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Análise crítica sobre o art. 1.829 do Código Civil brasileiro e suas diversas interpretações

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Agenda 02/11/2023 às 11:55

Em análise crítica do artigo 1.829 do Código Civil, a concorrência sucessória não pode diferenciar cônjuges e companheiros, em linha com a posição consolidada posteriormente pelo Supremo Tribunal Federal.

Resumo: O presente artigo científico pretende minudenciar a problemática das várias interpretações dadas ao artigo 1829, I, da Lei 10.406/2002 (Código Civil), que versa sobre a concorrência na herança entre o cônjuge supérstite, casado em regime da comunhão parcial de bens, e os descendentes do de cujus. Para tanto, far-se-á uma análise crítica a cada uma das quatro principais correntes da doutrina pátria acerca do tema, bem como ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Finalmente, o principal objetivo desta obra será encontrar os principais problemas de cada interpretação a fim de provar que nenhuma delas está de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, havendo, pois, urgente necessidade de alteração do dispositivo legal em comento.

Palavras-chave: Concorrência. Sucessão. Comunhão parcial de bens. Artigo 1829 Código Civil. Herança.


1. INTRODUÇÃO

No que tange ao direito civil brasileiro contemporâneo, o cônjuge sobrevivente obteve grande conquista no campo do direito sucessório, uma vez que o Código Civil de 2002, ao tratar da ordem de vocação hereditária, colocou-o no rol dos herdeiros necessários do cônjuge falecido. Desta forma, sendo herdeiro necessário, o cônjuge supérstite pode concorrer com os descendentes do de cujus em alguns casos.

Porém, a intricada redação do inciso I do artigo 1829 do CC, que determina as hipóteses em que o cônjuge supérstite concorrerá com os descendentes do de cujus, tem sido alvo de severas críticas e deu azo a inúmeras discussões na doutrina e na jurisprudência pátrias. Faz-se necessário, pois, analisar a melhor solução para o conflito, de modo que se respeite a vontade dos contratantes (nubentes no contrato de casamento), a vontade presumida do de cujus e o regime de bens adotado no casamento, evitando que o regime da comunhão parcial sobreponha o da comunhão universal de bens. Tal solução também deve alijar possibilidades de fraude. Diante as controvérsias, surgiram quatro interpretações que se destacaram, as quais serão explicadas e analisadas minuciosamente neste trabalho.

As interpretações e soluções analisadas são as mais fortes e recorrentes na jurisprudência e na doutrina contemporâneas. Para as análises, serão considerados os principais argumentos favoráveis e os principais problemas de cada interpretação dada ao dispositivo supracitado. Destarte, objetiva-se, por meio da análise dos conflitos existentes nos posicionamentos de diferentes doutrinadores, encontrar uma interpretação que seja capaz de profligar os principais problemas levantados e de atingir os objetivos supracitados.


2. CONCORRÊNCIA DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE COM OS DESCENDENTES DO DE CUJUS EM TODO O ACERVO PATRIMONIAL, SE HOUVER BENS PARTICULARES.

Trata-se de posicionamento adotado por autores como, Maria Helena Diniz, Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novas Hironaka, que condiciona a concorrência sucessória do cônjuge supérstite com os descendentes do de cujus à existência de bens particulares deixados pelo falecido. Nesse caso, segundo os referidos autores, além do direito à metade de todos os bens comuns, meação – garantida em razão do desfazimento da sociedade conjugal celebrada sob o regime de comunhão parcial de bens -, o cônjuge sobrevivente - por direito sucessório- também recebe uma quota da herança do falecido.

Se o de cujus deixou bens particulares, a concorrência sucessória ocorrerá sobre a totalidade dos bens, tanto em relação aos bens particulares, quanto em relação à meação. Por outro lado, se ele não deixou bens particulares, o consorte sobrevivo terá direito apenas à meação que lhe é garantida em virtude do desfazimento do matrimônio. Destarte, a qualidade de herdeiro, no que tange ao cônjuge sobrevivente, está condicionada à existência de bens particulares deixados pelo autor da herança.

