado não mais exclusivamente no mercado, mas também de um ambiente privado ao outro. Crimes podem ser agora praticados a distância. O próprio Estado, que, sem controle, sempre deseja ser onipotente, onipresente e onisciente, quer interferir nessa esfera virtual. Se, antes, bastavam as declarações de direitos para que se respeitassem os indivíduos nas suas esferas social e privada, hoje se faz cada vez mais necessária a reafirmação dos limites entre indivíduo e Estado na esfera virtual, sobretudo porque em 2013 eclodiu o escândalo de espionagem de escala global realizado pelo governo dos Estados Unidos a partir de seu próprio território, por meio do qual se interceptavam e armazenavam dados transmitidos pela Internet por cidadãos americanos e por pessoas de vários países do mundo, além de práticas de espionagem contra chefes de Estados e empresas de grande porte, com o intuito de obtenção de vantagens comerciais.

2 - O “Marco Civil da Internet”

Essas transformações resultantes do uso livre da Internet geram perplexidade nas pessoas, que ainda não sabem ao certo como comportar-se nessa “terceira esfera de ação humana”, equivocadamente denominada de “ciberespaço”.[4] Imaginou-se que a Internet deveria ser “terra sem lei”, onde tudo seria permitido pela aparente impossibilidade de descoberta da verdadeira identidade da pessoa. Percebeu-se a deficiência do direito penal tradicional no combate à criminalidade virtual. Os Códigos Penais e legislações penais especiais foram afetados por essa nova realidade, porque o direito penal é fortemente ligado à questão da soberania nacional, enquanto a Internet, por sua vez, não conhece Estados por ser manifestação de uma verdadeira “aldeia global”. Tradicionais regras de aplicação da lei penal no espaço, com exemplos quase hipotéticos, tais como o de cometimento de um crime de um lado da fronteira e concluí-lo após ter passado pela imigração, ganham importância na tentativa de combate aos criminosos, ao mesmo tempo em que estas são inócuas, porque crimes podem ser praticados de qualquer parte do mundo. Ao largo dessas reflexões sobre o direito penal, também se procurou enfrentar a contrafação na Internet mediante ações contra quem distribuísse materiais protegidos pelo direito de autor, o que não deu certo pela impossibilidade de apreensão física das obras em formato digital.

Os governos brasileiro e alemão, ambos vítimas de espionagem, encaminharam à Organização das Nações Unidas um projeto de resolução intitulado “O direito à privacidade na era digital”.[5] Reapresentado com pequenas alterações por vinte e dois países, esse documento, aprovado na Sessão de 26 de novembro de 2013, expressa a preocupação com o uso das novas tecnologias de informação e de comunicações por pessoas, empresas e governos na vigilância, interceptação e recopilação de dados, inclusive realizados extraterritorialmente, já que essas práticas poderiam constituir violação de direitos humanos, em especial, quanto ao direito à privacidade, fundamental em uma sociedade democrática para materializar a liberdade de expressão, assim como se expressou preocupação com a liberdade de buscar, receber e difundir informações. Dessa forma, reafirmou-se o direito à privacidade já protegido pelo art. 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelo art. 17 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; reconheceu-se a natureza global e aberta da Internet, razão pela qual o direito à privacidade também deve ser assegurado na rede. Recomendou-se aos Estados que assegurassem o respeito e proteção do direito à privacidade no contexto das comunicações digitais, a abstenção da violação desses direitos pelos próprios Estados, a revisão dos procedimentos, práticas e legislações sobre vigilância e interceptação de comunicações e a recopilação de dados em grande escala, assim como se mantenham mecanismos nacionais de supervisão independentes e capazes de assegurar a transparência dessas atividades, prestando contas das mesmas.

