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Cooperação judiciária: passo fundante para a jurisdição internacional

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Agenda 29/01/2016 às 09:55

O princípio da cooperação judiciária entre os povos é prática antiga. Passo a passo, tem evoluído no relacionamento das nações. A cooperação demonstra o desenvolvimento de fórmulas jurídicas de um Estado, quando comparado com outro.

SUMÁRIO:  Introdução. 1. Noções de princípios. 2. Princípios jurídicos: Fases e funções; diferença das regras; norma e texto. 3. A internacionalização de princípios e dos direitos humanos. 4. O princípio da cooperação judiciária. 5. Cooperação judiciária – modalidades. 6. A cooperação judiciária horizontal e transjudicial e a jurisdição internacional. 7. A cooperação judiciária e a construção da jurisdição internacional.Considerações finais. Bibliografia consultada.

“Gli è che nella musica, soprattutto, si celebra l´armonia e pure il diritto tende, come può, all´armonia.”

(Francesco Carnelutti)


Introdução

 O presente trabalho objetiva trazer à baila algumas considerações gerais e introdutórias sobre a cooperação judiciária. Nesse sentido, de início, far-se-á um apanhado categórico das normas jurídicas e o enquadramento da cooperação judiciária como princípio jurídico. Em seguida, enfocar-se-á a importância da internacionalização dos direitos humanos e dos princípios jurídicos, com especial acento, neste passo, no princípio do acesso à justiça, direito humano fundamental de primeira geração e base do princípio da cooperação judiciária.

Na sequência, tratar-se-á do princípio jurídico da cooperação entre os povos, muito bem definido em documentos internacionais, em especial na Carta das Nações Unidas. Este princípio é visível em várias áreas do Direito Internacional, inclusive na dos direitos humanos. Aqui está a matriz do subprincípio da cooperação jurídica. Este, por seu turno, enseja aplicação no campo judicial, através da cooperação judiciária, um princípio jurídico bastante citado pelos autores, em face de sua menção em documentos internacionais, e por ser ele fundamental para o efetivo respeito aos direitos do homem.

Examinar-se-á a cooperação judiciária como princípio jurídico de Direito Internacional Público e sua noção no passo seguinte. Após, abordar-se-ão modalidades de fórmulas de cooperação, fazendo-se menção à cooperação judiciária entre Estados e à cooperação transjudicial.

No tópico seguinte, estudar-se-á a jurisdição internacional, enfatizando-se a generalização dos mecanismos de cooperação, sobretudo o reconhecimento das decisões estrangeiras. Destacar-se-á a jurisdição dos órgãos judiciais e arbitrais reconhecidos pela jurisdição internacional e pela comunidade internacional.

Por fim, analisar-se-á, em rápidas linhas, o processo de unificação da jurisdição do período feudal europeu até se chegar ao Estado moderno, relevando a importância da jurisdição para a formação do Estado nacional e a similitude com os dias atuais em que, ao lado da fragmentação de Estados, há uma instância supranacional, que foi capitaneada por um mercado comum e por uma estrutura judiciária que lhe dá uma certa garantia de existência.

Em suma, enfocar-se-ão os pontos referidos sem que se tenha alcançado uma resposta definitiva sobre o tema, mas apenas reflexões, as quais representam a base de estudo, para análises futuras.


1.  Noções de princípios

O verbete princípio[1] vem do termo latino principium – século XIV, do qual advém a expressão principiare, palavra do latim tardio que significa iniciar, começar, abrir – século XV[2]. No latim, na tradução coeva, principium significa “primeiramente, em primeiro lugar”[3].

No léxico, princípio significa: “1. Momento ou local ou trecho em que algo tem origem; começo. 2. Causa primária. 3. Elemento predominante na constituição de um corpo orgânico. 4. Preceito, regra, lei. 5. P. Ext., base; germe”[4]. Holanda define, também, a expressão como sendo: “1. Rudimentos. 2. Primeira época da vida. 3. Filos. Proposições diretoras de uma ciência, às quais todo o desenvolvimento posterior dessa ciência deve estar subordinado”[5].

