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Os fundamentos hermenêuticos da crítica legítima.

Uma abordagem interdisciplinar da liberdade de expressão

Agenda 01/02/2016 às 23:25

O intuito em discorrer sobre esse tema foi, pura e simplesmente, a necessidade de implementação de uma ótica mais abrangente e ao mesmo tempo enfática sobre a liberdade de expressão no Brasil. A crítica, a que se faz presente, demonstra o quão longe a sociedade brasileira está do conceito ideal de liberdade de expressão. Trata-se uma abordagem interdisciplinar da Liberdade Constitucional de Expressão, prevista no artigo quinto inciso nono da Constituição Federal de 1988; envolvendo as mais diversas áreas de estudos afins da ciência do Direito.

RESUMO

Trata-se uma abordagem interdisciplinar da Liberdade Constitucional de Expressão, prevista no artigo quinto inciso nono da Constituição Federal de 1988; envolvendo as mais diversas áreas de estudos afins da ciência do Direito, tais como, sociologia jurídica, hermenêutica jurídica, filosofia jurídica etc. Pretendeu-se focalizar, com maior ênfase, os aspectos hermenêuticos impostos pelo ordenamento jurídico brasileiro ao exercício da Liberdade Constitucional de Expressão. Enumerou-se como objetivo específico, a constatação das atuais bases interpretativas adotadas, a fim de identificar se, na verdade, ocorre uma desproporcionalidade em relação às mesmas. Para tanto, utilizou-se de uma metodologia baseada em pesquisa de levantamento bibliográfico, catalogando as visões de renomados doutrinadores dentre os quais: Miguel Reale, J. J. Gomes Canotilho, Ronald Dworking, Peter Häbeler, Hans Kelsen etc. atrelado ainda ao estudo de casos concretos acerca da temática, como meio exemplificativo dos conteúdos abordados. Finalmente, defendeu-se a ideia do que seria a crítica legítima, intitulando-a como meio apto na resolução de tais conflitos de interesses.

Palavras-chave: Interdisciplinar. Direito. Liberdade. Honra. Ponderação. Crítica.

1. INTRODUÇÃO

Atualmente no Brasil, muito se fala em liberdade de expressão. De fato, houve uma significativa modificação no decorrer dos anos quanto à interpretação e aplicação das normas contidas no artigo 5º da Magna Carta, inclusive, quanto à liberdade de expressão. Não obstante, este princípio é ponto fundamental – e inegável – de um Estado Democrático de Direito, muito embora a ideia que se perfaz nos escritos não tenha uma aplicação desejável quando aplicados em um caso concreto.

Observa-se pessoas sendo rechaçadas pelas suas atitudes, palavras e ponto de vista mais contundente, sob o argumento da lesão à honra de outrem. Por óbvio, a pessoa lesada irá buscar reparar o dano sofrido, entretanto, no que pesa à liberdade de expressão – também resguardada constitucionalmente pelo artigo 5º – há de se balizar tais regras a fim de que se busque a melhor solução, de forma que haja um precedente para expressar-se livremente sem ofender quem quer que seja, desde que respeitando os limites impostos.

O presente trabalho é fruto de uma metodologia baseada em revisão bibliográfica, tanto nas mais renomadas referências da área, bem como, no que tem sido veiculado nos meios de comunicação, com especial ênfase na internet, onde se poderia chamar de modelo ideal de paradigma libertário, atrelada ao estudo de casos afins, com a intenção de exemplificar os argumentos expostos. O tema escolhido vem apontar a liberdade de expressão como um direito pouco explanado pelo corpo de leis do país, pois, o simples fato de a Constituição Federal prever certo direito não significa que, necessariamente, esteja sendo aplicado na prática. 

São inúmeras manifestações doutrinárias acerca do tema em roga, entretanto, poucos ousam apontar, de forma clara, os problemas que caracterizam a inexatidão da norma ou de sua interpretação vaga em face do caso concreto.

Pretende-se que com o presente trabalho adicione-se a esta discussão acadêmica um pouco mais de praticidade no tocante às técnicas de resolução de conflitos desta magnitude, inserindo uma visão amplificada dos principais conceitos jurídicos que se correlacionam intimamente com o tema em questão; gerando, assim, uma análise interdisciplinar de um único direito fundamental.

A temática é de suma importância, de um modo geral, visto que, por abordar de forma interdisciplinar um único conceito jurídico, viabiliza tanto ao acadêmico como ao leigo um estudo aprofundado deste conceito, catalogando e esmiuçando o máximo de vias interpretativas possíveis, gerando, assim, uma visão crítica e fundamentada do problema.

Quando focado na base hermenêutica da dogmática fica bem claro que a ideia não é descaracterizar a norma jurídica em si. Muito pelo contrário, tão somente apontar que o cerne do conflito reside na interpretação dada à norma, que por mais restrita, gera conflitos e não respostas, ideia esta concebida por Peter Häberle na seguinte passagem:

Imaginemos um funil, onde a abertura superior e maior representa a gama de interpretações sobre uma determinada matéria, formuladas pelos diversos legitimados. À medida que o processo se desenvolve, percebe-se que o número de interpretações diminui. Muitas são reformuladas, outras se fundem. Há um verdadeiro processo de liquidificação dessas interpretações até que a Corte Constitucional defina qual ou quais são aceitáveis e adequadas para aquela matéria. (...) O aumento na participação produzirá o surgimento de novas alternativas, as quais propiciarão ao juiz constitucional um contato maior com a realidade, decidindo, assim, teoricamente, de forma mais adequada, justa e legítima. (1997, p. 12.)

Tem-se aqui o objetivo de analisar os aspectos hermenêuticos impostos pelo ordenamento jurídico brasileiro ao exercício constitucional de liberdade de expressão pela sociedade. Além de responder à seguinte questão: é possível equacionar dois princípios constitucionais diametralmente opostos a fim de que haja uma consonância à carga valorativa que ambos ostentam? Em outras palavras, o que vale mais: a honra ou a liberdade de falar o que bem desejar? Ademais, para se atingir tal objetivo, formulou-se as seguintes hipóteses: A limitação ao direito à liberdade de expressão não condiz com a realidade vivida no Brasil, devido ao fato de estar muito defasada ou mal interpretada. Ou, em uma segunda visão, liberdade de expressão está devidamente positivada no ordenamento jurídico, entretanto, ou as pessoas fazem mal uso desse direito ou de fato se trata de um disfarce em forma de garantia constitucional.

Para tanto, faz-se necessário comparar critérios de proporcionalidade e razoabilidade à luz da Constituição e Código Civil; identificar a eficácia e a legalidade na aplicação da norma civil ao caso concreto; Mostrar a base interpretativa do Código Civil, comparado aos ditames constitucionais, a fim de aferir se a norma civil é suficientemente apta à resolução dos conflitos relativos à liberdade constitucional de expressão.

A revisão bibliográfica deste trabalho tem como base as teorias defendidas por renomados autores do ramo jurídico tais como: Miguel Reale, Hans Kelsen, J.J. Gomes Canotilho, Limongi França, Ronald Dworking dentre outros.

Expressar-se livremente é um direito garantido a todos. Entretanto, com muitas ressalvas, as pessoas tendem a extrapolar os limites que a lei determina para o exercício legal do direito previsto. Esse exagero, de fato, pode não ser atribuído ao mal uso de um direito, mas, à limitação desnecessária do mesmo.

Não raro, tais limites acabam sendo verdadeiras barreiras, quando se trata de um ato que a priori[1] não causaria nenhuma ofensa à honra subjetiva do sujeito passivo. Ainda assim, tais limites continuam vigentes, muito embora defasados. Sim, pois, numa análise superficial, pode-se falar que a sociedade avançou e, juntamente com ela, seus valores, sua forma de pensar e de se expressar; visto que a democracia proporciona tais modificações ao longo dos anos; ainda que haja tão pouco tempo implantada no Brasil.

A Constituição Federal de 1988 é bem enfática no seu artigo 5º ao enumerar as bases interpretativas para o livre exercício do opinar:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

O Código Civil de 2002, ao revés, enumera o conceito de ilícito tão somente. Sendo que esse silêncio proporciona inúmeras interpretações abrangentes, no tocante a resolução de conflitos dessa magnitude. Destacam-se os principais artigos:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

De certo que esse discurso envolve vários fatores influentes e determinantes. Destarte, é possível abordar mudanças sutis, porém, necessárias ao fiel cumprimento dos ditames legais acerca do tema. Entretanto, tais mudanças seriam apenas emergenciais, pois, o problema maior reside na defasagem das regras infraconstitucionais.

Não é preciso ser estudioso no caso nem mesmo membro do corpo jurídico pátrio para perceber tais afirmações. Tão o é, que até mesmo a United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization[2] - UNESCO estampa sua opinião claramente no seu portal eletrônico, como uma espécie de alerta aos representantes do poder brasileiro:

Entretanto, conta com uma legislação infraconstitucional – aquela que, de fato, estrutura as regras do jogo – que data de 1962 e, portanto, não responde aos desafios políticos e sociais postos pela Constituição Federal de 1988 e pela nova realidade social brasileira e, tampouco, atende à inquestionável revolução tecnológica pela qual passou e passa o setor.

A defasagem do marco regulatório resulta em uma série de consequências negativas para a efetiva garantia da liberdade de expressão e de imprensa. Entre elas, uma das mais importantes reside no fato de que, desde a promulgação da Constituição de 1988, o Estado brasileiro ainda não conseguiu estabelecer instâncias democráticas efetivas para a regulação da mídia, tal como um órgão regulador independente.

Segundo Sarlet (2006, p.40) cabe ressaltar que:

Importa considerar a relevante distinção quanto ao grau de efetiva aplicação e proteção dos direitos fundamentais (direito interno) e dos direitos humanos (direito externo), sendo desnecessário aprofundar, aqui, a ideia de que os primeiros que – ao menos em regra – atingem (ou, pelo menos, estão em melhores condições para isto) o maior grau de efetivação, particularmente, em face da existência de instâncias (especialmente as jurídicas) dotadas do poder de fazer respeitar e realizar estes direitos.

No entanto, é possível se conviver com essa defasagem enquanto não houver possibilidade de uma reformulação de tais normas. Para isso, é preciso bom senso do intérprete aplicador na norma jurídica, sendo fiel ao sentido em que esta determina, porém, adequando os conceitos às mudanças que tanto a população anseia. Dessa forma, o disparate entre Constituição e Legislação Infraconstitucional não será tão abismal; tornando o exercício de certos direitos mais efetivos.

No capítulo dois deste trabalho serão abordados os aspectos históricos pertinentes ao tema escolhido, fixando o contexto evolutivo ao qual se submeteu a construção e a defesa do ideal libertário. Ainda neste capítulo serão apresentados alguns dados estatísticos retirados dos Relatórios Anuais de 2008 e 2010 da Federação Nacional dos Jornalistas – FENAJ.

No capítulo três serão descritas as circunstâncias pertinentes à Imunidade Parlamentar, salientando a característica de elemento desnecessário no ordenamento jurídico, bem como, a argumentação lógico-sistematizada do motivo pelo qual essa ideia deveria ser extirpada da Magna Carta.

O capítulo quatro será dedicado ao estudo de casos pertinente ao problema escolhido. Serão trabalhados dois casos emblemáticos, sendo que, no primeiro, demonstrar-se-á a aplicação da cláusula de imunidade, por se tratar de um parlamentar e o segundo caso se refere ao humorista Rafinha Bastos, o qual foi alvo de represálias recentemente por suas piadas.

Finalmente, o capítulo cinco – e mais importante – deste trabalho abordará as principais circunstâncias jurídicas que envolvem o assunto escolhido. Serão complementados e concatenados com os pensamentos dos doutrinadores citados nos capítulos anteriores, a fim de que se forme a ideia central defendida para que seja tomada como parâmetro na resolução de futuros conflitos desta monta.

Por último, e não menos importante, as Considerações Finais acerca da temática abordada, fechará a explanação acadêmica do tema, bem como, apresentará o ponto de vista crítico já consolidado pelo autor.

