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O discurso redimensionado da justiça de Otfried Höffe

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6 Críticas ao Anarquismo

Da mesma forma que remete à Grécia antiga para estabelecer os fundamentos de sua critica ao positivismo, Höffe lança mão da mesma base para fazer suas críticas ao anarquismo, posto que a concepção de estado passa invariavelmente pelos gregos, bem como sua eventual ausência.

O conceito de Pólis de Aristóteles serviu para que o autor fundamentasse a ideia primitiva de justiça política. Diz o autor que, na forma de viver do homem grego, Aristóteles defende o conceito de pólis como um paradigma de vida, ele a legitima. A natureza é um conceito complexo e através da pólis é possível extrair conceitos descritivos e normativos. Segundo Höffe a pólis tem uma função, ela “deveria existir para que os homens possam perseguir seu interesse natural”. O bem perseguido não pode ser um bem concreto (específico), posto que os homens possuem carências e interesses variados. O fim do homem é a auto conservação, não quer viver com fadiga e necessidades, mas sim de forma rebuscada e moderna, agradável, bem-sucedida, feliz. Em suma: “o homem é um ser social por natureza porque quer viver, e um ser político porque quer viver bem.” Para Aristóteles o homem somente pode viver com ele mesmo (coexistir) numa comunidade da importância e do nível de uma pólis, onde o ser-homem do homem, a sua humanidade atinge a plena realidade.

Aristóteles (em “a política”) considera necessárias à vida 3 relações: A relação homem mulher que significa em suma a conservação da espécie, a relação do pai com os filhos, que significa sobrevivência e educação, e relação entre senhor e servo, que da mesma forma significa sobrevivência, mas com uma conotação política e social.

 Destas relações forma-se a casa; das casas a formam-se os povoados, e dos povoados forma-se finalmente a pólis.

A relação homem mulher e entre o pai e filhos é primária, e remete ao reino animal. A relação que remete à postura do homem no cosmos, é o logos. Segundo Aristóteles, o logos instaura a comunicação e é a força fundadora da pólis, uma força constituinte de dominação.  

Sobre as 3 relações, pode-se dizer que a relação homem mulher e entre pai e filhos se forma a partir de uma carência, da sexualidade, do cuidado,  e esta apenas funciona quando promove o prazer, ou quando sua não realização promove o desprazer. Em segundo lugar, para o surgimento do povoado, os filhos crescem,casam-se e tem suas famílias, e isto está ligado à aspiração por uma vida agradável e segura. A última etapa, na realização da pólis, implica a auto-realização com “racionalidade ética” representando o comum e o justo.

Aristóteles considera naturais as relações sociais, e até justas, mas não confia na espontaneidade sem coerção (anarquia), pois as consequências seriam desastrosas, pelo desejo de guerra (polemon epithymetes), e a ausência de coerção levaria o homem a ser o pior de todos os seres vivos (cheiriston panton).

Esta ideia ganhou mais tarde o reforço hobbesiano na ideia de que o homem ao viver sem uma força coercitiva sobre si, estaria fadado a uma vida de miséria, de dominação e de guerras. Platão, por sua vez, desenvolveu a ideia da dominação a partir da cobiça.


7 Mandatos de Coerção

Aristóteles e Platão defendem a ideia de mandatos para exercício de coerção, da necessidade de conflito, pois onde não há lei existe perigo de luta, pela natureza de conflito do homem. Como já dito acima, Platão liga este fato à cobiça humana. Aristóteles fala do conceito de casa e da relação do servo com o senhor e diferencia da relação do governo e cidadão na polis, pois existe nessa última a justiça normadora da polis. A relação do servo e senhor é uma relação “despótica” e Aristóteles visualizou no conceito de pólis de Platão uma comunidade de “livres”, um “governo sobre livres”.

A respeito do tema escravidão, para Hoffe, Aristóteles não a via como uma violação de justiça exatamente, uma vez que ao escravo falta a capacidade de sobrevivência autônoma, por impedimento intelectual, e não meramente uma discriminação. Seria então, embora não se expresse dessa maneira, até mesmo uma proteção à uma figura que carece de meios de sobreviver por si.

Sobre o anarquismo radical, Höffe entende que quando se pensa na ausência completa de uma força coatora, isso se baseia no pensamento de que “dos conflitos existentes e dos pensáveis nenhum justifica uma solução com mandato para exercício da coerção”. Outra leitura é de que, podem existir tais conflitos, mas eles não são necessários, devendo-se evitá-los desde o começo. O autor, discordando em parte do pensamento anarquista, entende que não existe um convívio livre de conflito, e que este pode significar algo importante para o homem.