No grego, a expressão princípio é encontrada na palavra arché, que tem como significado: “de onde emanam as coisas”[6]. É nesse sentido que a palavra é empregada na Bíblia. Em João 1. 1-2, o texto bíblico traz a seguinte passagem: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez”. E mais, em João 1. 14: “O Verbo se fez carne, e habitou entre nós. Vimos a sua glória, a glória como do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade”.[7] A palavra princípio é usada para se referir ao início da criação, segundo a Bíblia, quando narra que Deus realizou a feitura das primeiras coisas sobre a terra, inclusive a criação do homem e da mulher. De acordo com a Escritura, Jesus estava no princípio de tudo, a criar todas as coisas. Um dia, de acordo com a Bíblia, Ele se fez carne, principiando uma nova fase: a presença de Deus no corpo humano. A Bíblia o  define como o Verbo (Jesus), ou seja, a Palavra, que fundou ou criou, ou principiou todas as coisas.

É por esta razão que o livro bíblico do Gênesis – o livro da gênese, da criação, ou das primeiras coisas, da origem de tudo, sob a perspectiva judaico-cristã – traz a seguinte referência no versículo 1 do Capítulo 1[8]: “No princípio, Deus criou os céus e a terra”[9]. Em verdade, o texto bíblico identifica Jesus com o Verbo, ou seja, a Palavra que cria. Para Kauffmann,  “o ponto de partida para o homem que se busca a si mesmo e ao mundo – ‘o seu mundo’, é a linguagem: ‘No princípio é o Verbo’.” A palavra grega para verbo é logos, segundo Kauffmann, que é mais forte que verbum, haja vista que aquele termo significa algo mais, a própria ratio[10]. A Bíblia traz Jesus como sendo o próprio princípio de tudo: “Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim. A quem tiver sede, de graça lhe darei da fonte de água da vida” (Apocalipse 21. 6)[11].

O significado de princípio, portanto, no cristianismo, termina por ser o mesmo de Verbo, Palavra de início, origem, início mesmo ou o próprio Deus – Jesus Cristo, que a Bíblia aponta como o criador de todas as coisas, inclusive de todos os homens. Uma outra palavra que se identifica com Jesus Cristo é o verbete verdade, como se vê na seguinte referência bíblica: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai senão por mim”[12]. A verdade fundante de uma nova aliança com Deus, o princípio fundamental de se ligar, ou melhor, de religare – religar-se com o criador e ter acesso ao Pai, como se vê nas palavras de Jesus. Eis a noção de verdade fundante. Trata-se de constatação importante, pois a expressão verdade fundante é usada por  Reale para definir princípio[13].

O texto bíblico referido acima, em especial o que fala ser Jesus o princípio e o fim, traz um significado atual da palavra princípio encontrado em escritos da teoria jurídica. Assim é que Lima assegura que o princípio é, ao mesmo tempo, ponto de partida e de chegada[14].

Os filósofos, à semelhança dos lexicólogos, trazem os sentidos já mencionados supra e vários outros, como Abbagnano[15], o qual acrescenta que o princípio é o fundamento de um processo, fundamento de demonstração, aquilo que determina movimentos ou mudanças, sendo estes significados importantes para alcançar o sentido moderno da expressão, como se verá mais adiante. Ademais, Abagnano dá ao termo em estudo o significado de: (1) elemento constitutivo das coisas ou do conhecimento - utilizado pelos pré-socráticos; e (2) algo não gerado e incorruptível – dado pelos estoicos[16].

A noção de princípio absoluto em si - conhecimento sintético, original e puramente racional -, na filosofia moderna, perde importância, segundo o autor antes referido, com a relativização dessa noção. Chega-se a defender que a expressão deveria ser substituída por termos como axioma ou postulado. Todavia, ainda há fortes defensores do termo princípio, em especial pressupondo-se o princípio como aquilo que sustenta a argumentação[17].  Aliás, a noção, desde Kant, sofreu abalo, ao passar por crivo de análise filosófica, com conclusões distintas sobre o uso da expressão pelos diversos saberes. Kant restringe o uso da expressão, quando fala sobre o conhecimento, como sendo toda proposição geral, proveniente da experiência por indução, a qual serve de premissa maior em um silogismo[18].