Absolutismo no direito é algo que certamente pode-se dizer que não existe, muito embora, deve-se ter em mente que o importante a se discutir é todo o arcabouço que compõe o parâmetro legal desta ideia. É necessário que se atinja o objetivo tão almejado, para só então dirimir conflitos desta escala; sob o argumento de assim criar um cenário propício e eficaz que traga em si ferramentas hábeis à solução de tais conflitos; e tão somente isso.

Ademais, a liberdade de expressão é um consequente lógico de quem escolheu a democracia como sistema de governo, portanto, não se trata de um mal, mas sim um bem necessário. Como já dizia Winston Churchill: “Ninguém pretende que a Democracia seja perfeita ou sem defeitos. Tem-se dito que a Democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos” (s/d, p.2).

 
 

CAPÍTULO 2: ABORDAGEM HISTÓRICA

“No filme O Exterminador do Futuro, um schwarzenegger é mandado ao passado para exterminar a mãe de um líder revolucionário que está incomodando o governo. Matar o inimigo pela raiz por assim dizer. A lógica é inatacável: se não nascer no passado o problema não existirá no futuro. Muita gente já deve ter imaginado o que faria se tivesse o mesmo poder de voltar atrás para alterar um detalhe, refazer uma escolha, corrigir uma bobagem e mudar a sua vida. Há quem diga que a primeira tarefa do hipotético exterminador deveria ser voltar 508 anos atrás, se postar na praia e, à aproximação dos barcos de Cabral, começar a agitar os braços e gritar ‘Não! Não! Não!!!”

(Luis Fernando Veríssimo)

2.1. EM DEFESA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Inicialmente, faz-se necessário a inserção de um breve histórico da matéria objeto do estudo, com o objetivo de se traçar um delineamento conciso das ideias abordadas. Para tanto, toda a abordagem histórica aqui narrada está em consonância com as informações constantes na Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda. (2000).

O ideário de liberdade, democracia e governo constitucional têm sua gênese na antiguidade clássica partindo dos filósofos gregos, que mais tarde, nas mãos dos filósofos da idade média permeou até a modernidade.

Entretanto, esse ideal de liberdade defendido pelos gregos era algo muito sutil, pois, naquela época, a mão-de-obra empregada nas cidades-estados era exclusivamente escravocrata, possibilitando aos cidadãos a participação direta na vida política. O conceito de cidadão era igualmente restrito, pois, na democracia grega somente participavam os homens livres, e nacionais, ou seja, excluíam-se as mulheres, os estrangeiros e os escravos.

Na idade média, a liberdade de um modo geral estavam sob a égide da Igreja. Ditadora da vida da população, na qual impunha mandamentos e regras incontestáveis; os chamados dogmas. O clero, juntamente com a realeza, detinha o topo da pirâmide social, em seu mais alto cume. Mais abaixo, na base da pirâmide, encontrava-se a burguesia que dela faziam parte os comerciantes em geral. Era essa camada social que sustentava a nobreza e o clero por meio do pagamento dos impostos a que eram submetidos. De nada adiantava contestar as ideias impostas pela Igreja. Aqueles que tentavam eram mortos ou aprisionados e jamais gozariam de vida pública novamente; além de serem condenados como hereges[3]. Um exemplar destas condutas foi o caso de Galileu Galilei.

Galileu[4] acreditou, desde a mocidade, na tese do heliocentrismo[5]. Suas importantes pesquisas e brilhante argumentação chamaram a atenção das autoridades para as divergências entre sua concepção do universo e a posição da Igreja Católica, que preconizava o geocentrismo[6]. Suas obras se tornavam ainda mais perigosas porque, ao contrário dos outros sábios, não escrevia em latim, mas na própria língua falada pelo povo, o que o tornou muito popular.

Ainda em 1613, reafirmou a validade do sistema heliocêntrico e declarou que as Escrituras Sagradas eram alegóricas e, assim, não podiam servir de base para conclusões científicas. A polêmica provocada pelo tema levou a Igreja Católica a proibir o livro de Copérnico e a condenar Galileu, submetido a julgamento pelo Tribunal da Inquisição.

Impedido de prosseguir os estudos sobre o sistema de Copérnico, Galileu recolheu-se a seu castelo, na localidade de Arcetri, nos arredores de Florença, onde se dedicou a estabelecer e comprovar novos métodos de pesquisa científica baseados na experimentação. Solicitou ao papa Urbano VIII, seu protetor, permissão para escrever uma obra em que os dois sistemas seriam comparados. Em 1632, publicou o que se tornaria seu principal trabalho, Diálogo sopra i due massimi sistemi del mondo, tolemaico e copernicano (Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo, ptolomaico e copernicano), com sólida argumentação contra as razões que então se alegavam para refutar a possibilidade do movimento terrestre. A obra provocou acirrada polêmica e as ideias de Galileu foram consideradas por muito mais perigosas que as de Lutero[7] e Calvino[8]. Novamente julgado pela Inquisição, concordou em abjurar para evitar uma condenação maior.

Essa crítica ferrenha defendida por Galilei encontrava bases no movimento iluminista surgido no século XVIII na França, do qual era também filiado. O iluminismo foi um grande precursor das chamadas liberdades individuais e grande influência para a criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seus trinta artigos que estabelecem os direitos fundamentais do homem.

Por outro lado, Emmanuel Kant[9] foi outro grande expoente na defesa da liberdade de expressão. Observa-se o quão ferrenho defensor era tanto por sua filosofia – racional por essência – como por seu ideário político.

As ideias estruturantes da doutrina kantiana ostentam um álibi de dever moral do pensar, visto que o filósofo por diversas vezes condenava a simples captação das informações pelo observador, defendendo, por sua vez, que o ser humano possui a inteligência suficiente para tecer um juízo de valor acerca do que lhe é posto como verdade (KANT, 2001). Em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, o filósofo defende a autonomia da vontade como sendo o princípio supremo da moralidade, isto se levado em conta o homem médio, pois, esse sim estaria em condições ideais para formular uma crítica racional e substancialmente embasada na sua moral individual. No mais, defende o filósofo o seguinte ponto de vista:

A vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, a liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente, independentemente de causas estranhas que a determinem; assim como a necessidade natural é a propriedade da causalidade de todos os seres irracionais de se serem determinados à atividade pela influência de causas estranhas (1992, p.93).

Dessa forma, a autocrítica e o autoconhecimento são duas ferramentas indispensáveis à formação do conhecimento humano; motivo pelo qual toda e qualquer opinião, seja ela contrária ou favorável a determinado assunto, deve ser observada como legítima.

Isso é compreensível pelo simples fato de que o homem, enquanto ser racional, sentir a necessidade de expor suas ideias a respeito de certo assunto, quando então acredita dessa forma estar exercendo um direito que lhe é favorável.

O sentimento de liberdade é tão mais presente à medida que se insere na sociedade o conceito de democracia, visto que nenhum outro regime de governo é capaz de açambarcar todo o ideário filosófico, político e social atinente à liberdade de expressão. 

2.2. PERÍODO DITATORIAL BRASILEIRO

A luta pela liberdade de expressão ainda se estendeu por longos períodos até se chegar ao padrão que se conhece atualmente. Nesse ínterim, ocorreram inúmeros derramamentos de sangue, prisões, exílios, etc. Mas, o que por um lado poderia ter sido considerado em vão, muitos dos doutrinadores compartilham de um ponto em comum, pois, na verdade, foi de suma importância para que propiciasse aos tempos atuais meios suficientes de prosseguir na incansável batalha pelo direito de expressar-se livremente.

No Brasil, o histórico de luta pela liberdade de expressão foi mais tardio, visto que a necessidade por tal direito somente teve início com a chegada da família real a até então colônia de Portugal.

Durante todo o período imperial que se instaurou no país, não ocorrera movimentos significativos dos quais pudessem marcar a história brasileira, nesse tocante. Entretanto, com a proclamação da república, em 1889, iniciou-se a jornada pela busca de direitos, dentre os quais a necessidade de expressar-se livremente.

O estopim da luta pela liberdade de expressão teve seu início no Brasil a partir do golpe de Estado, em 1964, qualificado por alguns como revolução, e, que instituiu no país o período ditatorial, caracterizado por intensas lutas armadas, opressão às massas e desrespeito às regras constitucionais. Não raras foram as manobras de exílio e assassinatos daqueles que tentavam se rebelar contra os ditames militares.

Um dos grandes expoentes da luta pela liberdade de expressão no Brasil foi Carlos Lacerda. Político e jornalista brasileiro, comunista militante na juventude, Lacerda se tornou um dos mais combativos líderes conservadores do país e envolveu-se em importantes episódios da vida política nacional.

Carlos Frederico Werneck de Lacerda, registrado em Vassouras, no Rio de Janeiro, na verdade, nasceu na capital do Estado, em 30 de abril de 1914. Estudou Direito no Rio de Janeiro, mas não se formou. Sobrinho e filho de líderes comunistas, em 1935, aderiu à Aliança Nacional Libertadora, entidade ligada ao Partido Comunista do Brasil. Suas posições de extrema esquerda dessa época, no entanto, cederiam lugar a um anticomunismo exacerbado. Trabalhou em vários órgãos da imprensa carioca e, em 1949, fundou seu próprio jornal, a Tribuna da Imprensa.

Notável orador e adversário ferrenho do presidente Getúlio Vargas, a extrema violência de suas campanhas tornou-o alvo de atentados, como o de 5 de agosto de 1954, quando morreu o major Rubens Florentino Vaz, que o acompanhava. O inquérito militar sobre o atentado levou Vargas a suicidar-se[10].

Transcreve-se um pequeno trecho do discurso proferido em agosto de 1961, no qual Carlos Lacerda denunciou a tentativa de golpe articulada em torno de Jânio Quadros, às vésperas da sua renúncia à presidência:

A imprensa está sendo subjugada economicamente através da súbita e brutal, e desnecessariamente súbita e brutal, elevação do custo do papel. Ao contrário de todos os conselhos que recomendavam elevação gradativa, formou-se na área do Palácio do Planalto, a deliberação de aumentar, em vinte e quatro horas, de trezentos por cento o preço do papel, reduzindo-se, com isso, a dois ou três o número de órgãos de imprensa em condições de economicamente resistir ao embate.

Todos sabem o que isso significa para a liberdade de informação e do comentário, sobretudo quando ao lado do impacto econômico sobre a imprensa jornalística existe a infiltração, que por baixo progride, das forças comunistas na imprensa.

No que se refere ao rádio e à televisão, começa-se com certa monotonia para quem acompanha essas coisas: assim foi na Alemanha antes de Hitler, foi assim em Cuba, à medida que Fidel Castro evoluía para o comunismo. Começa-se por medidas puritanas, que enchem de regozijo a Igreja e satisfazem os anseios das famílias, mas que levam em si o princípio da intervenção do poder público na liberdade informação e da opinião (FIGUEIREDO, 2003. p 335).

Pouco a pouco, o movimento militar ia tomando conta do governo, reprimindo a sociedade, desrespeitando os ditames constitucionais, retirando direitos consolidados do povo e restringindo liberdades.

Inicialmente, o fundamento era de reprimir o progresso das forças comunistas no país, visto que naquela época o ideário comunista era quisto como a excrescência da sociedade e, como tal, merecia ser combatida ferrenhamente. Entretanto, o comodismo e a praticidade do poder superou a tímida boa-fé dos militares que, logo em seguida, diferiram medidas drásticas e incontestáveis. Passou-se a governar por meio dos Atos Institucionais, que se sobrepunham à própria Constituição. Foi o fim do Estado Democrático de Direito e das instituições democráticas.

O Ato Institucional número 5 (AI-5) foi o quinto de uma série de emendas diferidas na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1967. Com ele, o presidente da República passava a gozar de plenos poderes de mando e a consequências mais imediata foi o fechamento do Congresso Nacional por quase um ano.