Ao largo desse problema envolvendo invasão de privacidade praticada por um Estado contra outro, o governo brasileiro pressionou o Congresso Nacional para a aprovação de uma lei sobre comportamentos na esfera virtual, denominada de “Marco Civil da Internet” ou de “Constituição da Internet”, termo equivocado pela própria estrutura internacional da rede, para tentar por fim a ideia de que a Internet é “terra sem lei”. De qualquer forma, essa proposta de disciplina de princípios, garantias, direitos e deveres dos usuários da Internet no Brasil foi concebida em 2009 em parceria do pelo Ministério da Justiça com a Escola de Direito do Rio de Janeiro, da Fundação Getúlio Vargas,[6] o que resultou na apresentação de um projeto de lei ao Congresso Nacional, registrado sob o n°. 2.126/2011, convertido na Lei n°. 12.965, de 23 de abril de 2014. Sua apresentação em 2011 evidencia ser iniciativa bem anterior aos escândalos de privacidade divulgados em 2013. Inclusive diversos projetos de lei foram apresentados desde o ano 2000, os quais tramitaram em apenso a este.[7] O texto foi submetido a consultas públicas em diversas cidades brasileiras, bem como se franqueou a possibilidade de oferecimento de sugestões pela própria Internet. A partir dessa iniciativa, o relator do projeto, Dep. Alessandro Molon (PT-RJ) ofereceu substitutivo que incorporava as principais sugestões oferecidas e que foram incorporadas no texto final. Na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei foi intensamente discutido por ter-se requerido urgência em sua análise. Três pontos foram bastante criticados e que serão posteriormente analisados: o temor de censura imposta a páginas de Internet, a neutralidade da rede e a implantação de datacenters no Brasil. O Senado Federal, por sua vez, analisou o projeto muito rapidamente, para que houvesse tempo de a Presidência da República promulgar o texto durante o Encontro Multissetorial Global Sobre o Futuro da Governança da Internet - NetMundial.[8]

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Pela leitura do texto convertido na Lei n°. 12.965/14, observa-se a preocupação de afastarem-se críticas de que se poderia restaurar a censura no país. Para isso, o art. 2º, caput, afirmou-se que a disciplina do uso da Internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão e pelo art. 19 declara-se que “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura (...)”, vez que tais referências não existiam no projeto primitivo. Assim, repetiu-se o que consta no art. 3º, I, quando prevê que um dos princípios do uso da Internet no Brasil é a “garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento, nos termos da Constituição Federal”.

Especial atenção deu-se ao direito à privacidade, entendido aqui, sob o ponto de vista do direito civil, como o direito de isolar-se do contato com outras pessoas, bem como o direito de impedir que terceiros tenham acesso a informações acerca de sua pessoa.[9] Isso está previsto nos incisos I, II, III, VII e VIII do art. 7º, ao elencarem-se como direitos dos usuários de Internet a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, a preservação do sigilo das comunicações privadas pela rede, transmitidas ou armazenadas; o não-fornecimento de dados pessoais coletados pela Internet a terceiros sem prévio consentimento do usuário, além de estabelecer o dever de informar os usuários acerca da coleta de dados sobre si, quando houver justificativa para tal fato. Do mesmo modo, o art. 10 do “Marco Civil da Internet” estabeleceu que a guarda e disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de Internet devem ser realizados com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas direta ou indiretamente envolvidas. O art. 14 dispôs que o provedor de conexão à Internet não pode guardar registros de acesso a aplicações da Internet e o provedor de aplicação de Internet não pode guardar os registros de acesso sem prévio consentimento do usuário, nem os dados pessoais desnecessários à finalidade para a qual se deu consentimento, nos termos do art. 16. Pelo art. 9°, § 3º, proíbe-se que os provedores de conexão à Internet, gratuitos ou onerosos, ou os responsáveis pela transmissão, comutação e roteamento de dados, realizem  bloqueios, filtros ou análises de conteúdo dos pacotes de dados.

            Outro aspecto que recebeu grande atenção do legislador foi o combate às ilicitudes civil e criminal praticadas sob o manto da privacidade na Internet. Se, do ponto de vista social, a Internet proporciona contatos interpessoais anônimos, do ponto de vista técnico, toda ação realizada pela Internet é passível de registro pelos provedores de acesso e de conteúdo, o que torna possível a identificação dos usuários. Assim, o art. 13, caput, do Marco Civil da Internet exige a guarda dos registros de conexão à Internet pelo prazo de um ano e, pelo art. 15, caput, o registro de acesso a aplicações da Internet pelo prazo de seis meses. Todavia, o acesso a esses dados para fins de reparação civil dos danos causados à vitima ou para investigação criminal somente se dará pela atuação do Poder Judiciário, nos termos do arts. 7º, III; 10, §§ 1º e 2º; 13, §§ 3º e 5°;  15, § 3º, dessa Lei.