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 Aqui encontra-se margem para que seja introduzido o pensamento de Chantal Mouffe quando trata de democracia moderna e diz que:

“A  democracia liberal moderna aceita o pluralismo, que é entendido como a ideia substantiva da vida boa. O reconhecimento do pluralismo implica uma profunda transformação na organização simbólica ordenação das relações sociais. Diz que existe uma diversidade de concepção de bem na sociedade liberal, mas que a diferença importante não é a empírica mas está no nível simbólico. O que está em jogo é a legitimação do conflito e divisão, o surgimento da liberdade individual e da afirmação da igual liberdade para todos” (MOUFFE, 2000, p. 191tradução livre)

Ainda, Mouffe prossegue em sua critíca à teoria de justiça de Rawls dizendo que o conflito pode ser a base da democracia, pois:

“ A ilusão da resolução de conflitos carrega implicitamente o desejo de uma sociedade reconciliada, onde o pluralismo teria sido substituído. Quando é concebida de tal forma, a democracia pluralista torna-se uma "ideal auto-refutável ", porque o momento da sua realização coincidiria com a sua desintegração.”

Höffe da mesma forma critica a teoria de Rawls dizendo que para ele, Rawls é a figura central do reaparecimento da teoria do contrato social em que o estado de natureza é a posição original, e o componente moral é o véu da ignorância, nas palavras do autor. Ele crítica a falta de pressupostos da posição original, e analisa a teoria de rawls como de cooperação e conflito, conflitos que surgem da cooperação, cooperação pela escassez de recursos, quando estes se encontram em abundância, e critica a tese alegando que a cooperação que apregoa Rawls está sempre ligada a uma escassez moderada. Na verdade o autor critica a teoria de Rawls dizendo que ela possui sim muitos pressupostos iniciais quando diz respeito aos bens chamados primários (liberdades), mas que apresenta poucos requisitos, ou menos do que o necessário, quando se imagina uma sociedade de conflito ante a escassez de bens (materiais, recursos).


8 Anarquia e Ceticismo

A doutrina Anarquista tem um certo ceticismo como princípio social, ceticismo questionador dos mandatos políticos como legitimados para a coerção estatal, pois esta dominação   seria ilegítima não  empiricamente mas normativamente.

O autor utiliza  a palavra Herrschaft [Herr: senhor, mais velho, mais digno]  no sentido de superioridade social e prestígio (HÖFFE, 2005, p.168). Então a dominação referida diz respeito a um tratamento social, e não político ou econômico. O autor remonta a problemática jurídico-política desde o mundo antigo até a modernidade, e desemboca no conceito da liberdade das instituições, estas conceituadas como uma organização social criada por um poder que dura porque ela contém, uma ideia fundamental aceita pela maioria dos membros do grupo.. A legitimação, segundo Hoffe, decorre da institucionalização à serviço da justiça.

A respeito da mediação, ressalta este autor que quando exercida entre os detentores de discursos  deve ser também legítima, sob pena de tornar falaciosa a discussão. 

“quando as instituições pluralistas são substituídas por ideias que aparentam uma pseudo-compleição cidadã, mas nada mais seriam que os oportunismos em detrimento dos interesses fundamentais da sociedade, fomentando um processo de segregação de direito e do Estado, às vistas de interesses particularizados ou de concepções políticas predominantes”

Sobre a cooperação e o conflito, Hoffe afirma que

“Mas esta é a crise pluralista em que se vive atualmente, é preciso, pois, considerar a afirmação dos novos paradigmas que se têm em sociedade e aí não faltam correntes que introduzem algumas reflexões entre a conservação do pensamento tradicional e a reconstrução a partir de teorias e interpretações paradigmáticas.”

Por isso vai afirmar Höffe (2000, p.335): “Sempre pressupondo uma vantagem distributiva, os argumentos de cooperação falariam por uma sociedade relativamente muito diferenciada, enquanto os argumentos de conflito falariam pela institucionalização, nesta sociedade”.


9 Fases da Dominação

O autor fala de um período de dominação pré política (despotismo pre-político) em que ainda que não exista um poder estabelecido e mandatos legitimadores de coerção, existiria sim, uma dominação sem dominadores, sem império de mandatos e coerção, uma regulação impessoal, , costumes, tabus e leis que devem ser cumpridos com exatidão. Max Weber chama de “anarquia regulada” e dá o exemplo de algumas tribos sem cacique (acéfalas).

Falando a respeito da virtude ética, o autor traz os conceitos de aristóteles, que diz que ética é não se deixar dominar pelas paixões, pois não existe um Estado sem cobiça e inocente, sendo preciso ordenar as paixões. Para ele virtudes éticas são posturas sociais e políticas. A amizade, como a liberdade, generosidade e justiça são fundadoras de entendimento entre os homens, por fim cuida da unidade entre os estados, sendo mais importante para o legislador mesmo do que a justiça (ética a nicomaco). Porem, para aristoteles, endo impossível se constituir um estado apenas de homens perfeitos, assim  a pólis também não é uma comunidade de “asilo moral”. Para o autor, Aristóteles exagera quando entende que a felicidade do indivíduo e do Estado seriam a mesma coisa, pois a pólis não é senão aquela que coloca à disposição os pressupostos econômicos, sociais e jurídicos enquanto a auto-realização ou humanidade deve ser efetivada pelo cidadão.


