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A responsabilização penal do adolescente infrator e a ilusão de impunidade

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Agenda 15/12/2003 às 00:00

Inobstante a mídia forneça dados inverídicos para a sociedade sobre o adolescente em conflito com a lei, fazendo crer que não há responsabilização, na verdade existe um amplo sistema de garantias e medidas previstas, estando de acordo inclusive com a normativa internacional.

"Num momento em que se abre uma polêmica nacional, referente à redução da imputabilidade penal, inclusive com inúmeros projetos de lei em tramitação; num momento ainda em que a insegurança da sociedade, cada vez mais assustada com o aumento da criminalidade e da violência, gera discussões calorosas, acirradas e radicais sobre as soluções para o problema, há que se ter, antes de decisões possivelmente paliativas e equivocadas, uma visão mais ampla e profunda das características do adolescente infrator e do ato por ele cometido" (VIEIRA, 1999, p. 16).


INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva compreender a responsabilização penal do adolescente infrator, que ocorre através das medidas sócio-educativas, e a sensação da ilusão de impunidade.

O principal objetivo é entender que, inobstante a mídia forneça dados inverídicos para a sociedade sobre o adolescente em conflito com a lei, fazendo crer que não há responsabilização, na verdade existe um amplo sistema de garantias e medidas previstas, estando de acordo inclusive com a normativa internacional.

Diante disso, é inevitável e essencial a exploração do tema para dirimir a ilusão de impunidade, o que só será alcançado através de uma aplicação eficaz das medidas sócio-educativas, para a recuperação dos adolescentes infratores e a conseqüente preservação da segurança pública.

A pesquisa produzida tem como finalidade primordial contribuir para a desconstrução do mito da impunidade, através do conhecimento da responsabilização penal do adolescente infrator.

Na composição e estruturação do tema, empregou-se uma metodologia baseada na pesquisa bibliográfica interdisciplinar, de forma a garantir a logicidade da pesquisa, que se divide em três capítulos.

O primeiro capítulo, Histórico e Fundamentos da Legislação voltada à Criança e ao Adolescente, consiste em considerações sobre a evolução das normas e das instituições voltadas para a proteção e responsabilização penal da criança e do adolescente, bem como a normativa internacional e os princípios orientadores.

O segundo capítulo, A Responsabilização Penal do Adolescente Infrator, aborda o perfil do adolescente em conflito com a lei e as medidas sócio-educativas, quais sejam, advertência, reparação do dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação, que são analisadas individualmente.

No terceiro capítulo, A Ilusão de Impunidade, traça-se um paralelo entre os mitos existentes sobre a responsabilização penal do adolescente infrator, com o objetivo de demonstrar que existe uma ilusão de impunidade.

Aborda-se inclusive, perspectivas e propostas para a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Nas considerações finais, são sintetizadas algumas questões específicas sobre a pesquisa.


1. HISTÓRICO E FUNDAMENTOS DA LEGISLAÇÃO VOLTADA À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE

Os interesses da criança e do adolescente sempre existiram, mas nem sempre tiveram dimensão suficiente para fomentar o reconhecimento de que suas relações pudessem interessar ao Direito, como explica Paulo Afonso Garrido de Paula (2002, p. 11):

Seus interesses confundiam-se com os interesses dos adultos, como se fossem elementos de uma simbiose onde os benefícios da união estariam contemplados pela proteção jurídica destinada aos últimos. Figuravam, em regra, como meros objetos da intervenção do mundo adulto, sendo exemplificativa a utilização da velha expressão pátrio poder, indicativa de uma gênese onde o Direito tinha como preocupação disciplinar exclusivamente as prerrogativas dos pais em relação aos filhos, suas crias.

Obviamente não existia a diferenciação que se conhece hoje, de criança e adolescente [1], sendo inicialmente feita uma distinção que atualmente conhecemos como sendo de direito civil, entre menores púberes e impúberes, até chegar-se aos conceitos específicos, como o de inimputabilidade penal [2], por exemplo.

Isso se explica porque, como é sabido, nas primeiras civilizações, as mulheres, crianças e estrangeiros não eram considerados cidadãos, como informa John Boswell (apud MENDEZ, 1997, p. 11):

O resto da população permanecia, por toda a vida, numa situação jurídica equiparável à ‘ínfância’, no sentido de que tais relações permaneciam sob o controle de algum outro. Um pai, um senhor, um patrão, um marido, etc. Surge a tentação de deduzir, deste vínculo lingüístico, que as crianças ocuparam a posição de escravos, mas é mais provável que a conexão verbal seja ligada ao fato de que os próprios papéis sociais (escravo, servo, gleba, etc.) eram equivalentes ao papel social da ‘criança’, quanto a poder e condição jurídica, seja qual fosse a idade da pessoa.

Assim, a compreensão dos institutos jurídicos voltados para as crianças e os adolescentes, depende de um conhecimento, em linhas gerais, da evolução histórica desse ramo do Direito.