Entretanto, a consequência mais desastrosa – muito embora esperada – foi a restrição de inúmeras garantias constitucionais.  A imprensa teria agora sua atuação vigiada, por meio da censura. Não se podia mais publicar quaisquer que fossem as matérias contrárias aos interesses da ditadura. E, não somente a imprensa, como, também, qualquer cidadão que ousasse ir de encontro aos ditames dos militares. Cita-se uma pequena parte do texto original do AI-5 (BRASIL, 1968):

Art. 3º - O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição.

Parágrafo único - Os interventores nos Estados e Municípios serão nomeados pelo Presidente da República e exercerão todas as funções e atribuições que caibam, respectivamente, aos Governadores ou Prefeitos, e gozarão das prerrogativas, vencimentos e vantagens fixados em lei.

Art. 4º - No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Parágrafo único - Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais, que tiverem seus mandatos cassados, não serão dados substitutos, determinando-se o quorum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos.

Art. 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em:

I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;

II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;

III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;

IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança:

a) liberdade vigiada;

b) proibição de frequentar determinados lugares;

c) domicílio determinado,

§ 1º - O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados.

§ 2º - As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo Ministro de Estado da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário.

Por força do AI-5 chegava-se ao ponto de não mais se poder organizar reuniões pacíficas em praças públicas, conforme se observa o inciso terceiro do artigo quinto da lei. Segundo André Lins de Melo (2012, p 19.) cursos universitários eram obrigados a receber um interventor do governo, a fim de que fiscalizasse de tal maneira a impedir as reuniões estudantis; com o intuito de coitar represálias por parte dos mesmos. Nesse momento, a ditadura de 1967 se manifestava com mais força do que na época da ditadura de Getúlio Vargas, com a invasão de tropas militares nas universidades, demissão e prisão de professores e estudantes, apreensão de livros, destituição de reitores e nomeação de reitores interventores.

Esse período da história brasileira perdurou até 1985 quando, então, as forças militares começavam a ceder e pouco a pouco iam promovendo a abertura política. A população, então, foi às ruas clamar por eleições diretas e o retorno da democracia ao país.

2.3. OS NÚMEROS DA VIOLÊNCIA

Num país em processo de desenvolvimento, com dimensões continentais e cultura voltada à intimidação político-econômica e autocensura[11], torna-se difícil a reunião de informações fidedignas a respeito da violência sofrida pelos profissionais da imprensa, em especial ênfase, por serem o público alvo das represálias. Isso decorre da baixa denúncia dos atos cometidos contra tais profissionais, gerando números que não condizem exatamente com a realidade. Assim, os dados colhidos tendem a ser mais emblemáticos do que estatísticos.

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Mesmo assim, a Federação Nacional dos Jornalistas - FENAJ, a qual reúne todos os sindicatos de jornalistas do país, desde 1980, realiza um minucioso trabalho de registro e monitoramento de agressões a jornalistas – as quais se consegue registrar – em suas diversas modalidades. A FENAJ, por si só, não possui o condão de reprimir as afrontas sofridas pelos jornalistas, por isso, lança mão de um relatório estatístico anual no qual aponta, com precisão matemática, os mais diversos crimes praticados contra os integrantes da imprensa.

A entidade possui, em sua diretoria, uma Comissão Nacional de Direitos Humanos e, esta, vem produzindo tais relatórios, a partir das denúncias feitas aos Sindicatos de Jornalistas, bem como, à própria Federação.

O relatório Violência e Liberdade de Imprensa no Brasil, publicado em maio de 2007, pela FENAJ (ver anexo I), revelou que em 2006 foram 68 os casos de cerceamento e violência vividos por jornalistas. Agressões físicas e verbais são as denúncias mais recorrentes. Elas representaram, em 2006, 31% do total de violações. O relatório ainda destaca que, além da autocensura frequente, existe também a interferência direta na apuração da notícia, tais como o grampo telefônico e a violação do sigilo da fonte.

Entre os casos mais extremos catalogados estão assassinatos, sequestros, prisões e tortura. Em 2010, a FENAJ publicou um novo relatório (ver anexo II) no qual apresentou números parecidos. Entretanto, a maior parte das represálias continuou sendo de fato as agressões físicas e verbais constituindo, ainda assim, uma margem de 42% dos casos registrados, ou seja, ao contrário do que se espera, corresponde ao aumento de 11% no índice registrado em 2006.

Em comparação a 2007, as taxas de agressão física e verbal subiram cerca de 3%, enquanto que em 2008 não foram catalogados tais tipos de agressão. Entretanto, não haveria nenhum equívoco em considerar os valores encontrados para tortura como sendo pertencentes à agressão física, visto que em 23% dos casos registrados, em 2007, foram concebidos por políticos ou a mando dos mesmos. O mais incrível registro catalogado pela FENAJ, ainda em 2007, pode-se observar que, em 3% dos casos, de violência a jornalistas foram atribuídos a advogados. Entretanto, tal número não se repetiu no relatório de 2010.

De fato, a liberdade de expressão – ou nesse caso, de imprensa – enfurece inúmeras classes da sociedade nas quais detém o poder, tornando-os capazes de cometer tais atos, que variam da mais simples injúria até ao cometimento de assassinatos.

A questão é que, por mais que haja uma afronta à honra de outrem, isso por si só não viabiliza a utilização da força bruta para se fazer justiça. É deveras louvável a defesa da honra como bem juridicamente tutelável, mas o argumento de proteção à honra seguramente não pode ser entendido como licença para se promover justiça com as próprias mãos.

Se a justiça é morosa, por conta das inúmeras ações que encharcam as prateleiras dos fóruns, essa sim pode ser uma justificativa consciente, mas ainda assim insuficiente. Entretanto, o que pode ser constatado como um real problema para o exercício do direito constitucional de livre expressão reside no fato de o corporativismo existir em alguns grupos sociais que detém poderes especiais sobre aquilo que se julga ser atitude ilícita, e que por conta desses poderes permanecem intocáveis.

CAPÍTULO 3: UTOPIA DA LIBERDADE - UMA QUESTÃO DE INTERPRETAÇÃO

“Era uma vez, numa terra muito distante uma linda princesa independente e cheia de autoestima que, enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago de seu castelo estava de acordo com as conformidades ecológicas, se deparou com uma rã. Então a rã pulou no seu colo e disse:

- Linda princesa, eu já fui um príncipe muito bom. Uma bruxa má lançou-me um encanto e transformou-me nessa rã asquerosa. Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo e poderemos casar e constituir um lar feliz em teu lindo castelo. A minha mãe pode vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavarias as minhas roupas, criarias os nossos filhos e viveríamos felizes para sempre!

Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã à sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria e pensava:

– Nem fu-den- do!!!”

(Luís Fernando Veríssimo)

Discutir-se-á nesse capítulo as características da chamada imunidade parlamentar, inserida no caput do artigo 53 da Constituição Federal do Brasil de 1988 – CF/88.

Defender-se-á a tese de que tal regra insere uma permissão ao uso indevido do direito constitucional de liberdade de expressão, bem como, gera uma eficácia diferida desta norma.

3.1. IMUNIDADE PARLAMENTAR: CARACTERÍSTICAS E PONDERAÇÕES

Inicialmente, faz-se necessário a transcrição do artigo 53 da CF/88, foco da discussão do presente capítulo: “Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Logo, a imunidade parlamentar é uma prerrogativa inserida na Constituição para proporcionar ao político, meios de exercer sua função sem que haja represálias por sua atuação. Entretanto, tal prerrogativa, em alguns momentos, se confunde com permissão ao descumprimento do direito á honra.

Nesse corolário, Pedro Lenza (2007. p. 321) demonstra que existem duas importantes classificações de imunidades quais sejam: material e imunidade formal. Por conseguinte, defende a tese de que:

Assim, importante notar que, em sua essência, as aludidas prerro­gativas atribuídas aos parlamen­tares, em razão da função que exercem, tradicionalmente pre­vistas em nossas Constituições, com algumas exceções nos mo­vimentos autoritários, reforçam a democracia, na medida em que os parlamentares podem livremente expressar suas opiniões, palavras e votos, bem como estar garanti­dos contra prisões arbitrárias, ou mesmo rivalidades políticas. Por conta da imunidade processual, o parlamentar que cometesse os crimes de injúria, calúnia e difamação, não poderia ser processado se não houvesse uma permissão da casa à qual pertencesse.

A inovação trazida pela Emenda Constitucional nº 35 de 3 de abril de 2012, foi a de justamente contrapor tal precedente. Agora, o Supremo Tribunal Federal daria início ao processo, independentemente de permissão, devendo somente notificar a casa à que pertence o parlamentar para que em até 45 dias deliberem sobre o pedido de sustação do processo. Tal sustação passou a depender da maioria simples (50% mais um) dos votos dos membros do partido a qual o indiciado é filiado. Dessa forma, se optarem pelo pedido de sustação do processo, interromper-se-ia o prazo prescricional[12] da ação enquanto durasse o mandato. Por óbvio, quando terminado o prazo do mandato, e voltando ao status quo ante[13] de cidadão comum, seria novamente iniciado o processo o qual deu causa, concedendo-se um novo prazo prescricional para a prolação da sentença.    

Mas, o cerne do problema consiste em, justamente, questionar a existência dessa prerrogativa, visto que, se existe a previsão constitucional de liberdade de expressão esta deveria ter sua eficácia devidamente regulamentada.

3.2. IMUNIZAR NÃO É A SOLUÇÃO

De certo que houve mudanças substanciais e necessárias na legislação. Entretanto, o legislador não retirou certas regalias tão somente para obedecer ao momento de resignação exigido; tendo em vista as inúmeras demonstrações de desrespeito à norma constitucional de inviolabilidade à honra.

É vislumbrante a mitigação da liberdade de expressão no ordenamento jurídico brasileiro. Tanto que para o exercício de um cargo parlamentar necessitou-se de uma cláusula de imunidade. Nesse tocante, deve-se observar também a lisura no que tange aos demais princípios envolvidos. Um deles – se não o principal – é o chamado Isonomia. Pois, se todos são iguais perante à lei, por que há de se falar em uma cláusula de imunidade para parlamentares se a estes também é concedido o direito de se expressarem livremente?

O procedimento atinente à Isonomia diz que se deve tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na medida de suas desigualdades. Porém, o que são os parlamentares senão representantes do próprio povo? Enquanto representantes, estariam eles em condição especial a tal ponto de receberem tratamento diferenciado? Ora, pois, como parlamentares, no exercício de suas funções, recebem uma regalia que somente a eles é resguardada: a tão polêmica imunidade. Na tentativa de explicar tal paradigma, leciona Sampaio Júnior (2010, p. 01):

As liberdades públicas operam, no âmbito jurídico, dentro de uma estrutura normativa legal. Trata-se de uma espécie de poder que o Estado confere aos indivíduos: poder de autodeterminação. A liberdade é um poder/dever que cada ser humano exerce sobre si mesmo, e trata-se de uma obrigação negativa, ao contrário da maioria dos outros direitos, ou seja, em seara da liberdade, o meu dever é apenas respeitar, pela abstenção, a liberdade dos outros.

Há quem argumente que certas manifestações da liberdade de expressão podem ferir o princípio da igualdade. Entendem que a divulgação de algumas opiniões específicas podem vulnerar grupos menos privilegiados e contribuir para o aumento da desigualdade. Esta corrente fomenta a ideia de que algumas pessoas não devem ser livres para expressar as suas opiniões e preferências.

É preciso sempre muita atenção para que não caiamos no erro de acreditar que os institutos da liberdade e da igualdade estão em lados opostos. Na verdade, ambos se complementam na luta pela efetivação dos direitos fundamentais da humanidade. Não existe o tal propalado conflito entre a liberdade e a igualdade, e mesmo se existisse teríamos que fazer a opção pela liberdade, pois o entendimento contrário nos levaria a justificar a existência de um Estado controlador[...] (grifos nossos)

Não obstante ocorre de parlamentares se esconderem atrás da imunidade material para justificar afrontas e incorrigíveis abusos da liberdade de falar, que acabam desaguando em manifestações de agressividade à honra.