            O legislador tratou da responsabilidade civil dos provedores de Internet por ofensa aos direitos da personalidade das pessoas, como a honra, imagem, vida privada e intimidade das pessoas. O art. 18 reconheceu a irresponsabilidade civil do provedor de acesso por danos causados pelos usuários. Por outro lado, o art. 19 regulamentou especificamente a responsabilidade civil dos provedores de conteúdo, por exemplo, os armazenadores de arquivos fotográficos e musicais, bem como de páginas da Internet, entre eles, os blogs. Estabeleceu-se, nesse caso, a responsabilidade subsidiária entre o usuário da Internet que praticou o ato ilícito civil e o provedor de conteúdo. Dessa maneira, a responsabilidade primária é do usuário da Internet e o provedor de conteúdo somente responde conjuntamente com o causador do dano quando descumprir ordem judicial para que tornasse indisponível o conteúdo ofensivo. Novamente, para evitar a prática de censura pelo Poder Judiciário, os §§ 1° a 4° do art. 19 estabeleceram procedimentos acerca da retirada do conteúdo ofensivo da rede, entre outras coisas, quanto ao conteúdo da ordem judicial, a qual deverá trazer identificação clara e específica do conteúdo infringente, a necessidade de regulamentação por lei específica, quando a ofensa se relacionar com os direitos de autor e direitos conexos, o alargamento da competência judiciária para apreciação da matéria perante os Juizados Especiais e a necessidade de o juiz avaliar o cabimento da medida em face do interesse da coletividade em ter acesso ao conteúdo disponibilizado na rede. O art. 20, por sua vez, estabelece que, quando for possível a identificação do usuário que publicou conteúdo tornado indisponível por ordem judicial, o provedor de conteúdo deverá comunicar-lhe os motivos e informações relativos à medida, para que possa exercer, se desejar, o contraditório e a ampla defesa em juízo. No entanto, admite-se disposição em contrário pelo juiz, no sentido de não fornecer tais dados ao usuário. Já o parágrafo único do art. 20 garante o direito do usuário de solicitar a colocação da motivação ou da ordem judicial que deu fundamento à indisponibilização desse conteúdo.

Em se tratando de imagens, vídeos ou outros materiais que contenham cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado, o provedor de aplicações de Internet responderá subsidiariamente com o divulgador, quando, após notificação, deixar de tornar indisponível o acesso a esse conteúdo. Aqui a diferença é que não se requer ordem judicial para a solicitação da indisponibilidade do conteúdo, podendo ser feita pelo próprio interessado mediante notificação. Ainda nesse ponto, inseriu-se de última hora na parte das disposições finais da lei o art. 29 e seu parágrafo único, segundo o qual se reconhece o direito do usuário de Internet de instalar em seu computador pessoal programas destinados ao controle parental do conteúdo entendido como impróprio aos filhos menores, desde que respeitados os princípios desta lei e do Estatuto da Criança e do Adolescente, cabendo ao Poder Público, juntamente com os provedores de conexão e de aplicação de Internet, a promoção da educação e fornecimento de informações sobre o uso desses programas e definição de boas práticas para inclusão digital de crianças e adolescentes.

            Aspecto relevante é a neutralidade da rede, prevista no art. 9º do Marco Civil da Internet. Por meio desta, impõe-se o tratamento isonômico aos dados transmitidos, sem distinção de conteúdo, origem e destino, serviço, terminal e aplicação. A ideia é que se possa acessar indistintamente uma página de Internet, enviar um e-mail ou assistir a um filme ou conversar por videoconferência, sem prejuízo da velocidade de transmissão dos dados. Todavia, estabeleceram-se critérios para a discriminação dos dados, a começar pela atribuição de competência à Presidência da República na sua fixação, quando requisitos técnicos assim o exigirem ou a priorização de serviços de emergência. Ademais, a discriminação dos dados deve abster-se de causar danos às pessoas, assim como deve ser feita com proporcionalidade, transparência e isonomia, informando-se previamente, com transparência e clareza os critérios de gerenciamento e mitigação de tráfego adotados, inclusive quando relacionadas à segurança da rede. Também a discriminação de dados não pode implicar oferecimento de serviços em condições comerciais discriminatórias nem resultar em práticas anticoncorrenciais.

            O Marco Civil da Internet disciplinou a atuação do Poder Público em se tratando do desenvolvimento da Internet no Brasil. Com isso, previu-se nos arts. 24 e 25 o estabelecimento de mecanismos de governança multiparticipativa, envolvendo o governo, empresas, sociedade e civil e comunidade acadêmica, a racionalização da gestão, expansão e uso da Internet no Brasil, em especial, na implantação de serviços de governo eletrônico e se serviços públicos, a adoção preferencial de tecnologias, padrões e formatos abertos e livres, a publicidade de dados e informações públicos na Internet e, sobretudo, o estímulo à implantação de centros de armazenamento, gerenciamento e disseminação de dados no Brasil. Já os arts. 26 e 27 tratam do uso da Internet como ferramenta para o exercício da cidadania, promoção da cultura e desenvolvimento tecnológico, sobretudo para a promoção da inclusão digital, redução de desigualdades sociais e fomento de produção e circulação de conteúdo nacional. Por fim, desistiu-se da ideia de implantação compulsória de datacenters de aplicações de Internet no Brasil, ao apenas estabelecer, no art. 24, VII, o estímulo à implantação dos mesmos no Brasil.