1.1.Precedentes Históricos

Desde a Antigüidade [3], tanto no Ocidente quanto no Oriente, os filhos não eram considerados sujeitos de direito, durante a menoridade, mas sim servos da autoridade paterna, como relata José de Farias Tavares (2001, p. 46):

O regime era comum a diversos povos, oriundo das civilizações primitivas. O poder do patriarcado romano tinha o mesmo absolutismo no mundium do Direito germânico. O pai tinha o terrível jus vitae necis sobre a pessoa do seu filho não emancipado, podendo aliená-lo, e nos tempos mais recuados, até matá-lo. O filho "pertencia" ao pater, palavra esta que, segundo alguns romanistas, significava muito mais poder que paternidade propriamente dita, no sentido atual de relação parental e afetuosa da família.

Em Esparta, a criança era objeto de Direito estatal, para ser aproveitada como futura formação dos contingentes guerreiros, com a seleção precoce dos fisicamente mais aptos, e os infantes portadores de deficiência, com malformações congênitas ou doentes, eram jogados nos despenhadeiros.

O Código de Hamurabi [4] previa a pena de morte para o homem que roubasse o filho menor de outro, demonstrando uma proteção distinta, com base na idade.

No Direito Romano [5], os juristas distinguiam os menores púberes dos impúberes, e era feita uma avaliação física para saber se o jovem era púbere. Por outro lado, o povo judeu [6] amenizava a severidade das penas quando os autores eram menores impúberes ou órfãos.

O Direito Medieval, de acordo com José de Farias Tavares (2001, p. 48), atenuou a severidade de tratamento das pessoas de idade mais tenra, em razão da influência do estoicismo e posteriormente do cristianismo. Já o Direito canônico manteve o princípio reverencial, que tinha profunda repercussão na educação doméstica cristã.

No Período Feudal, relata Maria Auxiliadora Minahim (apud SARAIVA, 2003, p. 14), que em países como a Itália e a Inglaterra, era utilizado o método da ‘prova da maçã de Lubecca’, que consistia em oferecer uma maçã e uma moeda à criança, sendo que se escolhida a moeda, considerava-se comprovada a malícia, sendo inclusive aplicada pena de morte a crianças de 10 e 11 anos.

Assim, só com o desenrolar da História, a evolução da cidadania e o aperfeiçoamento das legislações, foram sendo criadas regras específicas para a proteção da infância e da adolescência.

Emílio Garcia Mendez (apud SARAIVA, 2003, p. 14) enumera que, do ponto de vista do Direito, em termos de responsabilização penal, é possível dividir a história do Direito Juvenil em três etapas: a) de caráter penal indiferenciado; b) de caráter tutelar e c) de caráter penal juvenil.

A primeira etapa, marcada pelo caráter indiferenciado, vai do século XIX até a primeira década do século XX, e caracterizou-se por considerar as crianças e os adolescentes da mesma forma que os adultos, na medida em que eram recolhidos no mesmo espaço.

Já o segundo momento, originado nos Estados Unidos, tem início a partir do Século XX, fase em que a norma passa a ter um caráter tutelar. A terceira etapa, a partir de 1959, inaugura um processo de responsabilidade juvenil, caracterizada por conceitos como separação, participação e responsabilidade.

1.2 Normativa Internacional

O estudo da normativa internacional [7] possui grande importância porque a legislação brasileira é influenciada, em seu ordenamento jurídico, pelas normas internacionais [8].

João Batista Costa Saraiva (2003, p. 31) aduz que o primeiro Tribunal de Menores foi criado em Ilinois, EUA, em 1899, sendo que a partir da experiência americana, outros países aderiram à criação de Tribunais de Menores, instituindo seus próprios juízos especiais: Inglaterra em 1905, Alemanha em 1908, Argentina em 1921, Japão em 1922, Brasil em 1923, Espanha em 1924, México em 1927 e o Chile em 1928.

De acordo com Munir Cury (2002, p. 12), a constatação internacional de que as crianças e adolescentes necessitavam de uma legislação especial foi prevista inicialmente em 1924, através da Declaração de Genebra, que determinava a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial.

Os autores complementam que em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas estabeleceu o direito a cuidados e assistência especiais. Seguindo a mesma orientação, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), em 1960, declarou em seu art. 19:

Toda criança tem direito às medidas de proteção que na sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado.

A Declaração dos Direitos da Criança, celebrada em 1959, considerando os princípios proclamados na Carta das Nações Unidas, definiu os direitos universais das crianças, reconhecendo que a infância tem direito a cuidados e assistências especiais. O art. 12 [9], da Convenção, refere-se ao direito da criança manifestar a sua opinião e expressá-la livremente.