Conforme o que já foi abordado anteriormente, há como se equilibrar dois princípios diametralmente opostos quais sejam a liberdade de expressão e a inviolabilidade à honra. Mas, a inserção de uma cláusula de imunidade no ordenamento jurídico pátrio gera desconfiança quanto à possibilidade de balizamento destes princípios; mesmo porque uma simples cláusula aditiva ao contrato não revigora a eficácia daquela norma ao seu mais elevado patamar.

Primeiramente, explica-se o porquê de considerar essas regras basilares como princípios in lato senso[14]. Entende-se como princípio a norma geradora maior das demais regras de um ordenamento jurídico, pelo fato desta concentrar uma carga valorativa incomensurável cuja amplitude acarreta na impossibilidade de se implementá-la ao caso concreto. Cita-se o que diz Marcelo Novelino (2009, p. 4) acerca desta problemática:

Apesar de inquestionável a importância do papel desempenhado pelos princípios dentro de um ordenamento jurídico, há muito se discute acerca de sua natureza. Poderiam ser eles utilizados como argumentos capazes de criar direitos e impor obrigações? A resposta a essa questão é essencial, pois, no caso de tratar-se os princípios jurídicos como meras diretivas teóricas, ter-se-á de admitir, por conseguinte, que nas decisões em que eles são utilizados como fundamento, “a norma é posta pelo juiz e não, ao contrário, somente aplicada ao caso específico”.

Para a fundamentação da relevância do papel dos princípios jurídicos é deveras importante - explica DWORKIN - a análise da obrigação jurídica, sendo que, para isso, pode-se adotar dois pontos de vista distintos que são: 1º) dar aos princípios o mesmo tratamento dado às normas, ou seja, destacar sua obrigatoriedade como Direito, assim como a necessidade de sua apreciação por parte de seus aplicadores ao tomarem decisões judiciais; ou 2º) negar a obrigatoriedade dos princípios, o que levaria à conclusão de que o juiz busca algo além das normas que o vinculam, como, por exemplo, os “princípios extrajurídicos”, que seriam seguidos ou não a seu critério. A escolha de um dos dois pontos de vista é relevante por existir uma diferença fundamental entre aceitar uma norma como obrigatória e ter o costume de fazer alguma coisa como norma. (grifos nossos)

Como consequência, editam-se normas mais específicas e direcionadas à resolução de conflitos que, necessariamente, precisam de uma base legal mais restrita para cada caso. Nesse caso, há um choque entre princípios de ordem social que geram um fervor súbito ao ponto de criar instabilidade nas relações sociais.

Desse modo, liberdade de opinião e inviolabilidade da honra são dois princípios constitucionais que merecem a maior dedicação e imparcialidade do intérprete-aplicador a fim de dirimir as relações jurídicas controvertidas. Dá-se a esta tarefa o nome de ponderação, tarefa esta bastante árdua. É por isso que não há como se chegar a uma fórmula milagrosa de se dirimir tais conflitos, tão somente deve-se observar caso a caso.

Entretanto, algumas situações inusitadas fogem ao crivo do intérprete-aplicador da norma jurídica, visto que só lhe é interessante à resolução da relação jurídica controvertida quando possui previsão jurídica disponível. Comodidade esta que torna o intérprete um mero repetidor da norma. Em outras palavras, a função de intérprete fica subjugada à facilidade de previsão absoluta da norma.

Houve um tempo em que esse positivismo exacerbado tinha total aceitação. Lex clara non indiget interpretatione[15], jáfoiconsiderado como a máxima indiscutível do direito.

Atualmente, é inconcebível se pensar em uma norma jurídica específica na qual não se admita nenhuma interpretação, visto a imensa velocidade com que a realidade social avança em detrimento à defasagem das leis. Criar uma lei para cada fato jurídico é um trabalho altamente complicado, como, também, pouco inteligente.

3.3. INTERPRETAR É PRECISO

3.3.1. O positivismo jurídico

Também conhecido como Jus positivismo, o positivismo jurídico é o reflexo mais imediato da tradição iluminista, que tem como foco o fundamento de que o Estado é o formulador exclusivo e legítimo da norma jurídica, esta, portanto, é uma concepção de instrumento do exercício do poder Estatal.

O positivismo jurídico conclama a suposta identidade entre Estado e Direito, visto que a consequência mais óbvia dessa filosofia consiste em colocar o intérprete-aplicador da norma como mero mandatário. Em outras palavras, não se trata de um intérprete-aplicador, tão somente um aplicador da norma ao fato.

Indiscutivelmente, o direito é de suma importância para a sociedade como instrumento de controle e manutenção da ordem. Entretanto, a proposta iluminista interfere na questão lógica de que a sociedade não segue os parâmetros de desenvolvimento da norma, sendo que jamais o direito poderá açambarcar todas as regras determinadas para cada tipo de acontecimento relevante.

O maior expoente da corrente positivista foi Hans Kelsen. Nascido em Praga, posteriormente emigrado para os Estados Unidos, o eminente jurista consagrou a doutrina positivista ao formular sua obra prima: Teoria Pura do Direito[16].

A obra de Kelsen veio consagrar a tentativa de conceber a Ciência do Direito um caráter autossuficiente, eliminando juízos de valores e ideias políticas previamente concebidas; conforme se observa na explicação proposta pelo autor:

Quando a si própria se designa como pura teoria do Direito, isto significa que ela se propõe a garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. Isto parece-nos algo de per si evidente. Porém, um relance de olhos sobre a ciência jurídica tradicional, tal como se desenvolveu no decurso dos sécs. XIX e XX, mostra claramente quão longe ela está de satisfazer à exigência da pureza. (KELSEN, 1999. p. 01)

Segundo Kelsen o direito deveria ser validado e ordenado pela teoria do direito, entendida como pura e por se sustentar logicamente não dependendo de valores extralegais. Não haveria, portanto, um direito natural.  Logo, toda norma se baseia em outra anteriormente aceita por considerável parte da comunidade.

Mas, ao contrário de uma ideia totalmente hermética às interpretações, Kelsen afirma categoricamente que é necessário interpretar a norma jurídica, visto que o conjunto de ideias ali imersas podem em si gerar o resultado desejado para resolver o caso concreto.

Entretanto, o molde interpretativo sugestionado pelo catedrático doutrinador, consiste em digerir as informações transcritas na norma à luz do objeto do próprio direito, ou seja, identificar dentre um conjunto de possibilidades a que mais se caracteriza como juridicamente adequada, utilizando-se como parâmetro as próprias diretrizes traçadas pela norma. Para melhor exemplificar, seguem as palavras do doutrinador:

Se por interpretação se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito - no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa - não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral.

(KELSEN, 1999. p. 247).

De toda forma, a explicação dada por Kelsen dá ensejo à abstratividade da norma jurídica, uma característica essencial sem a qual não se poderia conceber uma norma que visa perdurar por anos à fio imersa no ordenamento jurídico, sem que, necessariamente, tenha que ser revogada por outra mais específica – diga-se de passagem, igualmente abstrata.

Destarte, o autor ainda não descarta a importância da Ética e da Sociologia como bases informadoras do Direito, ainda que algumas normas jurídicas fujam a certas normas morais habitualmente tidas como corretas, pois, considerando um ponto de vista dirigido ao Direito Positivo, “uma norma jurídica pode ser considerada como válida ainda que contrarie a ordem moral”. (KELSEN, 1999. p. 48).   Uma vez que se considera uma pequena contribuição de tais ramos conhecimento humano, extingue-se a tentativa de purificar o Direito, visto que sua autossuficiência é relativamente questionável.

3.3.2. A trindade jurídica

A interpretação da norma jurídica encontra respaldo desde o seu nascedouro, visto que a própria formulação da lei pressupõe a hermenêutica dos seus elementos axiológicos. Em outras palavras, conceder a norma o caráter hermético não condiz com a sua natureza, visto que a mesma é fruto da conjugação e do juízo de valores.

Ainda em 1973, o emérito doutrinador Miguel Reale consubstanciava sua teoria a respeito da tridimensionalidade do Direito. Para o autor, o Direito é a conjuntura de três elementos interdependentes e harmônicos entre si. Para tanto, diz o seguinte: 

Quando, pois, dizemos que o Direito se atualiza como fato, valor e norma é preciso tomar estas palavras significando, respectivamente, os momentos de referência fática, axiológica e lógica que marcam o processus da experiência jurídica, o terceiro momento representando a composição superadora dos outros dois, nele e por ele absorvidos e integrados

O certo é que, enquanto que para um adepto do formalismo jurídico a norma jurídica se reduz a uma “proposição lógica”, para nós, como para os que se alinham numa compreensão concreta do Direito, a norma jurídica, não obstante a sua estrutura lógica, assinala o “momento de integração de uma classe de fatos segundo uma ordem de valores”, e não pode ser compreendida sem referência a esses dois fatores, que ela dialeticamente integra em si e supera.  (2002, p. 96) (grifos do autor).

Dessa forma, a conjuntura tridimensional consiste na união de três elementos indissociáveis, quais sejam: o fato social, como elemento natural e independente da vontade humana, o valor, como o ato cognitivo do ser humano enquanto agente do Direito e a norma sendo o produto da atuação positiva dos dois outros elementos necessários à sua formação e instrumento de controle estatal sobre as relações sociais.

O fato social é o elemento objetivo da trindade. Consiste no acontecimento social de tal relevância que deve ter suas características tipificadas pelo direito. Como tal, o fato social, segundo Emile Durkheim, deve ser tratado como coisas. (2001, p. 42). Isso pela sua característica fundamental, que é a coerção externa. O fato social existe independente da vontade do indivíduo, por ser o fruto de uma moral exercida em uma determinada ordem social da qual ele faz parte. O maior exemplo disso seria o crime in lato sensu. Para Durkheim, o crime, além de considerado normal, por estar presente em todos os tipos sociais sem exceção, é um fato social útil visto que através dele obtém-se uma evolução social e jurídica considerável. Segue, portanto, as palavras do autor:

Em primeiro lugar, o crime é normal porque uma sociedade isenta dele é completamente impossível [...]. O crime não se observa só na maior parte das sociedades desta ou daquela espécie, mas em todas as sociedades de todos os tipos. Não há nenhuma em que não haja criminalidade [...]. (2001. p 85)

Nesse tocante, o crime é um fato social de excepcional relevância jurídica, merecendo particular tutela jurisdicional. Entretanto, para que se formule uma norma jurídica condizente e eficaz, necessita-se, antecipadamente, um juízo de valor acerca desse fato social em questão. Eis o segundo elemento da trindade: o valor.

O valor é o elemento subjetivo da trindade. Consiste na atuação crítica acerca do fato social. Uma interpretação baseada na ponderação de valores cultivados pelo indivíduo, a partir da sua moral individual, bem como, na moral praticada pela sociedade da qual faz parte.

É nesse momento que se faz necessário a inserção de um agente capaz, instrumentalizado e de ilibada conduta moral. A grande dificuldade dessa fase está na necessidade de manter-se inerte, imparcial acerca da análise a qual se submete o fato social. Dessa fase, obtém-se o produto da trindade que é a norma.

A norma é o objeto de estudo do Direito. É o instrumento de atuação do jus puniendi[17] do Estado. A norma, enquanto vigente, é a formalização da trindade jurídica, capaz de gerir a vida em sociedade e de impor o equilíbrio perante o caos.

 Portanto, é notável que, para se obter a noção da eficácia legal é de suma importância recorrer aos outros dois elementos precedentes a ela. Consequentemente, a trindade jurídica vem reafirmar a importância da interpretação do preceito legal, como o caminho adequado para sua aplicação ao caso concreto. Com isso, não restam dúvidas de que a interpretação é o caminho para a resolução de inúmeros conflitos de ordem jurídica.

Entretanto, tal procedimento anteriormente narrado só se aplica às chamadas normas infraconstitucionais. Ou melhor, a interpretação da constituição, por se tratar da norma maior do Estado, segue um procedimento um tanto mais complicado em face da supremacia da norma constitucional – outro princípio informador incontestável da Constituição.

3.3.3. Interpretando a Constituição

A moderna doutrina constitucional leciona o que se denomina constitucionalismo.Para Canotilho (1997, p. 45 e 46) constitucionalismo é a "teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia de direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade [...] técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos".