Segundo Maria Helena Diniz:

Pelo novo Código Civil, convém repetir, haverá concorrência do cônjuge supérstite com descendentes do autor da herança, desde que, pelo regime matrimonial de bens, o falecido possuísse patrimônio particular. Para tanto, o consorte sobrevivo, por força do art. 1829, I, só poderá ser casado sob o regime da separação convencional de bens, de participação final de aquestos ou de comunhão parcial, embora sua participação incida sobre todo o acervo hereditário e não somente nos bens particulares do de cujus. Se o falecido não possuía bens particulares, o consorte sobrevivente não será herdeiro, mas tem assegurada a sua meação, sendo o regime de comunhão universal ou parcial. Meação não é herança, pois os bens comuns são divididos, visto que a porção ideal deles já lhes pertencia. Havendo patrimônio particular, o cônjuge sobrevivo receberá sua meação, se casado sob o regime de comunhão parcial, e uma parcela sobre todo o acervo hereditário. Concorre em igualdade de condições com os descendentes do falecido, exceto se já tiver direito à meação em face do regime matrimonial de bens. Terá quinhão igual ao dos que sucederam por cabeça, não podendo sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com quem concorrer (CC, art. 1.832).

(2008, p. 105 -106).

Nesse diapasão, Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka afirmam que:

[...]entendimento diverso levaria a uma significativa vantagem à sucessão decorrente da união estável, pois nesta se defere ao viúvo o quinhão sobre bens já integrantes de eventual meação. E, na maioria das vezes, a parcela significativa do acervo hereditário forma-se exatamente na constância do casamento. Convocado o cônjuge, terá direito a uma parcela sobre toda a herança, inclusive recaindo o seu quinhão também sobre bens nos quais eventualmente já possui meação. Diversamente a esta conclusão, porém, talvez a tendência seja considerar a regra como estabelecendo um direito sucessório do cônjuge apenas sobre os bens particulares. Para nós a interpretação nesta linha causa expressiva desvantagem ao cônjuge em cotejo com o companheiro sobrevivente, pois este, como se verá, recebe quinhão sobre os bens adquiridos a título oneroso durante a união, sem prejuízo de sua meação; e, na maioria das situações, a realidade tem nos mostrado que o maior acervo hereditário é conquistado na constância da convivência.

(CAHALI; HIRONAKA,2003, p. 213-214).

Para obliterar possíveis dúvidas e melhor ilustrar o entendimento desses respeitáveis doutrinadores, convém analisar os gráficos abaixo, que demonstram a divisão dos bens do consorte falecido, supondo que este tenha deixado um cônjuge com quem foi casado pelo regime da comunhão parcial de bens e dois filhos.

Suponha-se que o autor da herança tenha deixado um patrimônio no valor de R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais) e nenhum bem particular. A divisão do patrimônio deixado seria:

Suponha-se agora que o consorte falecido tenha deixado, além desses bens comuns, R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) em bens particulares. A divisão de seu patrimônio ocorreria da seguinte maneira:

Divisão dos bens comuns deixados pelo de cujus:

Divisão dos bens particulares deixados pelo de cujus:

2.1. DOS PROBLEMAS DESSE PENSAMENTO

Conforme pode ser observado nos gráficos acima, se no exemplo dado for adotado o posicionamento ora em comento, o consorte sobrevivente receberá: 50% (cinquenta por cento) do imóvel deixado pelo de cujus, em razão do desfazimento da sociedade conjugal; mais 16,67% (dezesseis inteiros e sessenta e sete centésimos por cento) – equivalente a 1/3 (um terço) dos 50% (cinquenta por cento) restantes - do referido imóvel, em razão de ser herdeiro do falecido; mais 33,33% (trinta e três inteiros e trinta e três centésimos por cento) - equivalente a 1/3 (um terço)- dos bens particulares deixados pelo falecido. Enquanto cada herdeiro receberá apenas 16,67% (dezesseis inteiros e sessenta e sete centésimos por cento) dos bens comuns e 33,33% (trinta e três inteiros e trinta e três centésimos por cento) dos bens particulares.