Já o art. 40, caput, reconhece que mesmo no caso de violação às leis penais, a criança e o adolescente merecem um tratamento diferenciado, de modo a promover seu sentido de dignidade e valor, objetivando-se a reintegração na sociedade:

Os Estados Partes reconhecem o direito de toda criança, a quem se alegue ter infringido as leis penais ou a quem se acuse ou declare culpada de ter infringido as leis penais, de ser tratada de modo a promover a estimular seu sentido de dignidade e valor, e fortalecerão o respeito da criança pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais de terceiros, levando em consideração a idade da criança e a importância de se estimular sua reintegração e seu desempenho construtivo da sociedade.

As Regras de Beijing, recomendadas no 7º Congresso das Nações Unidas sobre prevenção de delito e tratamento do delinqüente, realizado em Milão no período de 26.08 a 06.09.85, e adotada pela Assembléia Geral em 29.11.85, estabelecem como orientação fundamental a necessidade de promover o bem estar da criança e do adolescente, bem como de sua família, prevendo que a Justiça da Infância e da Juventude será concebida como parte integrante do processo de desenvolvimento de cada país, prevendo a Regra 7:

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Respeitar-se-ão as garantias processuais básicas em todas as etapas do processo, como a presunção de inocência, o direito de ser informado das acusações, o direito de não responder, o direito à assistência judiciária, o direito à presença dos pais ou tutores, o direito à confrontação com testemunhas e a interrogá-las e o direito de apelação ante uma autoridade superior.

Deve-se às essas regras a moderna inclinação no sentido de restringir a delinqüência juvenil às infrações do Direito Penal, sem incluir assim fatos penalmente indiferentes.

Em 1980, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança foi aprovada pela Assembléia das Nações Unidas, com natureza coercitiva, exigindo dos Estados deveres e obrigações. De acordo com Josiane Rose Petry Veronese (1997, p. 23): "Se fizéssemos um paralelo entre a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e o Estatuto da Criança e do Adolescente poderíamos constatar a grande afinidade entre os dois normativos". Fazendo um comparativo entre a Convenção Internacional e a Declaração Universal dos Direitos da Criança, a autora (1997, p. 12) esclarece ainda que:

Nesse sentido, chama atenção o fato de que a Convenção Internacional, diferentemente da Declaração Universal dos Direitos da Criança, não se configura numa simples carta de intenções, uma vez que tem natureza coercitiva e exige do Estado Parte que a subscreveu e ratificou um determinado agir, consistindo, portanto, num documento que expressa de forma clara, sem subterfúgios, a responsabilidade de todos com o futuro.

Em 14 de dezembro de 1990 a Assembléia Geral das Nações Unidas publicou as Regras Mínimas para os Jovens Privados de Liberdade, reconhecendo a vulnerabilidade dos adolescentes, preconizando a necessidade de atenção e proteção especiais para que sejam garantidos os direitos de cada adolescente, dispondo na Regra 2:

Os adolescentes só devem ser privados de liberdade de acordo com os princípios e processos estabelecidos nestas Regras e nas Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing). A privação de liberdade de um adolescente deve ser uma medida de último recurso e pelo período mínimo necessário e deve ser limitada a casos excepcionais. A duração da sanção deve ser determinada por uma autoridade judicial, sem excluir a possibilidade de uma libertação antecipada.

Ainda em 1990, foram aprovadas as Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinqüência Juvenil – Diretrizes de Riad, reconhecendo que é necessário estabelecer critérios e estratégias nacionais, regionais e inter-regionais para prevenir a delinqüência juvenil, prevendo no art. 1º:

A prevenção da delinqüência juvenil é parte essencial da prevenção do delito na sociedade. Dedicados a atividades lícitas e socialmente úteis, orientados rumo à sociedade e considerando a vida com critérios humanistas, os jovens podem desenvolver atitudes não criminais.

Já no plano interno, a legislação brasileira é considerada a primeira, dentre as legislações dos países latino-americanos, que incorporou em seu texto tanto as regras de proteção e de garantia dos direitos do adolescente infrator como as de proteção da criança vítima de abandono ou outra violência.

Percebe-se que, a normativa internacional sobre o tema possui vastos e específicos dispositivos voltados para a proteção da infância e juventude, demonstrando a importância e seriedade que o assunto envolve no âmbito internacional, e servindo de inspiração para o legislador brasileiro.

1.3 Legislação Nacional e a Responsabilização Penal da Criança e do Adolescente

De acordo com Sônia Margarida (2002, p. 34), em palestra realizada na IV Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente [10], o Brasil demorou cinco séculos para construir leis de atenção à infância e à adolescência, atravessando os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX sem editar nenhuma disposição legal sobre o tema, ponderando que:

Sabemos que este não é um dado sem significados. Isto diz muito sobre as concepções de infância e de adolescência que têm sido historicamente dominantes em nosso país, sobre as políticas que têm sido elaboradas e sobre as que não têm sido desenvolvidas e implementadas. Refletir sobre o atendimento prestado à infância e adolescência significa pensar a própria história da infância e adolescência brasileira.