Complementando o conceito anteriormente citado, ainda na linha de pensamento do autor, diz o seguinte:

[...] fala-se em constitucionalismo moderno para designar o movimento político, social e cultural que, sobretudo a partir de meados do século XVIII, questiona nos planos político, filosófico e jurídico os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo, ao mesmo tempo, a invenção de uma nova forma de ordenação e fundamentação do poder político. Este constitucionalismo, como o próprio nome indica, pretende opor-se ao chamado constitucionalismo antigo, isto é, o conjunto de princípios escritos ou consuetudinários alicerçadores da existência de direitos estamentais perante o monarca e simultaneamente limitadores do seu poder. Estes princípios ter-se-iam sedimentado num tempo longo – desde os fins da Idade Média até ao século XVIII. (1997, p. 45 e 46)

As bases do constitucionalismo emergiram ainda no período absolutista consagrado na Europa Continental, ainda no século XVIII, no qual detinha a realeza total poder de mando sobre a sociedade. Tiranos estes classificados como déspotas esclarecidos[18].

A nova tendência social, derivada do iluminismo, pouco surtiu efeito nos primeiros anos do século XVIII. A população detinha conhecimentos e fundamentos suficientes para instaurar uma nova ordem social e um novo modelo de Estado, entretanto, não despunham de meios aptos de pô-los em prática.

Foi somente com a revolução francesa que, no século XIX, houve o surgimento de diversas Constituições escritas em vários Estados nacionais europeus[19]. Juntamente com esse acontecimento, passa-se a convencionar a ideia de Estado Democrático de Direito, no qual poder emana das leis e não mais do próprio poder. Consequentemente, os poderes do Estado estariam adstritos aos regramentos constitucionais, na intenção de prevenir eventuais abusos do governante perante seus governados.

O fato é que, com o surgimento da Constituição, passou-se a adotar a ideia de que a norma constitucional deveria ocupar o cume do ordenamento jurídico, na qualidade de carta programática do Estado. Pretendia-se criar, dessa forma, meios de fiscalização da atuação do governante.

Enquanto carta programática, a Magna Carta passa a ser o medidor da atuação governamental, a medida que se confrontava os feitos e benefícios concedidos à população com as suas normas, de caráter generalístico. A doutrina classifica tais normas como princípios, visto sua abrangência jurídica. Nesse tocante, Gilmar Mendes e Paulo Gonet firmam o seguinte:

O valor normativo supremo da Constituição não surge, bem se vê, de pronto, como uma verdade autoevidente, mas é resultado de reflexões propiciadas pelo desenvolvimento da História e pelo empenho em aperfeiçoar os meios de controle do poder, em prol do aprimoramento dos suportes da convivência social e política. Hoje, é possível falar em um momento de constitucionalismo que se caracteriza pela supremacia do Parlamento. O instante atual é marcado pela superioridade da Constituição, a que se subordinam todos os poderes por ela constituídos, garantida por mecanismos jurisdicionais de controle de constitucionalidade. (2011. p. 61)

Logo, fica evidente tamanha abrangência dos princípios jurídicos. É por conta dessa abrangência que existe a dificuldade de implementá-los diretamente no caso concreto. Seja pela imensa carga valorativa nos quais se condensa, seja pela inexatidão imediata que o princípio demonstra, quando em face do caso concreto. Mais uma vez tem-se a necessidade de se interpretar a norma jurídica para adequá-la ao fato.

Todavia, em se tratando de normas específicas o processo é substancialmente simplificado, pois, ao perceber a incompatibilidade de determinada interpretação basta que se ignore tal acontecimento, passando para a o entendimento seguinte. Tal procedimento não se aplica aos princípios, visto que são deles que emana todo o entendimento resguardado pelo ordenamento jurídico. Tão o é que, em face de normas constitucionais, ao se chocarem dá-se o nome de antinomias. Ou seja, um princípio jamais poderá excluir o outro.

Logo, para dirimir conflitos dessa ordem, deve-se recorrer ao chamado princípio da máxima efetividade, consagrado no artigo 5º, parágrafo 1º da CF/88. Para tanto, explica-se da seguinte maneira:

[...] na aplicação dos princípios, o intérprete irá determinar, in concreto, quais são as condutas aptas a realizá-los adequadamente. Nos casos de colisão de princípios ou de direitos fundamentais, caberá a ele fazer as valorações adequadas, de modo a preservar o máximo de cada um dos valores em conflito, realizando escolhas acerca de qual interesse deverá circunstancialmente prevalecer. Um intérprete que verifica a legitimidade de condutas alternativas, que faz valorações e escolhas, não desempenha apenas uma função de conhecimento. Com maior ou menor intensidade, de acordo com o caso, ele exerce sua discricionariedade. Para que não sejam arbitrárias, suas decisões, mais do que nunca, deverão ser racional e argumentativamente fundamentadas. (BARROSO. 2001, s/p)

Eis, portanto, uma tarefa que irá requisitar a máxima atenção do intérprete-aplicador da norma jurídico-constitucional. Se por algum momento deixa-se de sopesar todas as circunstâncias inerentes ao fato em questão, restará prejudicada a atuação do operador do direito e a solução para o caso concreto estará igualmente comprometida.

Reitera-se, portanto, que a necessidade de interpretação da norma jurídica vai além de um mero instrumento de aplicação da mesma, passando ao patamar de pura obrigação do operador do direito.

É completamente inconcebível imaginar uma sociedade a qual disponha de todas as normas para dirimir conflitos de ordem jurídica. O Direito em si não tem a condição de verdade absoluta sobre seus adeptos, mas sim de instrumento útil para uma sociedade provida de obrigações e responsabilidades, partilhadas de maneira igualitária – ao menos em teoria – mesmo quando a impressão demonstrada seja a de uma reles ideologia falida.

CAPÍTULO 4: CASUÍSTICA E PONDERAÇÕES

“Foi no século XIX que a evacuação passou a ser uma atividade privada. Até então, fazer cocô podia ser um ato social, e até reis se reuniam com seus ministros em “tronos” eufemísticos. Há quem diga que se deva a transformação da evacuação num ato solitário, propício a leitura e à reflexão filosófica, o nascimento do pensamento moderno na obra de gente como Hegel, Marx, Nietzsche etc. [...] O que só significa que ainda somos todos filhos do século XIX – e da pior parte. Algo para pensar no banheiro”.

(Luis Fernando Veríssimo)

Abordar-se-á neste capítulo dois casos emblemáticos a título exemplificativo do tema escolhido para este trabalho.

Inserir-se-á questões relevantes a serem discutidas para que se dê ensejo à ponderação de valores acerca de cada caso analisado.

4.1. A IMUNIDADE PARLAMENTAR COMO LICENÇA

É um fato quando se afirma que não existe direito absoluto no ordenamento jurídico brasileiro – e no Direito de maneira geral. Não é diferente com a liberdade de expressão. Entretanto, não raras as situações em que parlamentares são eximidos de punição pelos seus excessos. 

Aos vinte e quatro dias do mês de fevereiro de dois mil e dez ocorreu um fato que chamou a atenção da impressa, além de se tornar ícone da insistência corriqueira dos abusos cometidos pelos deputados com suas imunidades. Transcreve-se o que fora veiculado:

Imunidade não coloca deputado acima da lei

Por Alessandro Cristo

A imunidade parlamentar não dá ao político o direito de acusar a quem quiser quando bem entender. É como se pode resumir a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal nesta quinta-feira (24/6), ao decidir aceitar uma queixa-crime movida pelo deputado federal Raul Jungmann (PPS-PE) contra um colega de Congresso Nacional. Segundo a denúncia, em um programa de rádio, o também deputado Silvio Costa (PTB-PE) chamou Jungmann de “corrupto”. Até hoje, a jurisprudência da corte era a de considerar o parlamentar imune, e arquivar a ação. No entanto, os ministros decidiram que o direito não é absoluto.

Por maioria de votos, o Plenário do Supremo recebeu a queixa-crime por injúria, crime previsto no artigo 140 do Código Penal. Para o relator do caso, ministro Marco Aurélio, o artigo 53 da Constituição diz que são invioláveis os parlamentares no exercício de seus mandatos, dispositivo que tem como objetivo permitir atuação independente. No entanto, segundo o ministro, o instituto não permite ações estranhas ao mandato, como ofensas pessoais, sem que haja consequências.

"A não se entender assim, estarão eles acima do bem e do mal, blindados, a mais não poder, como se o mandato fosse um escudo polivalente, um escudo intransponível", disse o ministro em seu voto. "Tudo indica que a pecha atribuída decorreu de desavença pessoal, não relacionada com o desempenho parlamentar, com ato próprio à Casa Legislativa em que integrados os envolvidos."

Uma vez aceita a queixa, o acompanhamento da instrução da ação penal permitirá, disse o ministro, que a corte descubra se existe elo entre o que se espera do mandato parlamentar e o que foi veiculado na queixa-crime. Acompanharam o relator os ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso [...] (CRISTO, 2010). (grifos do autor)

Observa-se que o Supremo Tribunal Federal - STF começa a rebater os abusos de maneira a provar que nenhum parlamentar goza de total liberdade por conta de sua investidura. Mas estariam os ministros corroborando para a ultravaloração do princípio da inviolabilidade da honra? Antes, cita-se a decisão proferida pelo Ministro Marco Aurélio em relação ao inquérito nº 2.813/DF, no qual é relator, acerca do ocorrido:

A ação penal privada foi proposta pelo Deputado Federal Raul Belens Jungmann Pinto contra o Deputado Federal Sílvio Serafim Costa, imputando-lhe a prática do crime previsto no artigo 138 do Código Penal. Segundo consta da inicial, o querelado teria ofendido a honra do querelante durante debate realizado na Rádio CBN, no dia 24 de abril de 2009, sobre irregularidades na utilização de passagens aéreas pagas pela Câmara dos Deputados.

O Procurador-Geral da República, às folhas 34 e 35, ressalta que os crimes, em tese, seriam os de injúria e difamação. O querelado não atribuiu ao querelante fato específico e determinado a tipificar infração penal, o que afastaria, de pronto, o crime de calúnia. Observou, contudo, ter o querelado proferido as palavras no exercício do mandato, estando acobertado pela imunidade parlamentar, nos termos do artigo 53 da Constituição Federal. Manifesta-se, por isso, no sentido da rejeição da queixa-crime. (BRASIL. STF, 2010.)

Percebe-se que, para esse caso em especial, não houve uma ultravaloração do princípio da inviolabilidade da honra, mesmo sabendo que a afronta desferida insurgiu de uma desavença pessoal. Observa-se, ainda, que o deputado Silvio Costa chama veementemente o seu colega de corrupto. Ele não fizera nenhum comentário acerca da sua forma de atuação parlamentar, simplesmente o taxou de corrupto. Ou seja, o animus[20], voltara propositalmente a ofender seu colega. Visivelmente maculou a sua honra e saiu ileso por desfrutar de imunidade sobre suas opiniões e votos. Como consequência, o STF decidiu por arquivar o inquérito, preliminarmente, reafirmando a imunidade do eminente parlamentar.

Tais fatos geram, na população, a incerteza perante a possibilidade de se obter justa aplicação dos princípios garantistas resguardados pela Constituição. Tais atos ferem a ideia de isonomia a tal ponto que se promove aos deputados à qualidade de intocáveis, pois, ninguém do povo possui as regalias agraciadas pela imunidade.

4.2. NÃO HÁ IMUNIDADE PARA UM RELES CIDADÃO

Conforme o que foi abordado anteriormente, a imunidade parlamentar é ponto questionável na Constituição, pois, abre o precedente para uma dicotomia entre o representante político e a sociedade a qual ele representa.

Se por um lado os deputados falam o que bem querem, por estarem devidamente imunizados, por outro, a sociedade cala por medo de expressar-se livremente e ser punida por isso, isto é, o reflexo imediato da cláusula de imunidade é o medo, a opressão, o controle.