10 Justiça política como princípio de uma sociedade de liberdade

Falando ainda sobre a legitimação política, sobre o ponto de vista ético de justiça, o autor traz as 3 condições para aplicação da justiça política: cooperação ou conflito, felicidade ou liberdade e sua mediação final. Detalhando esta ideia, temos que a tarefa da legitimação política consiste na determinação de dois elementos e sua mediação final. Os dois elementos são 1) o ponto de vista ético da justiça como um elemento normativo de terceiro grau e como vantagem distributiva contra o ceticismo do positivismo jurídico; 2) esclarecer as condições descritivas  da aplicação da justiça política (cooperação ou conflito, felicidade ou liberdade); 3) Mediação. A mediação se dá no que o autor chama de 3 tarefas parciais: ao comparar e demonstrar que a coexistencia de liberdade dirigida por regras é superior a uma auto-regulação espontânea; o estado de natureza secundário é superior ao estado de natureza primário, e por último que a institucionalização das regras  (superação do estado secundário) é mais vantajosa para todos os afetados.


11 Etapas da Justiça

O autor considera a justiça sob três etapas: a justiça natural (que é na sua visão pré-institucional), a justiça institucional e, por último, de uma justiça política. A justiça natural se enlaça no discurso da legitimação dos direitos humanos, proteção à vida, liberdades fundamentais.

A justiça institucional significa que a justiça deve deixar de ser uma troca de liberdades (este dilema diacrônico da reciprocidade) superando ao passar de gerações.

A justiça política se dá pela articulação dos princípios positivados da justiça com a racionalidade científica, com o consenso moral e as relações de cooperação entre ciência e política, de tal sorte que a coletividade recebe uma chance de encontrar e reconhecer, sob as condições atuais das sociedades complexas, as formas concretas de justiça política, em resumo, de realizá-la historicamente (HÖFFE, 2000, p.437).


12 Discurso da Justiça Redimensionado

Na 3ª parte da obra o autor procura “redimensionar” o discurso de justiça e projetá-lo na contemporaneidade.

Quando o autor fala de justiça política como princípio de uma sociedade de liberdade, ele faz uma construção tripartite:

1) uma justiça natural ou pré-institucional em que há uma justiça definidora da liberdade fundamental e uma normadora pelo direito positivo (uma justiça que define o direito e uma que normatize);

2) uma justiça institucional em que se firmam as normas por mandatários legitimados para tal mister (a realização) e;

3) uma justiça política que buscaria o consenso entre a moral e a cooperação entre ciência e política, os princípios de justiça aliados à razão crítica e o reconhecimento da coletividade por uma concretização histórica das instituições.

Levando o assunto para a antropologia política, a discussão é da adoção de um desses dois modelos, a cooperação ou o conflito. Então o autor traz os argumentos em favor da cooperação. Supostamente, a “liberdade da dominação” é a ideia do anarquismo, que crê que a colaboração é possível sem coerção, enquanto o modelo de conflito parece ser contrário a uma ideia de coerção social, ter um preconceito contra a coerção.


Conclusão

Conclui-se que atravessadas as etapas de uma justiça natural que define as liberdades fundamentais e as garante normativamente pelo direito positivo, além de uma justiça institucional que legitima e resguarda tais liberdades com certa permanência às gerações, chega-se à justiça política, cujo interesse é o da realização histórica das instituições reconhecidas e de competência da coletividade, por meio da racionalidade crítica aliada aos princípios da justiça, do consenso da moral e das relações entre ciência e política.


Referências Bibliográficas

GARGARELLA, Roberto. Teorias da justiça depois de Rawls, um breve Manual de filosofia política, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2008.

MOUFFE, Chantal. The Democratic Paradox, London-New York, Verso, 2000

HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do Direito e do Estado. 3a. ed. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Justiça e Direito)

VIEIRA, Lara Fernandes; SOUZA, Rogério da Silva e. A justiça política de Otfried Höffe. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3761, 18 out. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25531>. Acesso em: 14 set. 2014.

RAWLS, John, Uma Teoria da Justiça, Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves – São Paulo: Martins Fontes, 1997.

Sobre os autores
Rafael Gomiero Pitta

Advogado .Professor universitário em UniBalsas - Faculdade de Balsas. Especialização em Direito Civil e Processo Civil.

André Luiz de Aguiar Paulino Leite

Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Mestrando em Ciência Jurídica (UENP). Tecnólogo Gestão Pública (IF-PR). Membro do Grupo de Pesquisa em Constituição, Educação, Relações do Trabalho e Organizações Sociais – GPCERTOS, registrado no CNPQ pela UENP. Bolsista da CAPES. Advogado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PITTA, Rafael Gomiero; LEITE, André Luiz Aguiar Paulino. O discurso redimensionado da justiça de Otfried Höffe. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4578, 13 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45770. Acesso em: 22 nov. 2024.

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