Nota-se claramente a grande desvantagem dos herdeiros em relação ao cônjuge supérstite. Ao fim da partilha este ficaria com um total de R$ 820.000,00 (oitocentos e vinte mil reais), equivalente a 65,08% (sessenta e cinco inteiros e oito centésimos por cento) do patrimônio total (um milhão, duzentos e sessenta mil reais), enquanto os herdeiros ficariam, cada um, com apenas R$ 220.000,00 (duzentos e vinte mil reais), equivalente a 17,46% (dezessete inteiros e quarenta e seis centésimos por cento) do patrimônio total.

Ademais, segundo os ensinamentos dos doutrinadores citados, e conforme pode ser observado nos gráficos ilustrativos, essa linha de pensamento condiciona a qualidade de herdeiro do cônjuge sobrevivente (casado sob o regime da comunhão parcial de bens) unicamente à existência de bens particulares. Sendo assim, a existência de determinado bem particular, que pode, inclusive, ter sido adquirido antes dos nubentes sequer se conhecerem, influenciaria na quota dos bens comuns, adquiridos conjuntamente e com o esforço de ambos, a ser recebida pelo sobrevivente quando da morte do outro.

Tal hipótese é claramente nociva aos demais herdeiros do de cujus. Nesse sentido, é oportuno citar brilhante reflexão de Jônes Figueiredo Alves e Mário Luis Delgado (2005, p.942):

[...] c) A interpretação de que a existência de qualquer bem particular assegura o direito de concorrência no acervo total retira do dispositivo todo sentido prático. Afinal de contas, que pessoa conhecemos não possuiria sequer um bem particular, ainda que sejam aqueles de uso pessoal (art. 1659, V)? Partindo do pressuposto de que não se poderia condicionar a natureza jurídica de bens particulares ao valor deles, podendo concluir que os trapos usados pelo mendigo são bens particulares tanto quanto o vestido de Chanel da rica senhora. Sendo assim, o dispositivo constituiria letra morta, pois os casados sob o regime da comunhão parcial concorreriam com os descendentes em qualquer situação. Ora, tal interpretação também vulnera o princípio da operabilidade.[...]

Outro grande problema do posicionamento adotado por Maria Helena Diniz, Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novas Hironaka é a senda para fraudes que ele cria. Se aplicarmos a interpretação sugerida pelos exímios autores, um consorte poderia facilmente aumentar sua porção na herança do outro. Para tanto, bastaria que ele solicitasse a um amigo que fizesse qualquer doação em nome exclusivo de seu cônjuge.

Nesse sentido aduz Carlos Roberto Gonçalvez, ao criticar as fraudes possibilitadas pela interpretação ora em comento:

[...] cônjuge moribundo recebe doação de determinado bem (art. 1659, I), feita por suposto amigo, na verdade, amante de sua esposa, com o único objetivo de assegurar a concorrência daquela sobre os bens integrantes da meação do marido. Admitir tal possibilidade implicaria violação ao princípio da eticidade.

(GONÇAVEZ, 2009, p.153).

Por fim, é salutar observar o disposto no artigo 1.658 da Lei 10.406/2002 (Código Civil), segundo o qual, no regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções feitas nos artigos 1.6591, 1.6612 e 1.6623, do referido dispositivo legal. Assim, a lógica de separação entre o regime da comunhão parcial e o regime da comunhão universal de bens baseia-se na vontade que os nubentes têm em compartilhar os bens adquiridos antes da união. Quando os noivos desejam a máxima comunicabilidade de seus bens, optam pelo regime da comunhão universal.