A autora prossegue, dissertando sobre o tema, explicando que as primeiras medidas educativas ou de política pública para a infância brasileira foram a criação das ‘Casas de Roda’ [11], fundada na Bahia em 1726, a ‘Casa dos Enjeitados’, no Rio de Janeiro em 1738, e a ‘Casa dos Expostos’, no Recife em 1789, destinadas a abrigar crianças e adolescentes.

No período colonial [12], as crianças filhas de índios e escravos não possuíam nenhum tipo de proteção legal e não podiam dispor nem sequer de um documento de identidade, o que demonstra que não tinham nenhum direito assegurado legalmente.

No Brasil colônia, os espaços sociais eram absolutamente distintos e imóveis. Assim, havia duas infâncias e adolescências e duas formas sociais de construção dessa fase da vida humana: a infância e adolescência dos filhos brancos portugueses e a infância e adolescência dos índios (MARGARIDA, 2001, p. 35).

Até 1830, João Batista Costa Saraiva (2003, p. 23) explica que vigoravam as Ordenações Filipinas, e a imputabilidade penal iniciava-se aos sete anos, eximindo-se o menor da pena de morte e concedendo-lhe redução da pena. A título de comparação com a o que estava acontecendo no cenário mundial no mesmo momento, o autor destaca que:

Na Inglaterra se construía o embrião do Direito da Infância. Era editada a primeira normativa de combate ao trabalho infantil, conhecida como Carta dos Aprendizes, de 1802, ato que limitava a jornada de trabalho à criança trabalhadora ao máximo de doze horas diárias e proibia o trabalho noturno.

O autor prossegue explicando que em 1830, o primeiro Código Penal brasileiro fixou a idade de imputabilidade plena em 14 anos, prevendo um sistema biopsicológico para a punição de crianças entre 07 e 14 anos.

Já em 1890, o Código Republicano previa em seu art. 27, § 1º, que irresponsável penalmente seria o menor com idade até 09 anos. Assim, o maior de 09 anos e menor de 14 anos submeter-se-ia a avaliação do Magistrado.

De outro lado, Paula Gomide (2002, p. 20) considera que a história da política social brasileira voltada para as crianças e adolescentes pode ser dividida em três fases.

A primeira fase caracteriza-se pela criação de programas de assistência ao menor a cargo da assistência médica, cujas principais medidas utilizadas eram de caráter profilático. Essa preocupação culminou com a fundação do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro, em 1889.

Já na segunda fase, os termos ‘criança’ e ‘menor’ começam a ser diferenciados, sendo criadas instituições correcionais. É nessa etapa que surge o primeiro Código de Menores [13], criado através do Decreto-Lei nº 17.947/27-A, no dia 12 de outubro de 1927, conhecido como o ‘Código de Mello Matos’.

Josiane Rose Petry Veronese (1999, p. 26) relata que o Código de Mello Mattos sintetizou, de maneira ampla e aperfeiçoada, leis e decretos que se propunham a aprovar um mecanismo legal que desse atenção especial à criança e ao adolescente. A autora comenta ainda que o Código substituiu concepções obsoletas, passando a assumir a assistência ao menor de idade, sob a perspectiva educacional.

Paula Gomide (2002, p. 15) lembra que em 1930, os escritores Jorge Amado e Anton Makarenko ofereceram às comunidades científica e literária internacionais duas obras fundamentais para o entendimento das questões referentes às crianças e adolescentes marginalizados, nos seguintes termos:

MAKARENKO, consagrado educador russo, em 1933, publicou Poemas Pedagógicos, onde narrou sua extraordinária experiência ao dirigir uma instituição correcional para crianças e jovens considerados antisociais. Em Capitães da Areia, publicado em 1937, Jorge Amado retratou, com a precisão peculiar do romancista sensível que é, a realidade em que viviam os meninos abandonados da cidade de Salvador.

A terceira fase é marcada pela criação do Serviço de Assistência ao Menor (SAM), em 1941, e depois da Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FUNABEM) [14], em 1964, através da Lei nº 4.513/64, entidade que deveria amparar, através de políticas básicas de prevenção e centradas em atividades fora dos internatos e também através da medida sócio-terapêutica, que compreendia as ações dirigidas aos infratores internados [15].

A inspiração para os discursos e para as novas legislações que serão produzidas neste momento vem da legislação americana que, em nome da proteção da criança e da sociedade, concedeu aos juizes o poder de intervir nas famílias, particularmente nas famílias pobres e nos chamados lares desfeitos, quando se julgava que, por sua influência, as crianças poderiam ser encaminhadas para o crime (ABONG, 2001, p. 37).