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Os princípios – verdades fundantes de um sistema de conhecimento – variam em generalidade e abrangência, e, por conseguinte, podem ser: (1) onivalentes – universais – válidos para toda forma de saber – e.g., o da não contradição; (2) plurivalentes ou regionais – comuns a um grupo de ciências, como o da causalidade, que é válido para as ciências naturais; e (3) monovalentes – válidos no âmbito de uma só ciência – os princípios gerais do Direito na Ciência Jurídica[19].

 Reale ensina que um edifício tem sempre vigas mestras, colunas primeiras, que lhe dão referência e são, a um só tempo, elementos de unidade. Para ele, a Ciência é um grande edifício, que possui tais elementos básicos, que lhe dão apoio lógico. Estes são os princípios, os quais possuem diferenças de destinação e índice na estrutura geral do conhecimento[20].

Nada obstante, tais princípios, como já referido, são submetidos à crítica filosófica, sendo, muitas vezes, relativizados, o que não lhes retira a importância. Assim é que a geometria euclidiana baseia-se no postulado segundo o qual, por um ponto tomado fora de uma reta, pode-se fazer passar uma só paralela à reta inicialmente considerada. Todavia, para os não-euclidianos, é refutado este postulado. Segundo  Reale, na Geometria, há quem defenda que nenhuma paralela pode passar por um ponto tomado fora de uma reta e, ao mesmo tempo, há quem diga que pode passar uma infinidade de paralelas à reta considerada como referência[21]. Aliás, há quem diga que o tema dos princípios foi tratado, por primeiro, na Geometria[22].

Os princípios, muitas vezes, mesmo que não evidentes, são proposições assumidas como fundantes da validez de um sistema particular de conhecimento[23]. Trata-se da substância lógica de uma ciência, sobre a qual se fundam as demais normas dessa ciência. Apesar de se enfatizar o caráter lógico, não se deve desprezar que o termo também tem cunho moral. É comum dizer-se que um homem determinado tem princípios, no sentido de revelar virtuosismo, ética[24]. Por certo, o tema da moralidade perpassa a discussão sobre princípios, em especial no Direito. Alexy afirma  que, na maioria das vezes, os princípios jurídicos são princípios morais. Os argumentos do mencionado autor são contrários, nesse aspecto, aos do positivismo jurídico. Vê-se, assim, que a teoria dos princípios é um ponto de partida para superação do pensamento meramente dogmático e positivista[25].


2. Princípios jurídicos: Fases e funções; diferenças das regras; norma e texto

A temática dos princípios passou por fases na história do Direito. Na primeira fase, jusnaturalista, assegurava-se que os princípios não tinham normatividade, reconhecendo-se, no entanto, sua dimensão ético-valorativa, que inspirava a ideia de justiça[26]. É a fase que Delgado define como pré-jurídica, em que os princípios gerais do Direito influenciavam no processo de construção do Direito ou davam uma direção coerente na definição da regra, atuando como fontes materiais, a influenciar a produção da ordem jurídica[27].

Em verdade, o jusnaturalismo, formado a partir do século XVI, dominou a Filosofia do Direito por longo período, acreditando-se no Direito Natural, na existência de valores e pretensões legítimas que não decorreriam das normas emanadas do Estado[28]. Não obstante a inspiração que levou a burguesia ao poder com a Revolução Francesa, a partir de então, imperou a visão de que o Direito Positivo esgota o Direito, o que deu início à onipotência do positivismo a partir do século XIX, a apartar o Direito da moral e dos valores transcendentes[29].  