Como exemplo disso, recentemente a mídia veiculou o transcorrido com o humorista Rafinha Bastos do programa CQC – Custe o que custar, da Rede Bandeirantes de Televisão. Teria ele sido punido – inclusive demitido – por um comentário deselegante o qual causou imensa repercussão, já que se tratava de uma figura pública, no caso, a cantora Wanessa Camargo. Transcreve-se a reportagem:

Suspensão ao humorista teria estremecido relações entre produtora e Band. Outras emissoras estariam interessadas.

São Paulo — A punição que a Band impôs ao humorista Rafinha Bastos, que ocupava um dos três postos na bancada do programa CQC, pode custar à Band muito mais que a insatisfação de Ronaldo, Marcos Buaiz e Wanessa, segundo a colunista Keila Jimenez, da Folha de S.Paulo. Rafinha foi suspenso do programa depois de dizer que “comeria ela e o bebê”, referindo-se à cantora Wanessa e ao filho que ela espera. A piada desagradou o publicitário Marcos Buaiz, marido dela, e o ex-jogador Ronaldo, seu sócio, que teriam pedido a cabeça de Rafinha à direção da Band. O humorista foi sacado por tempo indeterminado do programa.

Após duas semanas sem Rafinha na atração, a produtora argentina Quatro Cabezas, dona da franquia CQC, teria mostrado insatisfação à Band, segundo a Folha. Os argentinos teriam até concordado com a punição, mas não teriam gostado da postura da emissora, já que em todo o mundo os repórteres do programa têm liberdade para falar o que quiserem. A Band tem exclusividade com a Quatro Cabezas até o fim de 2015, mas Record e SBT já estariam de olho nas atrações dos argentinos. À Folha, a Band nega que a piada de Rafinha tenha abalado sua relação com a produtora. (SANTIAGO, 2011) (grifos nossos).

Deve-se ter em mente que, em momento algum, um princípio se sobrepõe ao outro, visto que ambos são de ordem constitucional e não se pode ferir a unicidade da Constituição. Sabendo disso, costumeiramente a sociedade adota a ideia de que honra é o bem jurídico de maior valia em detrimento aos demais – de igual valor. Mas, como se sabe, nenhum princípio deve ser elevado ao seu patamar supremu[21] de eficácia sob pena de gerar desigualdade entre os iguais. É por isso que nem sempre, ao se fazer uso da liberdade de expressão, necessariamente irá ocorrer uma afronta à honra de um indivíduo, visto que a análise do animus deve ser muito mais específica e ponderada.

Se assim não fosse, todo e qualquer cidadão estaria obrigado a se submeter ao processo por reparação de danos morais sempre que criticasse o posicionamento de outrem, ou mesmo se discordar da forma com que um governante dirige o país, estado ou município, ou, simplesmente, um humorista que foi infeliz ao improvisar uma piada inconveniente.

Ronald Dworkin (2002, p 419-420) já defendia a tese da chamada concepção liberal da igualdade muito antes da formulação da atual Magna Carta. Para ele, “o governo deve tratar aqueles a quem governa com respeito, isto é, como seres humanos capazes de formar concepções inteligentes sobre o modo como suas vidas devem ser vividas, e de agir de acordo com elas”.

Dessa forma, tem-se que ter em mente o papel desempenhado pelo humorista, enquanto profissional. No caso citado, o estilo ácido influente e instigante do pensamento crítico acerca da realidade adotado pelo comediante é incomum na sociedade brasileira, acostumada com o humor antipatizado[22], mais voltado ao público infantil do que de fato ao adulto. Por esse motivo, a necessidade de se observar o chamado animus jocandi[23], ou seja, a intenção de brincar, gracejar.  Logo, somente a intenção dolosa, o ímpeto de macular a honra de outrem é que deve ser considerado como critério punitivo e dosador da pena a ser culminada ao agente.

Ora, se por muitas vezes o humorista se lança nesse cenário ao seu alvedrio, é por que acredita estar exercendo um direito a ele garantido. Um direito que, de fato, deve ser observado com máximo bom senso, pois, inevitavelmente as piadas irão desagradar certas pessoas, mas nem por isso deve-se julgá-lo tão somente pelo lado pessoal. É de profunda estranheza vislumbrar o trâmite desse processo o qual se impôs ao comediante, pois, em outros casos semelhantes já ocorreram decisões contrárias a esse ponto, conforme se observa no seguinte julgado da terceira câmara de direito privado do Tribunal de Justiça de São Paulo:

Cuida-se, às claras, de singela brincadeira realizada pelos réus com uma pessoa pública, pela qual se ressaltou o seu vício de linguagem. Manifesto o "animus jocandi" dos réus, que, per si, não se compraz com a intenção deliberada de ofender exigida para o deferimento da reparação pretendida. A brincadeira efetuada pelos réus, no máximo, causou mero aborrecimento na figura do autor, sem a instalação de um quadro de angústia e desequilíbrio no seu bem estar. (BRASIL. TJSP 2010, p. 5) (grifos nossos)

Por outro lado, em uma sociedade pluralizada eticamente, percebe-se o quanto é complicado ter de agir segundo regras preexistentes quando se tem uma concepção diferenciada sobre determinado fato. O papel de um humorista é levar o humor ao público das mais diversas situações cotidianas. De certa forma, satirizar uma situação a qual seria lamentável. Logo, cada humorista possui sua técnica em especial para desempenhar tal papel. Para o humorista em questão, o seu jeito espalhafatoso e pouco usual gera, ao mesmo tempo, discórdia e aclamação, visto que é o que qualquer pessoa gostaria de ter em sua vida: liberdade para dizer o que quiser, quando bem entender.

4.3. A ÉTICA DA LIVRE FORMA DE EXPRESSÃO

Defende-se que a ideia de liberdade de expressão está pautada num discurso mais ético-moral do que jurídico. Juridicamente, o tema será sempre abordado como um direito social imprescindível a todo cidadão. No campo da Ética, isso passa a ter um viés sublime. Uma intimidade quase que levada ao patamar de necessidade.

Sabe-se que a Ética é ramo da Filosofia encarregada do estudo da Moral. Segundo Mario Sérgio Cortella (2008), em entrevista concedida ao Programa do Jô, na Rede Globo de Televisão, “moral é a prática de uma ética”. E vai mais além ao conceituar que:

Ética é o conjunto de valores e princípios que você e eu usamos para definir as três grandes questões da vida que são: quero, devo e posso. Isso é ética! Quais são os princípios que eu uso? Tem coisas que eu quero mas não devo, tem coisas que eu devo mas não posso e tem coisas que eu posso mas não quero. Quando encontro a paz de espírito? Quando aquilo que eu quero é o que devo e o que posso.

Nesse viés, explora Adolfo Sánches Vásquez (1999. p 129) ao citar a visão de Marx e Engels acerca da dialética da liberdade e da necessidade, no qual afirmam que “a liberdade é, por conseguinte, a consciência histórica da necessidade”.

Em outras palavras, a necessidade de expressar-se gera uma atuação prático-modificativa na sociedade ao ponto de se instalar uma nova consciência e, por consequência, uma nova moral social na qual todos aceitam como verdade absoluta.

Esse viés não é nada mais nada menos do que Kant já havia preceituado, entretanto, elevado ao patamar de consequência ao invés de mero atributo da vontade, conforme conceituou o filósofo.

Em qualquer situação o homem jamais estará satisfeito em atender a ordens autoritárias sem quaisquer questionamentos; visto que cada um possui sua moral individual fruto de sua atividade intelectiva e independente daquela praticada pela sociedade em que vive e, como consequência, sente a necessidade de externa-la livremente.

Nesse aludido, o comediante ainda argumentou posteriormente ao acontecido da seguinte maneira:

[...] Outro dia tinham um monte de mulheres no pé da minha porta protestando e tudo mais. Por um lado é muito legal, tipo, mulheres lutando pelos direitos das mulheres. Agora, é contra a piada que você vai lutar? Porque que você não luta contra o cara, por exemplo, um outro ator que bateu numa mulher e a mulher tava com a cara toda destruída na veja, por exemplo [...] Porque que você não luta contra um cara que ficou conhecido como que bateu numa senhorinha de 75 anos que era casado com a tal da Luana Piovani e que quebrou os braços de uma velha [...] Por quê? Porque vai pedindo desculpas, entra num processo de hipocrisia, de auto venda que eu não entro! Sou um comediante que as vezes toco em certas feridas, ta certo que as vezes tenho que tomar um pouco mais de cuidado. Mas será que não estão lutando contra o inimigo errado? [...] Mas será que é o cara que fala, que brinca, que está em cima de um palco, que desconstrói todas essas questões que é o real criminoso? Ou será aquele que realmente aplica a violência física? [...] Quando sou um comediante nem tudo que digo expressa minha opinião. (BASTOS, 2012). (sic)

A visão do comediante é aparentemente simplória, pois, transporta a ideia de que a opinião em si não é apta o bastante para se gerar danos suficientemente mensuráveis pelas regras de proteção à honra. Eis que se vislumbra, mais uma vez, a figura do animus jocandi, reiterando a ideia de que a intenção dolosa de denegrir a honra de outrem é de fato o elemento norteador da conduta tipificada como ilícita.

A crítica que mais pesa sobre o animus jocandi está em dizer que qualquer pessoa dotada de capacidade intelectiva, considerada normal, é capaz de discernir entre uma brincadeira e uma intenção real de macular a honra de outrem.

Logo, esse discernimento deve ser levado em consideração pelo intérprete-aplicador da norma jurídica ao dirimir o conflito que, em alguns casos, não passa de um mero aborrecimento, um fortuito dissabor pela forma com que se optou em fazer humor. A vida em sociedade tem suas vantagens e desvantagens.

No entanto, ao se perceber que algo está errado, é de suma importância que se busque o correto[24]; seja efetuando uma crítica ou mesmo se sujeitando a uma sanção por seus excessos; ao invés de mascarar sua opinião submetendo-se ao círculo vicioso da hipocrisia e da falsa moral.

O politicamente correto[25] ou correção política – diga-se discurso mascarado –, é uma tendência ideológica disseminada na qual consiste em utilizar uma linguagem mais neutra para determinados tipos de assuntos, geralmente polêmicos, culminando numa espécie de eufemismo ou cordialidade artificial acerca da temática.

Apesar de ser uma alternativa questionável, poder-se-ia considerar a nova forma de liberdade de expressão, no entanto, devendo ser observada por uma ótica desprovida de preconceitos. A expressão politicamente correto foi criada num contexto histórico deturpado, numa perspectiva moralizadora de elementos sociais polêmicos como, por exemplo, o racismo, homofobia, sexualidade (no sentido de preferência sexual), dentre outros.

Entretanto, a grande mácula da democracia brasileira está na ideia de que você pode, sim, expressar seu ponto de vista acerca de um determinado assunto, mas não poderá tocar neste ou naquele ponto em especial sob pena de ser punido por sua opinião.

Ou, em outras palavras, você é livre para pensar e deixar de pensar no que bem entender, mas não ouse expor seu ponto de vista perante à sociedade, caso sua opinião transborde os limites do politicamente correto. Por óbvio, quem está no poder, dita as regras e impõe os deveres. Winston Churchill tinha razão. Foi assim no período absolutista, no despotismo esclarecido, nas ditaduras e, não menos diferente, com a democracia.

 
 

CAPÍTULO 5: ABORDAGEM JURÍDICA COMPARADA

“O casamento foi a maneira que a humanidade encontrou de propagar a espécie sem causar faltório na vizinhança. As tradições matrimoniais se transformaram através dos tempos e variam de cultura para cultura. Em certas sociedades primitivas, o tempo gasto nas preliminares do casamento - corte, namoro, noivado, etc...- era abreviado. O macho escolhia uma fêmea, batia com um tacape na sua cabeça e a arrastava para sua caverna. Com o passar do tempo, este método foi abandonado,  por pressão dos buffets, das lojas de presente e das mulheres, que não admitiam um período pré-conjugal tão curto. O homem precisava aproximar-se dela, cheirar seus cabelos, grunhir no seu ouvido, mordiscar a sua orelha e só então, quando ela estivesse distraída, bater com o tacape na sua cabeça e arrastá-la para a caverna”.