Nessa época, como lembra Josiane Rose Petry Veronese (1998, p. 153), o Estado brasileiro não permitia a participação popular e armava-se de mecanismos que lhe garantiam reprimir as formas de resistência popular, como por exemplo, a centralização do poder. A própria FUNABEM é um exemplo dessa centralização, pois a instituição foi delegada para ser administrada pela Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM). A autora complementa que:

A PNBEM, como as outras políticas sociais definidas neste período do regime militar, revestiu-se com um manto extremamente reformista e modernizador, passando a colocar em relevo uma perfeição técnico-burocrática e metodológica. Dava-se ao problema do então "menor" soluções pragmáticas e imediatistas, que se propunham escamotear sua verdadeira natureza (VERONESE, 1998, p. 153-154).

O SAM tinha objetivos de natureza assistencial, enfatizando a importância de estudos e pesquisas, bem como o atendimento psicopedagógico, no entanto, não conseguiu contribuir suas finalidades, como explica Josiane Rose Petry Veronese (1999, p. 32): "No entanto, o SAM não conseguiu cumprir suas finalidades, sobretudo devido à sua estrutura emperrada, sem autonomia e sem flexibilidade e a métodos inadequados de atendimento, que geraram revoltas naqueles que deveriam ser amparados e orientados".

Sobre a FUNABEM, a autora relata (VERONESE, 1999, p. 35) que serviu como instrumento de controle da sociedade civil, mas demonstrou que não estava sendo eficiente, ante o crescimento do número de crianças marginalizadas, além da incapacidade [16] de proporcionar a reeducação.

No entanto, e infelizmente, apesar dos princípios ditos tuteladores que fundamentavam a doutrina da "situação irregular", as instituições que deveriam acolher e educar esta criança ou adolescente, no mais das vezes não cumpriam este papel. Isso porque a metodologia aplicada, ao invés de socializá-lo, o massificava, o despersonalizava, e deste modo, ao contrário de criar estruturas sólidas, nos planos psicológico, biológico e social, afastava este chamado menor em situação irregular, definitivamente, da vida comunitária (VERONESE, 1997, p. 96).

A Constituição Federal de 1934, abordou o tema de forma genérica, referindo-se à maternidade e à infância, sendo que em todas as constituições que se seguiram foram sendo acrescentadas previsões expressas de um tratamento diferenciado para a criança e o adolescente, como explica José de Farias Tavares (1999, p. 13):

A nível constitucional a preocupação do legislador brasileiro foi consignada pela primeira vez na Constituição de 1934, art. 121, § 1º, d, e § 3º, arts. 139 e 150, parágrafo único, se bem que de forma genérica referindo-se à maternidade e à infância. Na Carta autocrática de 1937: arts. 16, XXVII, 127, 129 a 132 e 137, K, Constituição democrática de 1946: arts. 157, IX, 164, 168, I a III. A Lex Magna de 1967: arts. 158, X, 167, § 4º, 168, § 3º, II e 170, que, com a Emenda 1/69, foram remunerados para, respectivamente: arts. 165, X, 175, § 4º, 176, § 3º, II e 178.

O Código Penal de 1940 (Decreto-Lei nº 2.848, de dezembro de 1940), que está em vigor até hoje, estabeleceu a imputabilidade penal aos 18 anos de idade, em seu art. 27 [17].

Durante o regime militar, João Batista Costa Saraiva (2003, p. 50) lembra que o Código Penal Militar – Decreto-Lei nº 1.001, de 21.10.1969, fixou a imputabilidade penal, frente a crimes militares em 16, dispositivo que só veio a ser totalmente revogado pela Constituição Federal de 1988.

Em 1979, na comemoração do Ano Internacional da Criança, foi publicada a Lei nº 6.697/79, instituindo o segundo Código de Menores, fundamentado na Doutrina da Situação Irregular [18].

Através da Lei nº 7.209, de 11.07.1984, foi dada nova redação à Parte Geral do Código Penal, mantendo a imputabilidade penal aos 18 anos [19], observando assim um critério objetivo.

O governo de transição democrática editou o Decreto-Lei nº 2.318, de 30 de dezembro de 1986, que dispunha sobre a iniciação ao trabalho do menor assistido e instituía o "Programa do Bom Menino", depois, foi publicado o Decreto nº 94.337 de 1987, que regulamentou o programa. Em 1987, através da Lei nº 7.644, houve a regulamentação da atividade da ‘mãe social’ [20].

Analisando a evolução histórica da legislação nacional dispensada ao Direito da Criança e do Adolescente percebe-se que muito embora tenham sido criadas normas específicas, estas não alcançaram todos os objetivos propostos, pois as entidades de internação apresentavam graves problemas, os quais persistem até hoje, como a promiscuidade e a ausência de profissionais especializados, deixando-se assim de garantir a proteção integral ao adolescente.