O Código Civil francês não previu a aplicação subsidiária dos princípios gerais do Direito. Todavia, terminou por predominar a tese da possibilidade de lacunas no Direito, com a previsão de completá-las através dos meios fixados na ordem jurídica, dentre eles, os princípios gerais do Direito, como se vê, na Itália, com o legislador de 1865. Contudo, impregnado pelo positivismo, o legislador italiano não utilizou a expressão princípios gerais do Direito, com receio de que o juiz viesse a aplicar os princípios do Direito Natural, adotando, a lei, a fórmula princípios gerais do Direito vigente. Somente no Código de 1942  passou-se a utilizar a terminologia princípios gerais do ordenamento jurídico do Estado.[30] A previsão dos princípios como meio de integração de lacunas fez com que se passasse à fase jurídica propriamente dita. Os princípios deveriam ser inferidos da ordem jurídica por um processo de indução e abstração. O aplicador recorre ao que se convencionou chamar de analogia juris, extraindo a norma de todo o sistema jurídico, ou do ramo do Direito aplicável.

 Não obstante as funções referidas, há uma nebulosidade que permeia e sombreia o entendimento dos princípios, em especial do que sejam os princípios gerais do Direito. Reale analisa a matéria, assinalando que existem autores que defendem que os princípios gerais do Direito são princípios gerais do Direito pátrio, abstraídos por indução, válidos de acordo com o sistema normativo vigente em cada nação. Outrossim, há corrente doutrinária que defende que os princípios gerais do Direito são aqueles comuns ao ordenamento jurídico de todos os povos ou aos que pertencem a determinados sistemas característicos, v.g., civil law ou common law, abstraídos por comparação, pelo Direito Comparado. Ademais, há aqueles que pugnam que os princípios gerais do Direito são os princípios do Direito Natural[31].

Predomina a tese de que os princípios gerais do Direito são extraídos do ordenamento jurídico vigente em um Estado, todavia, nota-se que determinados princípios são aceitos por influência do Direito Comparado. O exemplo mais contundente, no Direito brasileiro, é o princípio da razoabilidade, incorporado ao sistema brasileiro por influência do Direito norte-americano.

Quanto ao Direito Natural, Reale conclui que seus princípios representam constantes ou invariáveis axiológicas que dão origem aos princípios gerais do Direito, comuns a todos os ordenamentos jurídicos. Destes, por exigência prática, derivam os princípios gerais do Direito de cada Estado, os quais a Ciência Jurídica encontra ao analisar a realidade social e histórica, sempre em contínua progressão e objetivação. O autor mencionado afirma que existem os princípios gerais do Direito: (1) imediatos: os que expressam de maneira direta os valores essenciais e conaturais a qualquer forma de convivência ordenada, em face das constantes axiológicas que dela promanam; e (2) mediatos: aqueles que se harmonizam com os primeiros e a eles se subordinam, representando exigências jurídicas de um ciclo histórico, revelado pelo Direito Comparado[32], ou pelo exame de um determinado ordenamento jurídico[33].

Não obstante, deve-se reconhecer que existem princípios gerais que são fruto da formação histórica de uma nação, a trazer a solução de problemas nacionais e, assim, estes não devem, a priori, ser transpostos para o plano dos princípios gerais do Direito. Ademais, também é equívoco subordiná-los, indistintamente, ao Direito Comparado ou ao Direito Natural, o que traria confusão de dois problemas, o da consistência e o da fundamentação dos princípios gerais do Direito. Não há dúvida, porém, que é insustentável a doutrina afixada ao sistema de Direito nacional, num mundo cada vez mais dominado pela simultaneidade das informações e dos jogos de influências recíprocas, sob o impacto unificador, quando não uniformizador, das ciências e da tecnologia[34].

Reconhece-se, também, que é difícil dizer quais são os princípios do Direito Natural, uma vez que se teria de saber qual é o Direito Natural aplicável, com os princípios fundantes e legitimatórios de um dado sistema de princípios gerais do Direito, do Direito Comparado ou do pátrio, ante a variedade de entendimentos entre os autores jusnaturalistas. Mesmo com tanta incerteza, como se disse, os princípios gerais do Direito Natural já foram previstos em Código Civil (Áustria), como sendo fonte supletiva e como se fossem princípios gerais do Direito Positivo[35].