Destarte, a interpretação em análise consiste numa clara subversão da lógica de separação entre os dois regimes, uma vez que permite que o cônjuge supérstite, casado pelo regime da comunhão parcial de bens, em determinadas hipóteses, logre mais direitos que o casado pelo regime da comunhão universal, conforme pode ser observado no seguinte exemplo:

Porém, se “A” e “B” fossem casados pelo regime da comunhão universal de bens, “B” receberia apenas a metade dos bens particulares, equivalente a R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais), e metade dos bens comuns, equivalente a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). Ficaria, deste modo, com R$ 500.250,00 (quinhentos mil, duzentos e cinquenta reais), valor bastante inferior aos R$750.250,00 (setecentos e cinquenta mil, duzentos e cinquenta reais) que receberia se fosse casado pelo regime da comunhão parcial de bens.

Deve-se ainda considerar que o regime da comunhão parcial de bens (também conhecido por regime universal) é presumível para os cônjuges que não optam por nenhum tipo de regime de bens. Portanto, não é plausível que se admita que ele seja mais benéfico ao cônjuge supérstite que o regime da comunhão universal de bens, escolhido pelos cônjuges que declaram manifestamente a vontade de garantir a máxima comunicabilidade de seus bens.

É verdade que o regime de bens que irá viger no casamento é de livre escolha dos nubentes - desde que não contrarie o direito -, não sendo eles obrigados a optar por nenhum dos regimes previstos no Código Civil, o que lhes permite adotar um regime particular que expresse mais fielmente a vontade do casal. Todavia, é costume que os noivos optem por algum dos regimes já positivados no código, mormente por desejarem evitar o grande desgaste de passar pela delicada e constrangedora situação de realizar reuniões para discutir sobre o futuro de seus bens em caso de divórcio ou de falecimento de um dos dois.

Diante disso, é preciso que a separação entre os regimes sugeridos pelo Código seja coerente e que seus benefícios sejam determinados. Eles não podem ser confusos e imprevisíveis. Não se pode permitir que a proteção dos regimes de bens seja determinada pelo acaso. No momento da escolha, os cônjuges precisam ter certeza de qual regime será o mais benéfico ao seu consorte; qual lhe garantirá mais proteção e mais direitos.

Porém, a aplicação da interpretação em análise impede que a escolha dos cônjuges, no que tange a sucessão de seus bens, seja segura e realmente garanta que a vontade deles será exercida, uma vez que condiciona a qualidade de herdeiro do cônjuge supérstite - e consequentemente a repartição da herança – à existência de bens particulares deixados por aquele que vier a falecer. Tornando a divisão da herança dependente não exclusivamente da vontade dos cônjuges, mas sim à existência de bens particulares no momento do falecimento de um deles.

Ressalta-se, ainda, a opinião de Jônes Figueiredo Alves e Mário Luis Delgado ( 2005, p. 942) acerca dos bens particulares, qual seja, a que toda e qualquer pessoa sempre deixará bens particulares, sejam eles de valores insignificantes ou não. Sendo assim, se a interpretação em estudo fosse adotada, a comunhão parcial de bens quase sempre seria mais benéfica ao cônjuge supérstite do que a comunhão universal.


3. A CONCORRÊNCIA DO CÔNJUGE SOBREVIVENTE COM OS DESCENDENTES DO DE CUJUS APENAS NA MEAÇÃO DA HERANÇA, SE NÃO HOUVER BENS PARTICULARES.

Segundo a corrente de pensamento liderada pela ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e atual vice-presidente do IDBFam – Instituto Brasileiro de Direito de Família -, Maria Berenice Dias, o direito a concorrência sucessória entre o cônjuge supérstite, casado pelo regime da comunhão parcial de bens, e os descendentes do de cujus, ocorrerá somente em relação a meação deste último e quando ele não houver deixado bens particulares. Tal posicionamento, a contrario sensu, preconiza que o direito de concorrência do cônjuge está condicionado à ausência de bens particulares deixados pelo de cujus. Portanto, havendo bens particulares, não há se falar em concorrência sucessória entre consorte sobrevivo e descendentes.