Toda essa previsão legal, embora meritória mas utópica, não teve correspondência na prática, já que não encontrou campo propício ao seu desenvolvimento. É preciso, de uma vez por todas, que as nossas autoridades se conscientizem de que os problemas sociais, econômicos e mesmo políticos não se resolvem com a feitura de leis, que nunca chegam a ser aplicadas, ou por serem inexeqüíveis ou porque são elaboradas com o único propósito de se dar ao povo a impressão de que alguma coisa está sendo feita (NOGUEIRA, 1996, p. 6).

Ou seja, ao dar prioridade para políticas excludentes, repressivas e assistencialistas, o país perdeu a oportunidade de colocar em prática políticas públicas capazes de promover a cidadania, como indica Josiane Rose Petry Veronese (1998, p. 161):

Observou-se, outrossim, que a questão da criança e do adolescente não deixou de ser, ao longo da história, contemplada em leis. Todavia, raramente estas foram obedecidas, o que reforça a idéia de que o ordenamento jurídico, por si só, não resolve os problemas sociais. Urgem, portanto, medidas públicas adequadas à demanda. Faz-se necessária a implantação de políticas que garantam acesso a uma educação popular, ao trabalho e ao salário justo, como, também, é imprescindível o engajamento de toda a sociedade, sobretudo daqueles segmentos que detêm o capital e, dessa forma, têm condições de engajar-se em campanhas e projetos alternativos que visem à criança e ao adolescente, fazendo-os trilhar pelo caminho da consolidação da cidadania.

Já a Constituição de 1988 foi mais abrangente, dispondo sobre a aprendizagem, trabalho e profissionalização, capacidade eleitoral ativa, assistência social, seguridade e educação, programa de rádio e televisão, proteção como múnus público, prerrogativas democráticas processuais, incentivo à guarda, prevenção contra entorpecentes, defesa contra abuso sexual, estímulo à adoção e a isonomia filial. [21]

Assim, pela primeira vez na história da legislação brasileira, a criança e o adolescente são tratados como prioridade absoluta, sendo dever da família, da sociedade e do Estado protegê-los.

Em 1993, através da Lei nº 8.742/93, Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e da Lei nº 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), surge a inspiração para a implantação dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, dos Conselhos Tutelares e dos Conselhos Setoriais de políticas públicas.

Inspirando-se na legislação internacional, bem como em toda a abrangência da Constituição Federal, com o advento do ‘Brasil Novo’, a Lei nº 8.069/90 criou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), revogando o Código de Menores, rompendo com a doutrina da situação irregular, estabelecendo como diretriz a doutrina da proteção integral.

Ressalta-se que o ECA, além de prever a proteção integral, elevou o adolescente a categoria de responsável pelos atos considerados infracionais que cometer, através da aplicação das medidas sócio-educativas, revolucionando assim o entendimento até então existente, e servindo de alento para a sociedade vitimada pela falta de segurança.

1.4 Princípios Orientadores

O ECA é regido por uma série de princípios, que servem para orientar o intérprete, sendo os principais, conforme o entendimento de Paulo Lúcio Nogueira (1996, p. 15), os seguintes: Prevenção Geral, Prevenção Especial, Atendimento Integral, Garantia Prioritária, Proteção Estatal, Prevalência dos Interesses, Indisponibilidade, da Escolarização Fundamental e Profissionalização, Reeducação e Reintegração, Sigilosidade, Respeitabilidade, Gratuidade, Contraditório e Compromisso.

O Princípio da Prevenção Geral está previsto no art. 54, incisos I e VII [22], e art. 70 [23], segundo os quais, respectivamente, é dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente ensino fundamental obrigatório e gratuito, e é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação desses direitos.

Pelo Princípio da Prevenção Especial, expresso no art. 74 [24], o Poder Público, através dos órgãos competentes, regulará as diversões e espetáculos públicos, informando sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e os horários em que sua apresentação de mostre inadequada.

O Princípio da Garantia Prioritária, consignado no art. 4, alíneas a, b, c e d [25], estabelece que a criança e o adolescente devem receber prioridade no atendimento dos serviços públicos e na formulação e execução das políticas sociais.

O Princípio da Proteção Estatal, evidenciado no art. 101 [26], significa que programas de desenvolvimento serão estabelecidos visando a formação biopsíquica, social, familiar e comunitária.

Seguindo a mesma orientação, os Princípios da Escolarização Fundamental e Profissionalização, encontrados nos arts. 120, § 1º e 124, inciso XI [27], tornam obrigatórias a escolarização e a profissionalização.

Já o Princípio da Prevalência dos Interesses do Menor, criado através do art. 6 [28], orienta que na interpretação da lei, serão levados em consideração os fins sociais a que o Estatuto se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres indisponíveis e coletivos, e condição peculiar do adolescente infrator de pessoa em desenvolvimento.

O Princípio da Indisponibilidade dos Direitos do Menor e da Sigilosidade, previsto no art. 27 [29], reconhece que o estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, observado o segredo de justiça.