Embora Reale tenha definido o princípio da dignidade humana como sendo o princípio básico e síntese do Direito Natural, o jusnaturalismo não conseguiu, pelo dissenso doutrinário de suas correntes, trazer os esclarecimentos necessários, conduzindo à imprecisão conceitual, em razão de uma certa obscuridade. Este o motivo de Reale somente admitir o Direito Natural em sua experiência histórica[36].

Com efeito, a discussão sobre os princípios somente ganhou corpo quanto à dimensão, ao valor e à função, sobretudo, após o  término da Segunda Grande Guerra, com o pensamento constitucional fortificado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. Os princípios foram sendo positivados, saindo do campo meramente supletivo, passando a ter uma função normativa própria, uma vez que foram expressamente previstos nos textos de muitas Constituições e em leis infraconstitucionais.

Assim, houve o avanço da importância dos princípios no plano jurídico, em especial pela grandeza que ganhou o tema no Direito Constitucional. Passo a passo, este repercutiu no Direito Civil, reconhecendo-se a proeminência da Constituição dos Estados ocidentais, com a previsão expressa de muitos princípios, o que superou paradigmas. Inicia-se, assim, a terceira fase, a chamada pós-positivista[37], na qual os princípios têm hegemonia axiológica e caráter normativo próprio. O reconhecimento da normatividade dos princípios garante a reaproximação do Direito com a moral, com a ética[38]. Quem capitaneou este movimento foi Dworkin, ao rejeitar os dogmas da master rule e de que as obrigações vêm apenas de regras de conduta[39].

Com a ênfase da temática dos princípios em sede constitucional, passou a ter importância para todo o domínio jurídico, superando-se a antítese, no Direito nacional, de que os princípios se incompatibilizam com a segurança jurídica, pois há total possibilidade de sua real determinação. Em verdade, a segurança jurídica, hoje, exige a definição e o respeito aos princípios jurídicos, que estão positivados, e da necessária compreensão do Direito com fulcro em valores que lhe dão legitimidade, consenso e aceitação, e garantem a vida do Direito.

          Com efeito, por muito tempo se disse que a teoria dos princípios ainda não havia sido formulada em Direito, de modo que a distinção entre regras e princípios não era bem definida teoricamente[40]. Com o tempo, segundo Ávila, “a distinção entre princípios e regras virou moda”, acentuando que os trabalhos de Direito Público tratam do tema como se ele dispensasse aprofundamento[41]. Assim, é inegável o caráter normativo, tanto das regras como dos princípios[42]. Hoje, há consenso de que ambos são tipos de normas obrigatórias, imperativas. Em verdade, uma longa evolução se deu até se chegar a este lugar-comum na doutrina, de que as regras e princípios são normas jurídicas – espécies de norma jurídica. Esta é o gênero, aquelas, as espécies[43].

Canotilho analisa a articulação entre princípios e regras, formulando um sistema interno de regras e princípios, a trazer a lume uma classificação minudente dos princípios. A abertura do sistema refere-se ao fato de que a “constituição é formada por regras e princípios de diferentes graus de concretização (diferente densidade semântica)”[44].

Para alguns autores, entre eles Dworkin[45], há uma distinção qualitativa ou lógica (forte) ente princípios e regras. Para esta concepção, as diferenças qualitativas se traduzem fundamentalmente em: (1) há uma forma diferenciada de aplicação, sendo os princípios normas jurídicas impositivas de otimização, compatíveis com vários graus de concretização, circunscritas às condições fáticas e jurídicas, enquanto as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência – impõem, permitem ou proíbem; e (2) há uma diferença no caso de conflito e suas formas de solução, sendo que os princípios convivem conflituosamente; todavia, as normas são, em caso de conflitos, antinômicas, excluindo-se[46].