Segundo Maria Berenice dias:

Aquele que casa pelo regime da comunhão parcial, com quem já possui patrimônio, quando da morte do cônjuge percebe apenas sua meação. Os herdeiros ficam com a titularidade exclusiva do acervo hereditário composto pela meação do morto e pelo patrimônio preexistente ao casamento. Apesar de todas as críticas a esse raciocínio – que dizem afrontar a letra da lei -, é o único que (...) corresponde à vontade manifestada pelo casal quando do casamento, ao optarem pelo regime da comunhão parcial. (...) a quota do cônjuge só pode ser calculada sobre os bens adquiridos durante o casamento, sob pena de chancelar-se o enriquecimento injustificado de quem em nada contribuiu para amealhar o patrimônio. Interpretação diversa deste intrincado e pouco claro dispositivo legal subverteria o próprio regime de bens eleito pelas partes. Os nubentes, ao optarem pelo regime da comunhão parcial (não firmando pacto antenupcial), querem garantir a propriedade exclusiva dos bens particulares havidos antes do casamento e dos recebidos por doação ou herança, dividindo-se somente o patrimônio adquirido durante a vida em comum. Claro que, quando da dissolução da sociedade conjugal, os cônjuges desejam que os bens sejam partilhados dessa maneira. É a velha expressão: o que é meu, é meu; o que é teu, é teu; e o que é nosso, metade de cada um. (DIAS, 2008, p. 109).

Por fim, essa corrente de pensamento levanta uma questão interessante acerca do motivo para as diversas interpretações do inciso I do artigo 1.829 do Código Civil. Segundo Maria Berenice dias, a diversidade de interpretações é fruto da confusa redação do mencionado inciso, mormente à pontuação, isto é, ao ponto e vírgula inserido no texto em comento. Para a doutrinadora, após o ponto e vírgula, passa-se a tratar de assunto diverso, não enquadrado pela expressão “salvo se”. Nesse sentido, eis o seu magistério:

Em respeito à natureza do regime da comunhão universal, o direito à concorrência só pode ser deferido se não houver bens particulares. Outra não pode ser a leitura deste artigo. Não há como contrabandear para o momento em que é tratado o regime da comunhão parcial a expressão “salvo se”, utilizada exclusivamente para excluir a concorrência nas duas primeiras modalidades: o regime da comunhão e o da separação obrigatória. Não existe dupla negativa no dispositivo legal, pois na parte final – após o ponto-evírgula -, passa a lei a tratar de hipótese diversa, ou seja, o regime da comunhão parcial, oportunidade em que é feita a distinção quanto à existência ou não de bens particulares. Essa diferenciação nem cabe nos regimes antecedentes, daí a divisão levada a efeito por meio do ponto-e-vírgula. Isso inverte totalmente o sentido da norma, pois afasta o direito de concorrência na hipótese de o de cujus possuir patrimônio particular. Exclusivamente no caso de não haver bens particulares é que o cônjuge concorre com os herdeiros.

(DIAS, 2008, p. 160).

Ainda sobre esse ponto:

Primeiro, a lei exclui o direito de concorrer de forma incondicionada, pela simples identificação do regime de bens (comunhão universal ou separação obrigatória). Ao depois, prevê outra hipótese (o regime da comunhão parcial), mas limita a concessão do direito à inexistência de bens particulares. Na terceira exceção, portanto, é excluído o direito de concorrência exclusivamente no caso de haver bens particulares. É o que diz a lei: (a sucessão legítima defere-se)...aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, (...) se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares4.