(Luis Fernando Veríssimo)

Iniciar-se-á a discussão jurídica comparada neste que será o último capítulo deste trabalho.

Serão apresentados os argumentos hermenêuticos os quais identificarão se a eficácia legal das normas contidas no Código Civil Brasileiro de 2002 é suficientemente apta para dirimir as relações jurídicas controvertidas referentes à temática escolhida.

Inserir-se-á a figura do conceito de público e privado como critério identificador da crítica legítima, baseado nos meandros do princípio da razoabilidade, bem como, a aplicação dos resultados sobre o caso concreto à luz do princípio da isonomia.

5.1. A PONDERAÇÃO DE VALORES

Conforme o que fora abordado anteriormente, a ponderação de valores é o instrumento viável mais indicado ao intérprete-aplicador da norma jurídica na resolução de conflitos complexos, como é o caso da liberdade de expressão e a inviolabilidade da honra.

Para tanto, a ponderação se dá em dois momentos distintos, conforme seja o caminho adotado pelo operador do direito. São eles: a norma propriamente dita – seja a lei in abstrato ou o princípio – e a moral.

Na primeira situação, parte-se do pressuposto da existência de um preceito legal específico à resolução da lide. No segundo caso, é o resultado imediato da análise da abordagem jurídica subjetiva do caso concreto, tomando como gatilho ou a ineficácia do preceito legal ou a omissão do mesmo.

Entretanto, a abordagem pautada sobre a moral é objeto de estudo da Common Law[26], o que nesse caso não se aplica às normas brasileiras de modo preponderante, mas tão somente como fonte informadora subsidiária.

No mais, a afirmação de que a interpretação dos princípios jurídicos por si só esgota a atuação jurisdicional é totalmente válida, quando se observa a todos os critérios norteadores na busca da solução do conflito.

5.1.1. A sistemática de integração do direito

É certo que a aplicação do direito sobre o caso concreto é tanto mais simplificada quando ocorrer previsão legal específica para o fato. Mas, conforme já discutido, esta é uma situação extremamente massiva para a sociedade, justamente pelo que se considera inviável e até certo modo inconcebível.

Destarte, partindo do pressuposto de que já existem leis que abordam a temática, eis que se faz necessário a sua integração. Em outros termos, não se fala mais em interpretação, visto que há uma aparente incompatibilidade entre a norma e o fato. Sendo assim, o que se faz é a correlação de conceitos e ideias para que se chegue a um determinado consenso. Em suma, trata-se de colmatar a norma, preencher as lacunas deixadas por ela.

A ideia de colmatação da norma está bem clara no artigo 4º do Decreto-Lei número 4.657, de 4 de setembro de 1942, que diz o seguinte: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” Observa-se que o intérprete-aplicador da norma não poderá se eximir da obrigação de aplicá-la ao caso concreto sob o argumento de inexistência, omissão ou obscuridade da mesma.  Pois bem, esgotam-se aí todas as linhas interpretativas das quais dispõe para tal tarefa.

Desse modo, compreende a equidade o ato de implementar, a um determinado fato, a mesma resolução dada anteriormente a um fato antecedente e semelhante a este. A equidade repousa sua base jurídica, tomando como paradigma, o princípio da Instrumentalidade das Formas[27]. Portanto, segundo Miguel Reale (2002. p. 278), “se o sistema do Direito é um todo que obedece a certas finalidades fundamentais, é de se pressupor que, havendo identidade de razão jurídica, haja identidade de disposição nos casos análogos”.

Os costumes, conforme já citado, fazem parte da aplicação da Common Law, o que nesse caso não convém ao sistema romano adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Pelo menos não inicialmente, pois, os costumes também são fontes do Direito. Dessa forma, o costume elevado ao patamar de lei não é vislumbrável no sistema brasileiro, muito embora, a longo prazo, possa gerar um efeito modificativo do mesmo, visto que este reflete a moral social. Como exemplo disso, tem-se o já descriminalizado adultério.

Logo, os princípios gerais do direito constituem as normas fundantes de todo o ordenamento jurídico pátrio, possuindo toda a carga valorativa que se admite pelo Estado e pela sociedade. Portanto, “toda forma de conhecimento filosófico ou científico implica a existência de princípios, isto é, de certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõem dado campo do saber” (Id. Ibid. p. 285).  

5.1.2. Comparando o direito

A abordagem jurídica comparada consiste em justamente obter os parâmetros de sistematização do direito, através da análise dos conceitos já firmados pela norma existente. Conforme já foi discutido, isso é o que garante a permanência da norma no ordenamento jurídico por anos a fio até que outra norma venha revogá-la.

Sabendo dessa afirmação, é necessário retomar as linhas de pensamento apresentadas no início deste trabalho. Para isso, citam-se os dispositivos da CF/88:

Art. 5º Todos são iguais perante à lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

O papel da CF/88 é de justamente expor todos os elementos normativos os quais influenciarão na estruturação dos direitos defendidos pela sociedade. Este papel está devidamente cumprido, restando ao CC/02 apenas delinear os limites destas influências a fim de que se torne o instrumento hábil de aplicação ao caso concreto. Entretanto, essa tentativa não foi bem laborada pelo legislador, deixando lacunas incomensuráveis, citam-se as leis:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Assim, consolidou-se a ideia de ato ilícito e a necessidade de reparação do dano causado pelo cometimento deste ato, entretanto, não se firmou o delineamento conciso do que seria considerado um ato ilícito. A expressão “aquele que por omissão voluntária [...]” deixa bem claro a consideração do animus do agente para se caracterizar o ato ilícito, ao passo que a negligência e a imprudência são critérios típicos da culpa. Além do que é notável a grande amplitude de ilícito civil, se comparado com o ilícito penal.

O direito penal, por conseguinte, é bem mais específico quando destaca aquilo que nomeia como ilícito, ou seja, o fato típico e antijurídico. A constatação do ilícito penal, portanto, é indubitavelmente mais objetiva, visto que está intimamente atrelado ao princípio da legalidade, contido no artigo 2º do Código Penal. Logo, no Código Civil, a constatação do ato ilícito também poderá advir de uma situação imprópria, ou, em outras palavras, independentemente do animus do agente[28].

Decerto existe o consentimento de excesso, ou seja, todo ato ilícito necessariamente é consequência de um excesso praticado pelo autor, muito embora a recíproca não seja inteiramente verdadeira.

Resta, portanto, a necessidade de complementação destes conceitos para que a norma atinja sua eficácia plena, caso contrário, não há como aplicá-la ao caso concreto.

5.2.  A DICOTOMIA ENTRE PÚBLICO E PRIVADO

Para Limongi França (1988, p. 74) existem três formas de se justificar o exercício da equidade no direito positivo brasileiro, quais sejam: 1ª) nos textos em que expressamente se referir ao termo equidade; 2ª) nos textos em que, sem se referir essa palavra, direta ou indiretamente, apelar para o prudente arbítrio (ou livre convencimento circunstanciado) do magistrado; 3ª) nos textos gerais, referentes à interpretação e aplicação da lei. A ideia aqui defendida consiste em trazer um elemento externo, no caso a equidade, que por ser próprio do Common Law gera aparentemente uma incompatibilidade no sistema positivo brasileiro. Destarte, frisa-se que jamais se excluiu a equidade do sistema positivo, tão somente limitou-se sua aplicação para os casos em que houvesse conflitos desta magnitude, desde que a lei não fosse totalmente apta na resolução de tais conflitos.

A equidade de certa maneira se apresenta como uma solução um tanto mais drástica para a resolução do conflito aqui proposto. Entretanto, deve-se destacar que ao utilizar-se da equidade, o intérprete-aplicador da norma jurídica irá se basear no pré-julgamento de que existe uma decisão anterior na qual resguarda identidade de pretensões jurídicas com o atual dissenso em análise.

Portanto, a equidade não se torna um instrumento totalmente viável de resolução em tais situações sue generis[29]. Entretanto, valendo-se de uma prática um tanto mais lógico-interpretativa do que argumentativa, surge a tentativa de resolução destes casos, a partir do fundamento dicotômico entre o que seria o público e o privado.

Nesse sentido, Miguel Reale (2002, p. 319) explica que “há duas maneiras complementares de fazer-se a distinção entre Direito Público e Privado, uma atendendo ao conteúdo; a outra com base no elemento formal, mas sem cortes rígidos, que leva em conta as notas distintivas prevalecentes”.

Ao aprofundar-se ainda mais nas palavras do autor, percebe-se o seguinte:

O Estado cobre, atualmente, a sociedade inteira, visando a proteger a universalidade dos indivíduos, crescendo, dia a dia, a interferência dos poderes públicos, mesmo fora da órbita dos Estados socialistas, ou, para melhor dizer, comunistas, onde se apagam cada vez mais as distinções entre o que cabe ao Estado e o que é garantido permanentemente aos cidadãos como tais [...] A nosso ver, a distinção ainda se impõe, embora com uma alteração fundamental na teoria romana, que levava em conta apenas o elemento do interesse da coletividade ou dos particulares. É necessário, com efeito, determinar melhor os elementos distintivos e salientar a correlação dinâmica ou dialética que existe entre os dois sistemas de Direito, cuja síntese expressa a unidade da experiência jurídica. [...] O conteúdo de toda relação jurídica é sempre um interesse [...] (2002. p. 319-320).  

Dessa forma, o jogo de interesses correlacionados é o que se utiliza para caracterizar a distinção entre público e privado. Em outras palavras, tudo aquilo que direta ou indiretamente ferir aos preceitos de ordem jurídica, estejam eles explícitos ou implícitos nos diplomas legais, caracterizar-se-á como uma relação de direito público, ao passo que ao direito privado restará o âmbito da moral. Sob essa ótica, fica bem clara a necessidade de distinção quanto ao procedimento adotado para cada tipo de ato ilícito.

Sim, pois, a depender do tipo de lesão sofrida pelo bem juridicamente tutelado, haverá um procedimento específico de tutela. O exemplo disso está nos crimes contra a vida no qual o diploma processual penal – de cunho estritamente público – enumera o procedimento de ação penal pública, ao passo que nos crimes contra a dignidade sexual, enumera o procedimento de ação pública sendo que condicionada à representação[30] da vítima.

Observa-se, portanto, o estrito delineamento entre o público e o privado quando a lei processual admite a intervenção da vontade da vítima para os casos de crimes contra a dignidade sexual, muito embora a ação penal pública condicionada a representação resguarde em sua essência o parâmetro de instrumento público, a autonomia da vontade é um elemento intrínseco das relações privadas.  Cumpre, portanto, lembrar o papel da moral na formulação dos conceitos entre público e privado.

A moral, enquanto fonte do direito, assume a tarefa estritamente norteadora a priori, pois, o direito, enquanto instrumento de tutela estatal, resguardará suas origens na moral social na qual será inserido. Assim, sai de cena a moral passando a tarefa de instrumento de controle social para o direito, que por ser intimamente ligado ao Estado, gozará da força cogente; visto que a moral é desprovida dessa característica.

Por conseguinte, o direito passa a ter, em sua essência, o critério público enquanto a moral resguardará o critério privado (moral individual). Sendo assim, de posse desses argumentos, transfere-se o entendimento para âmbito individual visando atender os fundamentos da crítica legítima, bem como, os meandros de punição de excessos.

5.3. O PÚBLICO E O PRIVADO NO ÂMBITO INDIVIDUAL

Considerando que o direito é atualmente o substituto histórico da moral social para o controle das relações sociais, bem como sua origem é essencialmente de natureza pública, cabe à moral tão somente o papel de resguardar as relações privadas dos indivíduos.

Portanto, o indivíduo, como fim último da moral, prevalece em si mesmo a dicotomia entre público e privado. Entretanto, essa diferença está mais atrelada ao teor das relações a que se submete do que necessariamente à sua natureza jurídica.

 Basicamente, toda e qualquer pessoa possui as duas dimensões de relações. Entretanto, alguns poderão vir a usufruir com maior intensidade de uma dessas dimensões do que outros. Isso advém do tipo de atividade laboral exercida por esse indivíduo na sociedade. É o típico caso, por exemplo, do político ou do artista de modo geral. São estes os dois exemplos mais evidentes de uso intensivo da dimensão pública da personalidade.