Por outro lado, há os que defendem uma distinção quantitativa ou de grau (fraca) entre princípios e regras. Não há diferença qualitativa, de ordem lógica ou substancial, entre princípio e regra, para essa corrente, mas apenas uma diferença quantitativa, quanto ao maior ou menor grau de generalidade e abstração[47]. Assim, as diferenças são pequenas, apenas no que se refere a estes traços, inclusive ao de fundamentalidade e vagueza, mais característicos nos princípios. Não haveria uma grande ou nítida separação ou distinção entre estas categorias normativas[48]. O pensamento, com base na distinção qualitativa entre princípios e regras - não meramente um critério baseado no grau de abstração -, iniciou-se com espeque na função do princípio como fundamento normativo para a tomada de decisão, para que determinado mandamento seja encontrado. O princípio é a  norma que estabelece fundamento para uma decisão, enquanto a regra define a decisão em si.

Segundo Canaris[49], os princípios diferem das regras por duas características: (1) têm conteúdo axiológico explícito, ao contrário das regras; e (2) recebem, diferentemente das regras, seu conteúdo e sentido por meio de um processo dialético de complementação e limitação. Em suma, a sua fundamentação normativa é axiológica e seu modo de interação é diferenciado[50].

Na tradição anglo-saxônica, Dworkin[51] assegura que as regras são aplicadas ao modo tudo ou nada (all-or-nothing). Assim, ou a regra é válida ou não. Caso seja válida, presente a hipótese de incidência, deve ser aceita a sua consequência normativa. Quando há colisão entre regras, uma é inválida, ao passo que, no caso de colisão entre princípios, não há essa consequência. Destarte, os princípios têm uma dimensão de peso (dimension of weight), de modo que, havendo colisão, o princípio com peso maior relativo se sobrepõe ao outro, continuando este último válido. Os princípios contêm apenas fundamentos que devem ser combinados com os fundamentos de outros princípios para a determinação da decisão do caso. Com isso, Dworkin não definiu distinção de grau, mas de estrutura lógica, no modo de aplicação e no relacionamento normativo[52].

Alexy[53] conceituou princípios como uma espécie de norma jurídica, que estabelecem  “deveres de otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas”. As possibilidades normativas se verificam porque sua aplicação depende dos princípios e regras contrapostos; as fáticas, porque o seu conteúdo como norma de conduta é determinado diante dos fatos. Já as regras, podem ou não ser realizadas. Quando valem, deve-se fazer o que ela diz. Na hipótese de colisão, a contradição se resolve pela decretação de sua invalidade ou por introdução de uma regra de exceção, excluindo-se o conflito[54].

No caso de colisão entre princípios, Alexy demonstra que a solução se dá em função da ponderação entre os princípios colidentes, o que não se verifica por uma determinação imediata de prevalência. A ponderação se realiza diante das circunstâncias concretas, definindo-se a prevalência. As consequências normativas dos princípios, diferentemente das regras, não se dão de forma direta, mas são concretizadas pela aplicação aos casos, por meio de regras de colisão, que terminam definindo o peso de cada princípio. A distinção entre regras e princípios está no modo em que se resolvem as tensões entre princípios. Para Alexy, a colisão entre regras se resolve verificando se uma norma está dentro ou fora do sistema (problema do dentro ou fora), enquanto, entre princípios, a solução se dá dentro da mesma ordem jurídica (teorema da colisão)[55].

Para Alexy, a distinção não se baseia no modo tudo ou nada de aplicação, mas na diferença quanto à colisão e quanto à obrigação que instituem, haja  vista que as regras instituem obrigações absolutas – não superadas por outras normas, e os princípios prima facie – que podem ser afastados no caso, por princípios colidentes[56].

 Ávila critica os critérios usualmente empregados para a distinção entre regra e princípio, nos seguintes termos: (1) o caráter hipotético-condicional, embora não se vislumbre frontalmente nos princípios, pode ser verificado por interpretação, haja vista que o princípio pode ser (re)lido, de modo que venha a possuir uma hipótese de incidência seguida de uma consequência; (2) o critério do modo final de aplicação – em verdade, as regras não têm um modo absoluto de aplicação tudo ou nada, mas podem ser objeto de superação por razões não imaginadas pelo legislador para os casos normais, podendo, tanto os princípios como as regras, envolver a consideração de aspectos específicos, abstratamente desconsiderados, havendo, outrossim, regras que contêm expressões cujo âmbito de aplicação não é total e previamente delimitado; (3) o critério do conflito normativo – não há se falar que somente no caso de princípios se pondera, aplicando-se o de maior peso, uma vez que o conflito de regras também pode ser resolvido, concretamente, aplicando-se a regra de maior peso, continuando, abstratamente, as duas regras válidas[57].

