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Estado Democrático de Direito Social

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Agenda 26/12/2003 às 00:00

O Direito deve ser garantido?

A alegação de que o direito precisa ser garantido não será, então, uma tremenda incoerência. Mas, se o próprio direito necessita de garantias (para ser observado e cumprido), o que será de nós que procuramos socorro no direito, que buscamos no direito a nossa fonte de segurança? Dessa forma, não ficaremos ainda mais desprotegidos? Será esse o significado da garantia jurídica sem eficácia política?

Ora, se o direito deve e pode ser garantido, que tipo de garantias seriam dadas aos chamados direitos fundamentais (tanto civis, individuais, quanto políticos e sociais)? Por que os direitos sociais e trabalhistas não são chamados de direitos fundamentais? Por outro lado, quando são, que garantias reais, operacionais, concretas, nós temos de que esses direitos não serão violados? Assim, por que os direitos sociais não são cláusulas pétreas? De outro modo (se mesmo havendo garantias, os direitos são violados de forma absoluta), como seria a vida social se os direitos não fossem garantidos, defendidos, protegidos? Que estrutura social nós teríamos se, historicamente, não tivéssemos lutado pelas garantias individuais e sociais?

Há exagero em dizer que os nobres sempre tiveram direitos, sempre puderam gozá-los, e por isso as garantias são uma conquista social e popular? Podemos pensar que as garantias são a parte essencial da segurança jurídica social, pois (a partir dessa criação institucional) alguns desses direitos agora podem alcançar uma gama maior de pessoas, e assim proteger e garantir especialmente a integridade física dos desafetos e dos detratores do poder, da nobreza, da riqueza, do status quo, da dominação, da autonomia e dos caprichos individuais dos poderosos?

As garantias individuais e sociais são a melhor demonstração da democratização institucional, ou seja, o momento histórico em que a estrutura do Estado começou a se voltar aos interesses populares, às populações e não só às elites. Mas, teríamos aí uma revolução copernicana no Estado e no direito, tal como ocorreria hoje se conseguíssemos socializar a revolução burguesa? Se a resposta é sim para a revolução ocorrida no direito, não seria incoerente pensar que o direito de poucos poderia se transformar no direito de muitos, já que não seria o direito de todos?

No Brasil, para a maioria, infelizmente, o direito nunca influiu e nem fez refluir o estado de precariedade em que se encontra a vida e suas condições de sobrevivência – de modo semelhante, pode-se dizer que, se o direito influiu, foi negativamente, pejorativamente, autoritariamente, segregando os "sem-direito e sem-poder" e apartando-os ainda mais da vida pública. Para estes (para nós), sempre se operou a regra do Estado Mínimo, e com essa fórmula o mínimo virou um nada, a ausência total, a indiferença, a pilhagem, a pilhéria, o cinismo, a autorização para que poucos promovessem uma constante apropriação indébita dos meios de produção da vida. E aí, é claro, não há direito à vida, porque, para quase todos, só restou um Estado de Injustiça Social.

O Estado brasileiro faz pensar que, realmente, temos um Deus e um Diabo na Terra do Sol, nos rincões do Brasil pobre – e ainda é preciso ressaltar que o Diabo é poderoso porque não é maniqueísta (certo versus errado, direito x não-direito, justo x injusto). E sabemos disso porque Ele povoou o inferno com boas intenções.

Para todos os efeitos, precisamos mais do que boas intenções para chegar à justiça - é sabido e reconhecido que não há justiça sem um mínimo de equilíbrio entre a política e o direito.


Direito e Justiça: mito, crença ou ingenuidade?

Por isso, quando se trata de Brasil, de fato e de direito, toda forma de equilíbrio parece perdida. Para reforçar a afirmação, pensemos no nosso desafio histórico: precisamos de meios para edificar os direitos sociais no interior do Estado Patrimonialista, uma estrutura jurídica e administrativa em que o servidor público ainda é um servo dos interesses particulares. Certamente, não se trata de tarefa fácil (que se realize do dia para a noite) construir o Estado Democrático de Direito Social, uma organização política e popular em que os direitos sociais e trabalhistas são garantidos, assegurados, sob o status de direitos fundamentais.