Analisando o mesmo caso do exemplo dado na página 3, qual seja: consorte falecido deixa um cônjuge com quem foi casado pelo regime da comunhão parcial de bens e dois filhos. À época do falecimento o autor da herança possuía R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais) em bens comuns e nenhum bem particular. Segundo a corrente de pensamento em estudo, teríamos:

Todavia, se o autor da herança deixar bens particulares, tais serão divididos unicamente entre os filhos (metade para cada um), enquanto os bens comuns serão divididos da seguinte forma:

3.1. DOS PROBLEMAS DESSE PENSAMENTO

A justificativa dada por Maria Berenice Dias para que o cônjuge supérstite, casado pelo regime da comunhão parcial de bens, herde sobre a meação dos bens comuns deixados pelo de cujus é que houve esforço mútuo dos consortes para adquiri-los e que o desejo manifestado pelo casal ao optar pelo regime da comunhão parcial era dividir os bens adquiridos conjuntamente. Todavia, com toda a vênia à ilustre autora, no casamento realizado sobre o regime da comunhão universal também há esforço mútuo na aquisição dos bens e a vontade dos nubentes em dividir os patrimônios é ainda mais evidente e incontestável. E no casamento realizado pelo regime da comunhão universal de bens, não há concorrência sucessória do cônjuge sobrevivente com os descendentes do de cujus.

Portanto, segundo o pensamento em comento, se o cônjuge supérstite for casado pelo regime da comunhão universal de bens, este não terá o direito à concorrência sucessória com os descendentes em hipótese alguma. Doutro lado, se o cônjuge sobrevivente for casado sob o regime da comunhão parcial de bens – e o falecido não houver deixado bens particulares – ele terá o direito de concorrer com os descendentes na meação do de cujus. Fica claro que, uma vez não havendo bens particulares deixados pelo falecido, o cônjuge sobrevivente casado pelo regime da comunhão parcial de bens terá direito a uma parte maior da herança do que o cônjuge casado pelo regime da comunhão universal de bens que esteja nas mesmas circunstâncias.

Outro problema a ser considerado é que a interpretação sugerida por Maria Berenice Dias possibilita fraudes semelhantes às permitidas pela interpretação estudada no tópico anterior5. Porém, agora o cônjuge sobrevivente não será mais o possível beneficiado pela fraude, mas sim o principal prejudicado, uma vez que pode ter seu direito à concorrência sucessória fraudado por descendentes do de cujus.

Nesse sentido, suponha-se a seguinte situação.

A adoção da interpretação em análise, também contraria o princípio da operabilidade, princípio fundamental do Código Civil de 2002. Nesse sentido, convém observar mais uma vez os brilhantes ensinamentos de Guilherme Couto de Castro. Se o mencionado autor, conforme supracitado, mostrou que o de cujus sempre deixará algum bem particular, por mais simplório que seja, o posicionamento em comento tornaria o inciso I do artigo 1.829 letra morta, uma vez que a condição necessária para o cônjuge supérstite adquirir direito a concorrer com os descendentes jamais seria satisfeita. Desse modo, o cônjuge supérstite nunca se tornaria herdeiro do de cujus, uma vez que a condição “se o autor não houver deixado bens particulares” nunca – ou quase nunca - será satisfeita.

Sobre o autor
Igor Ladeira dos Santos

Sócio fundador do Escritório Jander Maurício Brum & Igor Ladeira dos Santos Advogados Associados. Formado em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF; Especialista em Direito Imobiliário pela Universidade Cândido Mendes. Corretor de imóveis. Foi editor do periódico jurídico da UFJF - Alethes. Áreas de estudo aprofundado: Direito Imobiliário; Direito Sucessório; Direito Civil e Direito do Consumidor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Igor Ladeira. Análise crítica sobre o art. 1.829 do Código Civil brasileiro e suas diversas interpretações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7428, 2 nov. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46234. Acesso em: 24 nov. 2024.

Mais informações

O presente artigo científico foi, originalmente, pubicado no periódico jurídico Alethes, da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF http://periodicoalethes.com.br/media/pdf/10/periodico-alethes-edicao-10_2.pdf

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