3 - Críticas ao Marco Civil da Internet

Embora o Marco Civil da Internet tenha sido bastante festejado por ser a primeira lei do mundo a disciplinar os direitos e deveres dos usuários da rede, não se perceberão mudanças substanciais, uma vez que esta não acrescentou praticamente nada à legislação vigente. A expectativa criada com a discussão dessa lei deu-se pela crença errônea de que as normas contidas na Constituição Federal, no Código Civil, no Código Penal, nos Códigos de Processo Civil e Penal, no Código de Defesa do Consumidor, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na lei sobre interceptação de comunicações (Lei n°. 9.296/96) não teriam aplicação nas relações jurídicas estabelecidas na Internet.

É aspecto intrigante do Marco Civil da Internet a ingenuidade do legislador brasileiro de manter a pretensão de solução de problema de escala mundial, com efeitos extraterritoriais, por meio de uma lei nacional. A própria estrutura da Internet permite que as violações dos direitos das pessoas ocorram em qualquer parte do mundo, passando ao largo da jurisdição brasileira. Parece confessar essa dificuldade, ao afirmar-se, no art. 2º, I, do Marco Civil da Internet, que um dos fundamentos da disciplina do uso da Internet é o “reconhecimento da escala mundial da rede”. Na tentativa de frear violações de privacidade por meio de coleta, armazenamento e tratamento de registros, dados pessoais ou comunicações, por meio do art. 11, caput, §§ 1º e 2º, estabeleceu-se que o Marco Civil da Internet se aplica quando, pelo menos, um dos atos realizar-se no Brasil ou quando um dos terminais estiver no Brasil e que pessoas jurídicas com sede no exterior devem sujeitar-se à lei brasileira quando tiverem, pelo menos, uma integrante do mesmo grupo econômico com estabelecimento no Brasil. A despeito da boa intenção, a violação pode não acontecer no Brasil, mas poderá acontecer na outra ponta da transmissão de dados no exterior. Mesmo com a previsão das sanções previstas no art. 12 do Marco Civil da Internet, entre os quais, advertência, multa de 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil em seu último exercício, suspensão temporária de atividades ou proibição de exercício de atividades - sendo esta última medida possivelmente inconstitucional nos termos do art. 170 da Constituição Federal – tais medidas serão inócuas, já que o Brasil não tem jurisdição para controlar as atividades dessas grandes empresas em suas sedes no exterior.

Devido a todas essas dificuldades naturais de gerenciamento de uma rede mundial de computadores, deixou-se de lado a polêmica exigência de instalação de datacenters para fins de provisão de aplicações de Internet no Brasil, nos termos do art. 24, VII, uma vez que a informação que circula na Internet não é física e de pouco adiantaria seu armazenamento no Brasil, se esta pode ser replicada indefinidamente para qualquer parte do mundo. Não é impossível que, no envio de um e-mail para o computador do lado, esses dados circulem em outros países pelo próprio tráfego da rede. A proposta de nacionalização de datacenters é prova do desconhecimento do funcionamento da Internet, imaginando-a como uma biblioteca física localizada em determinado território, sem qualquer conexão ou interferência com a estrutura física de Internet dos demais países.

Quanto à neutralidade da rede, a redação final não permite concluir se esta haverá ou não no Brasil, uma vez que o art. 9º, caput, estabelece essa garantia e o inciso I do parágrafo primeiro permite que decreto da Presidência da República autorize a discriminação ou degradação do tráfego para atendimento de requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços, bem como o inciso II do parágrafo segundo prevê que se realize tal medida com proporcionalidade, transparência e isonomia. De fato, essa questão é um dos pontos sensíveis na regulamentação jurídica da Internet, porque, embora a decisão ideal seja a neutralidade da rede no tráfego de dados, não se pode fugir da pergunta a respeito de quem financiará essa qualidade de tráfego. De nada adianta a imposição da neutralidade da rede no Brasil, se os demais países não impuserem a mesma medida. Se os dados trafegam pelo mundo todo, apenas se assegura que o tráfego dos mesmos dentro do Brasil será isonômico, mas não necessariamente se atribuirá o mesmo tratamento quando esses mesmos dados forem enviados para fora do Brasil ou solicitados do exterior. Mais eficaz seria o reconhecimento de direitos fundamentais dos usuários da Internet, entre eles, a liberdade de ir e vir pela Internet, independentemente do acesso ser gratuito ou cobrado.