Para nós, portanto, não é exercício teórico, mas sim prático (de acordo com a própria história das instituições públicas) indagar: se o direito é justo por definição (seguindo-se os princípios gerais do direito), como explicar a vigência de leis injustas? Nesta contradição, qual dos pólos deverá prevalecer? Seria esta a motivação jurídica da chamada Desobediência Civil? Então, haveria mesmo razão em se falar de um direito justo e outro injusto?

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Um caminho explicativo, uma forma de entendimento dessa contradição, revela-nos que o problema está na objetivação dos princípios gerais do direito (justiça, eqüidade), na fase legislativa da formulação da lei, pois é nesse lapso temporal e epistemológico que agem a política e os interesses individuais, dos grupos ou das classes. Neste lapso, neste interregno do processo, vontades menores, procedimentos amesquinhados, egoístas, de escamoteamento, classistas, interferem negativamente nos assuntos de Estado e prejudicam a definição e a concretização da multiplicidade na unidade global. Por isso, a questão central deve-nos levar a discutir o nivelamento em que se opera a atividade política, seus níveis de envolvimento, parcerias, barganhas, trocas e organização, bem como as formas sociais, institucionais, jurídicas, morais e culturais necessárias ao controle e regulação do próprio realismo político.

Trata-se de não menosprezar e nem de sobrevalorizar a política, mas sim de buscar o equilíbrio entre o que se requer originariamente e os próprios resultados obtidos, entre o ideal da justiça e a efetividade da lei, entre o direito (universalidade) e a política (autonomia). Trata-se, no fundo, de controlar toda forma de subsunção do público ao privado, elevando-se o poder político a um maior grau de juridicidade. Trata-se de aniquilar institucionalmente, juridicamente, politicamente, culturalmente, toda forma de apropriação individualista da referência pública. No Brasil, mais do que nunca, trata-se de erradicar as raízes do Estado Patrimonial, driblando a astúcia e aprisionando os assaltantes do poder: todos aqueles que fazem do poder comum algo incomum.

Assim, tendo-se em conta nosso legado privatista do Estado e do direito, o que será mais revelador dessa ideologia, acreditar no direito como justiça ou no fato de que bastam as garantias institucionais para que o direito seja referendado, autorizado, aplicado? O que será mais prejudicial à consciência de cada um e à própria sociedade civil, a privatização dos resultados no âmbito e no transcorrer da atividade política (ação legislativa) ou a carência de um credenciamento do direito público? Tendo-se em conta que o direito deve ser crítico e criticado, o que embotará mais o pensamento e a ação comum do que os mitos, crenças ou ingenuidades, especificamente acerca da função social do Poder Judiciário? Pois, não é a ingenuidade que abre brechas à ação injusta?

Se assim é, como produzir uma cultura jurídica popular que redirecione o direito ao combate ao individualismo 21, à ingenuidade, ao espontaneísmo 22, ao amadorismo, quando se tratar da defesa do interesse público? Do contrário, considerando-nos sem nada para fazer, vamos apenas observar em vão?

Assistir à avalanche do passado, no presente adormecido, é ver revelar-se um futuro inequívoco – pena que os (ir)responsáveis não estejam mais presentes. A eles, há muito, deveríamos ter dito claramente, reiteradamente, explicitamente 23: além da reserva legal, precisamos de justiça social.

Afinal, não é extremamente injusto que o direito não exista, justamente (principalmente), para quem mais precisa, para quem trabalha de sol a sol?

É isso, quem mandou só ter Deus e o Diabo na Terra do Sol ... onde estão os homens, as mulheres e as crianças? Estão esperando o Deus-Sol?


Notas

1 Lembrando-se que a teoria de Miguel Reale não rompe os limites do chamado monismo estatal: uma vez que a soberania legislativa continua reduzida ao Estado.

2 Direito é poder: toda relação jurídica é uma relação pautada numa relação de poder ou força anterior, que a precede. E ainda que o monopólio coercitivo do Estado seja limitado pela regra da bilateralidade da norma jurídica, em essência, é a política quem comanda, e não necessariamente o direito, o certo, o justo, o requerimento legítimo etc.