  Após, Ávila propõe critérios para a distinção: (1) critério quanto ao modo como prescrevem o comportamento – enquanto as regras são normas imediatamente descritivas, que estabelecem obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser adotada, os princípios são normas imediatamente finalísticas, as quais estabelecem um estado de coisas, para cuja realização é necessária a adoção de determinados comportamentos; (2) critério do modo de justificação exigida – a interpretação e aplicação das regras exigem correspondência entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos, enquanto a interpretação e aplicação dos princípios demandam uma correlação entre o  estado de coisas posto como fim a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta considerada necessária para a sua promoção; e (3) critério do modo como contribuem para a decisão – os princípios abrangem apenas parte dos aspectos relevantes que contribuem, ao lado de outras razões, para a decisão,  não gerando uma solução específica, enquanto as regras têm a aspiração de gerar uma solução específica para o conflito[58].

Em verdade, norma não é o mesmo que dispositivo ou texto normativo. A norma é alcançada pela interpretação do dispositivo, do texto. É o resultado da reflexão sobre o texto normativo. Este (o texto) é o objeto da interpretação e a norma o resultado. Ávila constata que não há correspondência entre norma e dispositivo, uma vez que existem normas sem dispositivo – v.g., princípios da segurança e certeza jurídica -, e existem dispositivos  que não veiculam normas jurídicas – v.g., o que porventura informa o local da aprovação, os participantantes na aprovação, a intenção do legislador ao legislar etc.  Por outro lado, em um só dispositivo, diversas normas podem ser encontradas – e.g., dispositivo que preceitua expressamente que a instituição ou aumento de tributo se dá exclusivamente mediante lei (art. 150, I, da Constituição Federal brasileira), do qual se extrai, também, o princípio da legalidade, da tipicidade, da proibição de regulamentos independentes e da proibição de delegação normativa -, e, em sentido contrário, pode se extrair uma só norma de vários dispositivos – ex.: princípio jurídico da proporcionalidade, que é definido, por abstração, de vários dispositivos que trazem em seu bojo a determinação de um modo de ser ou proceder proporcional. Por tudo isso, conclui-se não haver correspondência biunívoca entre texto e  norma, podendo-se encontrar um e não o outro e vice-versa[59].

Bonavides assegura: “Os princípios constitucionais outra coisa não representam senão os princípios gerais de Direito, ao darem estes o passo decisivo de sua peregrinação normativa, que inaugurada nos Códigos, acaba nas Constituições”[60]. Os princípios foram convertidos no coração da Constituição, de modo que o Estado principiológico é a característica da nova fase por que passa o Estado de Direito[61]. Postos no ponto mais alto da escala normativa, eles mesmos, sendo normas, tornam-se, doravante, as normas supremas do ordenamento, a servir de pautas ou critérios por excelência para a avaliação de todos os conteúdos normativos. Os princípios, desde sua constitucionalização, que é, ao mesmo tempo, positivação no mais alto grau, recebem, como instância valorativa máxima, categoria constitucional, rodeada do prestígio e da hegemonia que se confere às normas inseridas na Constituição. Com esta relevância adicional, os princípios se convertem igualmente em norma normandum, ou seja, norma das normas[62].

Sobre o autor
Raimundo Itamar Lemos Fernandes Júnior

Juiz Titular da 16ª Vara do Trabalho de Belém. Professor da Especialização em Direito Processual e do Trabalho da UNAMA. Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito pela UNAMA. Ex-juiz Cooperador do TRT da 8ª Região (Rede Nacional de Cooperação Judiciária do CNJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JÚNIOR, Raimundo Itamar Lemos Fernandes. Cooperação judiciária: passo fundante para a jurisdição internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4594, 29 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46128. Acesso em: 5 nov. 2024.

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