São poucos os aspectos positivos trazidos pelo Marco Civil da Internet. O primeiro deles consiste na vedação da imposição de mecanismos de censura, bloqueio, monitoramento, filtragem e análise de dados que trafegam pela infraestrutura da Internet dentro do território brasileiro, conforme previsto no art. 9°, §3º. Com isso, afastou-se o legítimo temor de que se poderia implantar no Brasil mecanismos de controle estatal por meio de firewalls, tal como ocorre em países que monitoram o acesso dos seus cidadãos à Internet. Melhorou-se a redação do projeto inicial, uma vez que se previa tal controle em hipóteses admitidas em lei.

O segundo aspecto positivo consiste na regulamentação dos procedimentos judiciais específicos para obtenção dos registros de navegação para fins de instrução processual civil e penal. O projeto inicial do Marco Civil da Internet não tratava da interceptação de dados transmitidos pela Internet ou o acesso dessas informações por terceiros, tampouco afirmava a ilegalidade dessas práticas, limitando-se apenas ao que está armazenado nos servidores e não no que está circulando entre os mesmos. Apesar disso, não se trata de grande inovação, pelo fato de que se poderiam usar as regras atuais contidas nos Códigos de Processo Civil e Penal, bem como as delegacias especiais de combate a crimes virtuais há mais de uma década já fazem a requisição desses dados pelo uso dos mesmos procedimentos comuns aos demais crimes.

O terceiro aspecto positivo foi a disciplina dos chamados cookies, arquivos instalados nos computadores ou telefones para registrar informações e preferências dos usuários quando acessam determinada página na Internet, conforme o art. 7°, VIII. Essas normas também não estavam presentes no projeto inicial. Dessa maneira, as páginas de Internet terão que informar logo no primeiro acesso do usuário que pretendem coletar tais informações. Afinal, é violação da privacidade quando a pessoa acessa determinada e receber ofertas de produtos e serviços relacionados. No mesmo sentido, não parece correto que o Estado ou terceiros soubessem que o leitor leu esse texto e, tempos depois, indagá-lo por que se interessou por esse assunto. Com efeito, são situações reais e preocupantes, porque essas grandes empresas e Internet já conhecem quase todos os hábitos de determinada pessoa, tornando-se um verdadeiro “big brother”. Mesmo assim, poder-se-ia obrigar a solicitação de concordância com a coleta desses dados, tal como ocorre em páginas da Internet de países europeus, em vez de apenas informar o usuário sobre esse fato. Completando essa ideia, foi importante o reconhecimento no art. 7º, VII, da proibição de fornecimento a terceiros dos dados pessoais, inclusive registros de conexão e de acesso a aplicações de Internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei.

Vale destacar o art. 18, que, acertadamente, declarou a irresponsabilidade civil do provedor de conexão à Internet por atos ilícitos praticados pelos usuários. Tal providência faz todo sentido, porque essa atividade consiste apenas em promover a conexão dos computadores e telefones celulares das pessoas à Internet. Implica dizer que não há nexo causal entre a realização de tal atividade e os danos sofridos por terceiros. Exemplo disso deu-se com a publicação de vídeo no site Youtube.com em 2006, quando este site ainda não era tão popular quanto nos dias atuais, em que a atriz Daniela Cicarelli foi registrada na Espanha praticando atos sexuais no mar. Sentindo-se ofendida em sua honra, imagem e privacidade, ela ingressou com ação para que o material fosse retirado do site, o que foi deferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Pelo fato de que esse material estava hospedado em servidores nos Estados Unidos e a ordem para retirada do material foi dada aos provedores de acesso brasileiros, não restou alternativa que não fosse o bloqueio de todos os usuários brasileiros ao site Youtube.com,[10] o que fez o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo rever o equívoco da ordem judicial quanto a seus efeitos.[11]

            Por outro lado, são muitas as deficiências e insuficiências do Marco Civil da Internet, mesmo depois da revisão do projeto inicial por meio da aprovação do texto substitutivo. Afinal, toda lei aprovada tem a finalidade de inovar o ordenamento jurídico, acrescentando normas necessárias à regulação dos comportamentos, eliminando aquelas que não mais atendem às necessidades sociais. O primeiro ponto a ser observado é a redundância de várias de suas disposições, que repetem, com insuficiência, o que já consta na Constituição Federal. Nenhuma “ginástica hermenêutica” é capaz de permitir ao operador do direito a obtenção de significado adicional. Por exemplo: o art. 5º, X, da Constituição Federal dispõe que: “X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” e o art. 7°, I do Marco Civil da Internet dispõe que é direito dos usuários da Internet a: “I – inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano moral e material decorrente de sua violação”.

Outro exemplo é o art. 5º, XII, da Constituição Federal, com a seguinte redação: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”. Já os art. 7°, II e III, do Marco Civil da Internet dispõem sobre a “II – inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela Internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei”, que, aliás, faz referência a si mesma como “na forma da lei”, quando deveria ser “na forma do disposto nas seções II, III e IV do Capítulo III” e “III – inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial”.