O Princípio da Reeducação e Reintegração, observado no art. 119, incisos I a IV [30], estabelece a necessidade da reeducação e reintegração do adolescente infrator, através das medidas sócio-educativas e medidas de proteção, promovendo socialmente a sua família, fornecendo-lhes orientação e inserindo-os em programa oficial ou comunitário de auxílio e assistência, bem como supervisionando a freqüência e o aproveitamento escolar;

Pelo Princípio da Respeitabilidade e do Compromisso, estabelecidos nos arts. 18, 124, inciso V e art. 178 [31], depreende-se que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor, de acordo com os arts. 18, 124, inciso V e art. 178 [32], sendo que todos que assumirem a guarda ou tutela devem responder bem e fielmente pelo desempenho do seu cargo.

O Princípio do Contraditório [33], previsto inicialmente no art. 5º, LV, da Constituição Federal, garante aos adolescentes infratores ampla defesa e igualdade de tratamento no processo de apuração de ato infracional, como dispõem os arts. 171 a 190 do Estatuto.

A Constituição Federal acolheu o princípio do contraditório como um dos direitos indisponíveis do indivíduo, que, desde os primórdios, não pode ser condenado sem antes ser ouvido. Aliás, Sêneca já ensinava que é iníquo o julgador que sentencia sem ouvir o acusado (VALENTE, 2002, p. 61).

Além disso, João Batista Costa Saraiva (2002 a, p. 16) considera fundamental explicar que o ECA estrutura-se a partir de três sistemas de garantia: o Sistema Primário, o Sistema Secundário e o Sistema Terciário.

O Sistema Primário versa sobre as políticas públicas de atendimento a crianças e adolescentes, previstas nos arts. 4º e 87. O Sistema Secundário aborda as medidas de proteção dirigidas a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social, previstas nos arts. 98 e 101, e, por fim, o Sistema Terciário trata da responsabilização penal do adolescente infrator, através das medidas sócio-educativas, previstas no art. 112, que são aplicadas aos adolescentes que cometem atos infracionais. O autor (2003, p. 24) complementa que:

Este tríplice sistema, de prevenção primária (políticas públicas), prevenção secundária (medidas de proteção) e prevenção terciária (medidas sócio-educativas), opera de forma harmônica, com acionamento gradual de cada um deles. Quando a criança ou o adolescente escapar ao sistema primário de prevenção, aciona-se o sistema secundário, cujo grande agente operador deve ser o Conselho Tutelar. Estando o adolescente em conflito com alei, atribuindo-se a ele a prática de algum ato infracional, o terceiro sistema de prevenção, operador das medidas socioeducativas, será acionado, intervindo aqui o que pode ser chamado genericamente de sistema de Justiça (Polícia/ Ministério Público/ Defensoria/ Judiciário/ Órgãos Executores das Medidas Socioeducativas).

Do exposto, depreende-se que o ECA fundamenta-se em princípios jurídicos herdados de outras normas, como é o caso do Princípio do Contraditório, assegurado inicialmente na Constituição Federal, bem como em fundamentos previstos em legislações internacionais, e que foram previstos de forma expressa em seus artigos, tais como o Princípio da Prevenção Geral e da Proteção Estatal, expresso no art. 4º, segundo o qual:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária.

Além desses princípios previstos na Constituição Federal e no ECA, não podem ser esquecidas, conforme adverte Aloysio Nunes Ferreira (2002, p. 22), em palestra na IV Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, das diretrizes que surgiram com o passar do tempo, através da efetivação de medidas de proteção, como é o caso do Princípio da Descentralização das Ações, que significa o dever da participação da sociedade, por meio das suas entidades representativas, na proteção e reeducação dos adolescentes.

1.5 Doutrina da Situação Irregular e Doutrina da Proteção Integral

No mundo jurídico, para Emílio Garcia Mendez (1997, p. 12), doutrina é o conjunto da produção teórica elaborada por todos aqueles ligados, de uma ou de outra forma, ao tema, sob a ótica do saber, da decisão ou execução. O autor entende ainda que:

Normalmente, em todas as áreas do direito dos adultos a produção teórica encontra-se homogeneamente distribuída entre os diferentes segmentos do sistema, o que, estimulando-se a pluralidade dos pontos de vista, assegura eficazes contrapesos intelectuais na interpretação das normas jurídicas.

A Doutrina da Proteção Integral substituiu a Doutrina da Situação Irregular, fundamento do revogado Código de Menores, sendo que para a compreensão da importância da doutrina atual faz-se necessário discorrer, brevemente, sobre a doutrina que vigorava anteriormente.

A Doutrina da Situação Irregular definia o estado de ‘patologia social’, que quando constatado, indicava que o ‘menor’ deveria ser alcançado pela norma. O revogado Código de Menores, em seu art. 2º estabelecia que se considerava em situação irregular o menor: com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária [34].