3 Porque a negação desses direitos implica na negação da idéia de unidade global, conceito caríssimo ao estudo do Estado. Simplesmente, trata-se da saúde e da educação pública e sua negação corresponde a grave ofensa a direito humano fundamental (o fundamental está empregado aqui como oposto, por exemplo, ao direito à propriedade) e inexpugnável.

4 Baseadas na disposição e imposição de barreiras sociais e pessoais artificiais, como se a natureza primasse pela negação da autonomia, isonomia, autarquia e igualdade de direitos e de legitimidade.

5 Mais diretamente, trata-se dessas artimanhas judiciais que teimam em varrer a justiça da prática forense e do cotidiano dos mais pobres.

6 Destaca-se a previsão orçamentária nos três níveis da federação para saúde e educação, e seu descumprimento sendo arrolado como crime de responsabilidade.

7 O próprio José Afonso enumera os artigos conectados a esse fim, na Constituição Federal: arts. 10; 14 I a III; 29, XII e XIII; 31, 3º, 49, VX; 61, 2º, 198 III; 204, II (conf. nota 60, p. 119).

8 Uma educação técnica sem dúvida, mas a essa altura um ensino público (popular, massivo), gratuito, obrigatório e de qualidade.

9 A liberdade de comprar e vender a si mesmo?

10 É conhecida a referência pejorativa de que o Estado é o escritório da burguesia (Marx, 1993).

11 As estatísticas sociais são ruins, mas a realidade é pior.

12 Entende-se como reconhecimento, defesa e promoção dos direitos humanos.

13 Conceito em que os aspectos jurídicos preenchem somente um requisito inicial, pois que se objetiva a conquista e a afirmação da autonomia.

14 O ditado popular nos diz que: manda quem pode, obedece quem tem juízo.

15 A autonomia como efetivação de um valor universal, agora abrangendo todos os indivíduos, sem qualquer tipo de restrição de classe, seja motivado por condição econômica, social, cultural, seja de nascimento, cor, sexo, política, ideologia ou qualquer outra que caracterize preconceito, discriminação. O que é diferente da suspensão dos direitos políticos de presos, em um exemplo concreto.

16 Uma idéia de soberania resumida na regra de Lincoln: o governo do povo, pelo povo e para o povo.

17 Nação vem de nascere: a própria idéia da origem ou do nascimento da unidade global.

18 Temos aqui o incremento de uma necessária juridicidade (controle jurídico) do poder público (político), garantindo-se ainda: a) seguridade e fruição dos direitos individuais; b) separação dos poderes; c) império das leis. Posteriormente, dir-se-ia que seria o império do direito, não sendo suficientes só os aspectos formais da legalidade – e aí se destacaria o princípio da legitimidade do poder e da própria lei.

19 Vale destacar que aqui não repousa nenhuma ingenuidade ou miopia ideológica, pois queremos sublinhar que a fonte primária/primeira do direito assim entendido é o conjunto das necessidades/demandas sociais/populares (não só o Estado, portanto) e que não se limita à defesa da propriedade. Pois, no Estado Democrático de Direito, é necessário destacar/definir a idéia da função social da propriedade.

20 Em resumo: vimos como o processo histórico transmutou o dever de obediência em garantia dos direitos, e assim se exige do Estado o dever de assegurar/garantir os direitos da pessoa humana. Destacando-se que os direitos sociais seriam parte integrante e ativa (nuclear) dos direitos fundamentais.

21 Basta lembrar o mito liberal constitucional que transforma os direitos políticos em cláusulas pétreas, mas que também relativiza, flexibiliza, retira, subverte, relega os direitos sociais e trabalhistas.

22 É o caso do fulano que quer ser mais realista do que o rei, ou seja, a ansiedade e a obtusidade que levam o iniciante a aplicar doses maciças de moralismo ou de ativismo, e bem maiores do que a realidade dos fatos pode comportar.

23 No popular: aos berros!


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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado Democrático de Direito Social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 177, 26 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4613. Acesso em: 5 nov. 2024.

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