O art. 5°, inciso IX da Constituição Federal assegura que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença e o art. 21 do Código Civil dispõe que “a vida privada da pessoa natural é inviolável e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a essa norma”. O Marco Civil da Internet, no art. 3º, I, reproduziu essas mesmas normas ao prescrever que a disciplina do uso da Internet no Brasil tem como um dos princípios a “I – garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento, nos termos da Constituição Federal”, bem como o art. 8°, ao dispor que “a garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à Internet”.

Do mesmo modo, dispensável afirmar que é princípio do uso da Internet a “proteção da privacidade” e a “proteção dos dados pessoais, na forma da lei’, por repetir o que já dispõe a Constituição Federal. Também o art. 3º, parágrafo único, dispõe que “os princípios expressos nessa Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, quando o art. 5º, § 2º, da Constituição Federal dispõe que “§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

De última hora inseriu-se o art. 3º, VIII, em que se reconhece a “liberdade dos modelos de negócios promovidos na Internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei”. Além de não encontrar desdobramento nas partes subsequentes do Marco Civil da Internet, essa norma é mera decorrência da livre iniciativa, reconhecida no art. 170 da Constituição Federal como fundamento da ordem econômica brasileira.

O art. 9º, § 2°, I, do Marco Civil da Internet é desnecessário pela sua obviedade. Ao estabelecer que, em caso de discriminação ou de degradação do tráfego na Internet, o responsável deve “abster-se de causar danos aos usuários, na forma do art. 927 da Lei n°. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil”, simplesmente se dispôs o seguinte: cumpra-se a lei! Retomando o que já se mencionou acima, o art. 3º, parágrafo único, ao estabelecer que “os princípios expressos nesta Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria...” simplesmente dispõe sobre o óbvio, que é o de que o ordenamento jurídico é composto por diversas normas e que a disciplina jurídica de determinado assunto não se encerra em um único texto de lei.

Outra obviedade é o disposto no art. 7°, XIII, segundo o qual se estabelece como direito dos usuários da Internet a “XIII – aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo realizadas na Internet”, ou, em outras palavras: aplica-se o Código de Defesa do Consumidor às relações de consumo! Do mesmo modo, o art. 7°, V, do Marco Civil da Internet, segundo o qual é direito do usuário a “manutenção da qualidade contratada da conexão à Internet”, como se fosse logicamente possível qualquer disposição em contrário. Afinal, já é muito antiga a ideia de que os contratos devem ser cumpridos (“pacta sunt servanda”) e que se deve entregar exatamente o que se obrigou a tanto. Tanto que o art. 313 do Código Civil estabelece que “o credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa”.

Igualmente despicienda é a norma do art. 8°, I, segundo a qual prevê a nulidade de pleno direito de cláusulas que “impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo das comunicações privadas, pela Internet”. Nesse caso, tal cláusula seria não apenas inconstitucional, como também ilegal e inválida, nos termos do art. 166, II e VI, do Código Civil.  Ainda, a previsão do art. 3º, VI, da “responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei” é irrelevante, porque é ilógico pensar em irresponsabilidade dos agentes por seus atos. Desnecessária também é a regra do art. 8º, II, segundo a qual se estabelece que, em contratos de adesão, é nula a cláusula que não oferece alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no Brasil. Tal direito é garantido pelo art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” e também pelo art. 101 do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual “Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas: I - a ação pode ser proposta no domicílio do autor”.

Deficiente é também a norma do art. 30, por meio do qual se estabelece que a defesa dos interesses e direitos estabelecidos no marco civil da Internet poderá ser exercida em juízo. Cabe indagar por que somente os direitos individuais e coletivos e não os interesses difusos e, mais ainda, por que legislar sobre esse tema, se tudo deve ser feito “na forma da lei”.

O texto do Marco Civil da Internet trouxe normas vazias de conteúdo. Por exemplo, o art. 2º, IV, segundo o qual prevê como fundamento da disciplina do uso da Internet a “abertura e a colaboração”. Há que se perguntar de que abertura se trata e que colaboração se pretende. O art. 5º do Marco Civil da Internet, que apresenta definições para fins de interpretação, deixou de definir “provedor de conexão à Internet”, “provedor de aplicações de Internet”, “provedor responsável pela guarda dos registros” e “responsável pela transmissão, comutação e roteamento”. Não se trata de definições de menor importância, já que são estes os principais destinatários dos deveres reflexos previstos na declaração dos direitos dos usuários da Internet.