Os fundamentos jurídicos dessa doutrina remontam ao Congresso Internacional de Menores, realizado em Paris, no período de 29 de junho a 1º de julho de 1911, momento em que se consagrou, de acordo com Emílio Garcia Mendez (apud SARAIVA, 2003, p. 33), o binômio carência/delinqüência.

Assim, o Código de Menores não garantia uma proteção verdadeira para as crianças e adolescentes, pois se apoiava na falsa idéia de que todos teriam as mesmas oportunidades sócio-econômicas, como se o caminho do crime fosse uma opção, garantindo proteção apenas nas situações determinadas, conhecidas como ‘situações irregulares’

Sobre o mesmo assunto, Wilson Donizeti Liberati (2002, p. 13) explica que:

O Código revogado não passava de um Código Penal do "Menor", disfarçado em sistema tutelar; suas medidas não passavam de verdadeiras sanções, ou seja, penas, disfarçadas em medidas de proteção. Não relacionava nenhum direito, a não ser aquele sobre a assistência religiosa; não trazia nenhuma medida de apoio à família; tratava da situação irregular da criança e do jovem, que na realidade, eram seres privados de seus direitos.

A Doutrina da Proteção Integral tem como antecedente direto a Declaração dos Direitos da Criança (1959), condensando-se em quatro documentos internacionais fundamentais: a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (Regras de Beijing), as Regras Mínimas das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade e as Diretrizes das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (Diretrizes de Riad).

No Brasil, por sua vez, foi inicialmente prevista na Constituição Federal, no art. 227, que prevê:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Ou seja, de acordo com esta doutrina, todos os direitos da criança e do adolescente devem ser reconhecidos, sendo que estes direitos são especiais e específicos, no dizer de João Batista Costa Saraiva (2002 a, p. 15), principalmente pela condição que ostentam de pessoas em desenvolvimento. O autor complementa que:

A Doutrina da Proteção Integral foi adotada pela Constituição Federal, que a consagra em seu art. 277, tendo sido acolhida pelo plenário do Congresso Constituinte pela extraordinária votação de 435 votos contra 8 [...] Na aplicação da Doutrina da Proteção Integral no Brasil, o que se constata é que o País, o Estado e a Sociedade é que se encontram em situação irregular.

Desta forma, consoante José de Farias Tavares (2002, p. 07), enquanto o Código de Menores preocupava-se tão somente com os menores em situação irregular, o ECA inovou [35] ao abranger toda criança e adolescente em qualquer situação jurídica, rompendo definitivamente com a doutrina da situação irregular, assegurando que cada brasileiro que nasce possa ter assegurado seu pleno desenvolvimento, mesmo que cometa um ato considerado ilícito.

Com essa nova orientação, aboliu-se o termo estigmatizante ‘menor’, que passou a ser tratado como ‘criança’ ou ‘adolescente infrator’, como sintetiza Wilson Donizeti Liberati (2002, p. 15).

Na concepção técnico jurídica, "menor" designa aquela pessoa que não atingiu ainda a maioridade, ou seja, 18 anos. A ele não se atribui a imputabilidade penal, nos termos do art. 104 do ECA c/c art. 27 do CP. Se isso não bastasse, a palavra "menor", com o sentido dado pelo antigo Código de Menores, era sinônimo de carente, abandonado, delinqüente, infrator, egresso da FEBEM, trombadinha, pivete. A expressão "menor" reunia todos esses rótulos e os colocava sob o estigma da "situação irregular".

Ou seja, a partir da entrada em vigor do ECA foram estabelecidas as diretrizes para uma política pública que reconhece a condição especial de pessoa em desenvolvimento, que as crianças e os adolescentes merecem, tanto que, em seu art. 1º, prevê:

Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.

No entanto, é importante ressaltar que apesar do amplo sistema de garantias previsto nessa lei, nem todos os seus objetivos foram imediatamente alcançados, porque a sua efetivação depende de diversos fatores, tais como a existência de medidas públicas e a diminuição da criminalidade e da miséria, como lembra Cláudio Augusto Vieira da Silva (2001, p. 13), ao apresentar a IV Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente:

Nestes anos todos de implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente, os índices de violência aumentaram significativamente, assim como o empobrecimento da população. Na mesma medida, crianças e adolescentes em um maior número estão sujeitos a violações de múltiplas formas e o seu envolvimento em ações de conflito coma lei numa relação direta tem aumentado.

Destarte, o ECA é uma legislação de acordo com todas as diretrizes internacionais sobre os direitos das crianças e dos adolescentes, e se não representa a solução para todos os problemas que a infância e a adolescência brasileira encontram, certamente indica o caminho, através da Doutrina da Proteção Integral.

Sobre a autora
Carla Fornari Colpani

Acadêmica de Direito – UNIPLAC – Universidade do Planalto Catarinense em Lages/SC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COLPANI, Carla Fornari. A responsabilização penal do adolescente infrator e a ilusão de impunidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 162, 15 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4600. Acesso em: 23 dez. 2024.

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