Não há critério em estabelecer-se o prazo de um ano para armazenamento dos registros de conexão, nos termos do art. 13 e o prazo de seis meses para armazenamento dos registros de acesso a aplicações de Internet, nos termos do art. 15. Também silenciou sobre o estímulo à criptografia como forma de resguardo da privacidade das pessoas em suas comunicações.

Quanto à proteção dos usuários da Internet, o Marco Civil diminuiu a responsabilidade dos provedores de aplicações de Internet. Nos termos do direito então vigente, o art. 942 do Código Civil estabelece a solidariedade ex delito. Dessa maneira, basta a ocorrência do dano para que a vítima pudesse acionar judicialmente tanto o usuário violador, quanto o provedor de aplicações de Internet ou ambos, simultaneamente. Esse sistema de proteção impunha o dever de vigilância dos provedores de aplicações de Internet, ante a possibilidade de responder diretamente pelos atos dos usuários, pelo menos mediante o oferecimento de canais de denúncia para que se formulasse o pedido de retirada do conteúdo. Inclusive esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que se mantém até hoje na forma de precedente:[12]

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. PROVEDOR. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. RETIRADA. REGISTRO DE NÚMERO DO IP. DANO MORAL. AUSÊNCIA. PROVIMENTO.

1.- No caso de mensagens moralmente ofensivas, inseridas no site de provedor de conteúdo por usuário, não incide a regra de responsabilidade objetiva, prevista no art. 927, parágrafo único, do Cód. Civil/2002, pois não se configura risco inerente à atividade do provedor. Precedentes.

2.- É o provedor de conteúdo obrigado a retirar imediatamente o conteúdo ofensivo, pena de responsabilidade solidária com o autor direto do dano.

3.- O provedor de conteúdo é obrigado a viabilizar a identificação de usuários, coibindo o anonimato; o registro do número de protocolo (IP) dos computadores utilizados para cadastramento de contas na internet constitui meio de rastreamento de usuários, que ao provedor compete, necessariamente, providenciar.

4.- Recurso Especial provido. Ação de indenização por danos morais julgada improcedente”.

Como se observa acima, a jurisprudência brasileira estava muito atenta no oferecimento de respostas jurídicas para esse tipo de problema. Agora, com o Marco Civil da Internet, estabeleceu-se a responsabilidade subsidiária dos provedores, dispensando-os desse dever de diligência, o que facilitará a prática de delitos. Dessa maneira, o primeiro responsável é o usuário que causou o dano. Os provedores de aplicações de Internet somente respondem quando se recusarem a cumprir ordem judicial para retirada do conteúdo violador dos direitos da personalidade. Apenas se exige a retirada do material quando o material envolver conteúdo sexual.

Considerações finais

De nada adianta o Brasil ter um “Marco Civil da Internet”, se outros países não têm legislação similar, Mas isso não significa a impossibilidade de solução desses problemas. A regulamentação civil da Internet poderia inspirar-se em práticas do século XIX bem sucedidas até os dias atuais, como em matéria de proteção das marcas e das obras artísticas e literárias. No século XIX, os autores consternavam-se com a perplexidade a facilidade de contrafação dessas criações humanas em razão da limitação das jurisdições nacionais, já que um país poderia conferir proteção a determinado livro escrito por um autor, enquanto o outro país não conferia qualquer proteção. Tudo o que fosse feito em um país tornava inócuo o que se fazia no outro para garantir o direito dos autores. Por isso, a Societé des Gens des Letttres e a Association Literaire et Artistique Internationale, esta última presidida pelo escritor Victor Hugo, propuseram minuta de convenção internacional para proteção internacional às obras artísticas e literárias. Em 1886, promulgou-se a Convenção de Berna sobre obras artísticas e literárias, a qual está em vigor até hoje, com aditamentos e revisões,[13] atendendo satisfatoriamente o interesse dos autores e empresários há cento e trinta anos. Outro exemplo é o da União Postal Universal, fundada em 1874 para o funcionamento dos correios no mundo.[14] Ou, ainda, com a necessidade de facilitação dos pagamentos no comércio internacional por meio de letras de câmbio e notas promissórias, promulgou-se a Lei Uniforme de Genebra em matéria de títulos de crédito, que, na verdade, é um tratado internacional sobre esses títulos de crédito, o qual está em vigor até hoje.[15] Aproveitando essas experiências, poder-se-ia elaborar uma Lei Uniforme ou Convenção Internacional sobre o uso da Internet, o que proporcionaria maior proteção dos usuários da Internet ou poder-se-ia converter a Resolução da ONU em uma Declaração Universal dos Direitos dos Usuários da Internet, à semelhança da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual poderia ser espécie de marco civil internacional que pudesse inspirar os demais países a cogitar mudanças legislativas internas.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 7ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008

ARENDT, Hannah. A condição humana. 7ª edição revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995

BRASIL. “Dilma sanciona o Marco Civil da Internet”. Disponível em: http://blog.planalto.gov.br/dilma-sanciona-o-marco-civil-da-internet/ . Acesso em:

BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia. De Gutenberg à Internet; trad. de Maria Carmelita Pádua Dias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006

CAMARA DOS DEPUTADOS. Tramitação do PL n°. 2.126/2011. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=517255&st=1 . Acesso em:

COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral no Brasil. 2ª edição. São Paulo: FTD, 2008

FOLHA DE S. PAULO. “Empresa bloqueia Youtube após decisão pró-Cicarelli. Decisão da Brasil Telecom afeta 5,5 milhões de clientes dos provedores iG, iBest e BrTurbo. Telefônica também recebeu ofício judicial com a ordem e proibirá o acesso à página; juiz disse que pode ter havido um engano no texto”. Caderno Cotidiano. Terça-feira, 9 de janeiro de 2007. p. C7

FOLHA DE S. PAULO. “Justiça manda desbloquear Youtube. Em novo ofício, desembargador esclarece que veto se refere só à divulgação das imagens de Cicarelli e seu namorado”. Caderno Cotidiano. Quarta-feira, 10 de janeiro de 2007. p. C5

FGV DIREITO RIO. “Marco Civil da Internet, evento de abertura”. Disponível em: http://direitorio.fgv.br/node/832. Acesso em:

MACHADO, Nilson José. “A universidade e a organização do conhecimento: a rede, o tácito, a dádiva”. Estudos Avançados. 2001, vol. 15, n.42, pp. 333-352

MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. Vol. 1. Letra de câmbio e nota promissória. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1306066/MT, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/04/2012, DJe 02/05/2012

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UNITED NATIONS. “The Right to privacy in digital age”. Disponível em: http://www.hrw.org/sites/default/files/related_material/UNGA_upload_0.pdf . Acesso em:


[1] ARENDT, Hannah. A condição humana. 7ª edição revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, pp. 9-10

[2] BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia. De Gutenberg à Internet; trad. de Maria Carmelita Pádua Dias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, pp.300-301

[3] MACHADO, Nilson José. “A universidade e a organização do conhecimento: a rede, o tácito, a dádiva”. Estudos Avançados. 2001, vol. 15, n.42, pp. 337-339

[4] “Ciberespaço” significa “espaço cibernético” e, no entanto, cibernética significa organização de sistemas, uma vez que, na sua raiz, cibernética tem a mesma raiz da palavra “governador”. Percebe-se, com isso, que “ciberespaço” não guarda qualquer relação com espaço virtual, até mesmo pelas dificuldades de controle da Internet.

[5] UNITED NATIONS. “The Right to privacy in digital age”. 26 de novembro de 2013. Disponível em: http://www.hrw.org/sites/default/files/related_material/UNGA_upload_0.pdf

[6] FGV DIREITO RIO. “Marco Civil da Internet, evento de abertura”. Disponível em: http://direitorio.fgv.br/node/832.

[7] CAMARA DOS DEPUTADOS. Tramitação do PL n°. 2.126/2011. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=517255&st=1 .

[8] BRASIL. “Dilma sanciona o Marco Civil da Internet”. Disponível em: http://blog.planalto.gov.br/dilma-sanciona-o-marco-civil-da-internet/ .

[9] AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 7ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.306

[10] FOLHA DE S. PAULO. “Empresa bloqueia Youtube após decisão pró-Cicarelli. Decisão da Brasil Telecom afeta 5,5 milhões de clientes dos provedores iG, iBest e BrTurbo. Telefônica também recebeu ofício judicial com a ordem e proibirá o acesso à página; juiz disse que pode ter havido um engano no texto”. Caderno Cotidiano. Terça-feira, 9 de janeiro de 2007. p. C7

[11] FOLHA DE S. PAULO. “Justiça manda desbloquear Youtube. Em novo ofício, desembargador esclarece que veto se refere só à divulgação das imagens de Cicarelli e seu namorado”. Caderno Cotidiano. Quarta-feira, 10 de janeiro de 2007. p. C5

[12] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1306066/MT, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/04/2012, DJe 02/05/2012

[13] COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral no Brasil. 2ª edição. São Paulo: FTD, 2008, p.58

[14] UNIÃO POSTAL UNIVERSAL. “The UPU”. Disponível em: http://www.upu.int/en/the-upu/the-upu.html.

[15] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. Vol. 1. Letra de câmbio e nota promissória. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.36

Sobre o autor
Eduardo Tomasevicius Filho

Professor Doutor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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