Consequentemente, um indivíduo comum que não possui uma atividade laboral que exige a exposição midiática constante, de certo terá a sua dimensão pública imensuravelmente menor se comparado ao artista. Ao passo que o artista possui sua esfera privada infinitamente menor do que o indivíduo comum. Isso é perfeitamente lógico.

5.4. OS FUNDAMENTOS DA CRÍTICA LEGÍTIMA

De maneira simplória, a crítica sempre existiu e sempre existirá enquanto elemento fundamental do exercício da liberdade de expressão.

A questão não é fazer da crítica um elemento inquestionável, mas, sim, resguardá-la, à medida do possível, quando se oferta uma base lógica a sua existência.

Em outras palavras, não apenas criticar por criticar, mas saber o porquê de se criticar e o fim último que se deseja alcançar com tal instrumento.

Portanto, toda e qualquer crítica, quando aplicada na dimensão pública do indivíduo, merece ser acatada como legítima ao passo que se está emitindo um juízo valorativo daquilo que poderá ser de domínio público.  É isto que se deve considerar como razoável.

No que tange à crítica da dimensão pública, basta que se lembre, por exemplo, do funcionário público de modo geral. Pois, enquanto membro efetivo do Estado, este possui, dentre outras tarefas, a da personificação do próprio Estado.

Para tanto, age conforme preceitua as leis as quais lhe são submetidas. Logo, se há um desvio deste preceito, há um descumprimento de tais leis, o que certamente lhe acarretará punições. A crítica é, portanto, a denúncia deste descumprimento legal.

O político, enquanto representante do povo, apresenta a sua dimensão pública ainda mais avantajada. Como se poderia admitir um político que não deve oferecer satisfações aos seus representados? Poderia se considerar o político um sujeito comum, o qual poderia gozar de seu livre arbítrio em escolher o momento mais oportuno a si mesmo para só então ofertar satisfações a quem lhe colocou no poder, sob o argumento de suposta confiança?

A crítica, nesses casos, passará a ter o papel de instrumento de controle dos atos administrativos governamentais e, por óbvio, legítima por essência.

O artista, de modo geral, também é passível de crítica, pois uma pessoa que escolhe a exposição pública como meio de sustento, não estará de todo isento da opinião de quem o sustenta. No mais, a admiração ao trabalho de um artista não deixa de ser uma crítica.

E, assim, tantos outros exemplos que fundamentam o uso da crítica sobre dimensão pública do indivíduo. O que se depreende destes exemplos é o fato de a dimensão pública ser a circunstância autorizadora da crítica legítima, o que não haveria de ser o contrário, pois, o que é de interesse público jamais poderá ser tachado como desnecessário.

Se por um lado, a dimensão pública da personalidade admite a crítica legítima, por outro, se tem a limitação desta sobre a dimensão privada. Nesses casos, a valoração será tanto mais restrita quanto mais negativo for o efeito sobre a honra do indivíduo.

Observa-se que ambas as dimensões da personalidade comportam o atributo da crítica. Entretanto, quando se trata da honra, esta só estará sendo lesada, a partir do momento em que pesar negativamente o reflexo dessa valoração sobre a dimensão privada.

Como de fato nada é absoluto no Direito, ambas as dimensões comportam a tutela jurisdicional no que tange aos excessos puníveis, entretanto, com ressalvas. A dimensão pública admite a tutela cível para os excessos puníveis, mesmo por que tais excessos se comprazem da descrição de ilícito civil, ao passo que a dimensão privada acarreta a tutela penal, por tais excessos justamente se enquadrarem na descrição de fato típico e antijurídico.

Nos moldes das afirmações até aqui apresentadas, a norma cível passaria a ter maior aplicabilidade ao caso concreto pelo simples fato de agora o intérprete-aplicador dispor do complemento lógico-sistemático da compreensão de ilícito civil.

Logo, ilícito civil não é nada mais nada menos do que o consequente lógico da ponderação racionalizada de valores acerca da crítica legítima aplicada sobre a dimensão pública da personalidade do indivíduo, possuindo o propósito de atribuir o excesso punível do respectivo ato.

Por conseguinte, se caracteriza como excesso punível toda e qualquer opinião que extrapolar os limites entre as dimensões do público e privado. Quando o teor da crítica versar sobre critérios abarcados pela dimensão privada, considerar-se-á como excesso punível.

A dimensão privada da personalidade engloba todos os elementos pertinentes à intimidade, pessoalidade (psicológico) e identidade do indivíduo. De tal modo que, ninguém poderá julgar uma pessoa pela sua preferência sexual, por exemplo.

Entretanto, não significa dizer que ao contrair união estável com outra pessoa do mesmo sexo seja algo totalmente compreensível pela sociedade na qual aquele indivíduo esteja inserido.

 Logo, se esta pessoa opta por contrair esta união estável, significa dizer que ela reconhece a incidência da crítica legítima sobre o seu ato praticado, visto que tal ato se encontra açambarcado pela dimensão pública de sua personalidade.

Na ponderação de valores, o que corresponde ao ato praticado pelo intérprete-aplicador, este julgará convenientemente o ato praticado segundo o princípio da razoabilidade, pois é este que garante a necessidade de separação das dimensões da personalidade entre público e privado.

Ainda sobre a ponderação de valores, é necessário que se faça a constatação do animus jocandi, enquanto elemento excludente da ilicitude do ato cometido, com o intuito de esgotar todo o âmbito do ilícito civil, para só então enquadrar o fato vislumbrado como típico e antijurídico, características estas do conceito de ilícito penal.

No mais, ao efetuar tais linhas de ponderação, o intérprete-aplicador estará possibilitando a maior eficácia da lei cível no que tange aos conflitos atinentes à liberdade de expressão e inviolabilidade da honra.

Destarte, toda crítica é passível de análise jurídica perante sua adequação legal. Entretanto, nem toda crítica necessariamente irá ferir a honra do indivíduo ao qual lhe é submetida, visto seu caráter legítimo, quando abranger a dimensão pública da personalidade.

Não é tarefa das mais simples tratar do dissenso entre honra e liberdade de expressão

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma sociedade incoerente com as suas leis, eis uma representação compreensível da sociedade brasileira.

Conforme desde tudo o que fora anteriormente abordado, chegamos à ideia de que o Direito Constitucional de Liberdade de Expressão está muito aquém de ser considerado efetivo, no ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se de uma realidade fajuta.

Na tentativa de amenizar tais discrepâncias, descrevemos que o conceito de público e privado, no âmbito da personalidade individual, atende muito bem à demanda de casos complexos que envolvem a máxima efetividade do princípio da razoabilidade. E, acreditamos que, de fato, possa ser este o caminho a ser percorrido para melhor atender aos ditames do princípio da liberdade de expressão, sem que para isso ocorra mácula ao princípio da inviolabilidade da honra.

Entretanto, a interpretação atualmente imposta é parca ante a complexidade dos casos a que lhe é submetida. Isso é fruto de um pseudomoralismo, por parte dos legisladores, que preferem tapar a problemática com uma enxurrada de leis inúteis, ao invés de ofertar a efetiva interpretação dos conceitos já existentes.

Liberdade de expressão versus inviolabilidade da honra sempre foi considerada pela sociedade como uma problemática polemizada. Isso é decorrente da inexpressiva aplicação da legislação pátria, pois, não é de hoje que ouvimos os elogios sobre a fantástica riqueza jurídica, um incrível compilado de ideias de valor imensurável, que são as leis brasileiras. Mas, de que adianta tamanha grandiosidade se o legislador continua insistindo em transparecer à população e à comunidade internacional, exemplos de pequenez, atrelados à conveniência e demonstrações arbitrárias de poder?

Sim, porque a grande maioria da população quando questionada irá afirmar que a justiça brasileira funciona somente para aqueles que dispõem de influências – digo, dinheiro. Ao passo que enquanto se vê um reles cidadão sendo rechaçado, ridicularizado e desmoralizado – por um ato que visivelmente se considera como uma brincadeira – parlamentares escolhidos democraticamente para serem, nada mais, nada menos, do que servidores públicos, remunerados com salários milionários a dispêndio da população; gozam de uma regalia altamente questionável.

Que espécie de país é esse que oferece direitos e ao mesmo tempo insere ressalvas nos mesmos? Se existe liberdade de expressão, de fato, por que então imunizar um parlamentar? Ou será que por medo do vernáculo ante uma discussão eufórica?

Seria para elevar ainda mais o status de intocáveis? Por que não se retira essa tal imunidade e passa a aplicar devidamente o direito à liberdade de expressão? Por que é dessa maneira que o princípio da isonomia estaria sendo cumprido e da forma correta.

A resposta que ousamos expor é que simplesmente se trataria de mais um controle da sociedade. A população que não tem direito em opinar jamais poderá contrapor o seu governante, que continuará exercendo suas falcatruas, saindo ileso e sorrindo da ingenuidade de seus governados. Quanto mais se inserem caprichos dessa espécie no corpo de leis do país, mais a política se torna uma prática desprezível e o direito acaba se tornando um mero compilado de leis insignificantes.

Não. A legislação brasileira não é insignificante. As pessoas por detrás desta legislação é que as tornam insignificantes, quando cometem atos de vandalismo como este.

Como se não bastasse, a hipocrisia tomou forma nos últimos anos de democracia. Não se sabe ao certo o porquê, mas, ao que parece, a hipocrisia se consolidou como a nova forma de patriotismo brasileiro.  Seriam reflexos da ditadura militar? Sim, pois, a democracia chegou para o Brasil como uma criança que recebe uma faca.

 Poderíamos até fazer bom uso dessa faca, mas devido a nossa imaturidade, cultura futilizada, valores morais deturpados e condescendência à humilhação e repressão, jamais conseguiríamos outro resultado desta faca que não um corte profundo. E se continuar dessa maneira, dificilmente ocorrerá algum progresso pelos próximos vinte e quatro anos.

Seria justo dizer que a deturpação da moral social brasileira é consequência da colonização portuguesa? De todo modo, não. Mas justifica boa parte do problema.

Primeiro, porque o Brasil desde o primeiro momento sempre foi considerado como uma colônia de exploração por parte de Portugal. De lá vinham simplesmente a excrecência daquela sociedade, tais como: criminosos, prostitutas, escravos, exilados políticos, etc. Segundo, se não fosse pela invasão das tropas napoleônicas no território português até hoje estaríamos experimentando o status de colônia de Portugal, a exemplo da Guiana Francesa, que permaneceu como colônia da França até 1946, mas que de fato nunca o deixara de ser. Em terceiro lugar, e, não menos importante, o total descabimento em privilegiar aos senhores de engenho, instituindo o ensino superior antes mesmo de se priorizar a educação de base; pois, dessa forma seus filhos não mais precisariam migrar para a metrópole em busca de uma boa qualidade de ensino.

É deveras lastimável ver um país ser mais conhecido pelo seu jeitinho brasileiro do que pelo seu senso político de manutenção da imparcialidade, perante as relações internacionais. É simplesmente deprimente ter que policiar uma brincadeira, ao invés de punir a corrupção generalizada que assola o ambiente político nacional.

É, no mínimo, inusitado sermos reconhecidos como o país do futebol e não reconhecerem o valor das práticas econômicas que tanto sustentaram a nação em períodos de crise financeira mundial. É absurdamente preocupante ver que a população prefere calar-se ao invés de ir as ruas reclamar medidas cabíveis, reajuste de salários, redução do preço das passagens de ônibus, implemento de melhores condições laborais, etc. por conta do medo.

Exatamente. Medo é a palavra que melhor descreve o sentimento da população brasileira que vislumbra tais situações permanecendo apática, assistindo de camarote – isso quando o possui – sem ter ao menos voz para gritar, sequer um decente representante imunizado que o faça.

Algumas pessoas podem até defender que a evolução moral, política e social começa dessa forma: a passos tímidos de alguém que teme o desconhecido. Entretanto, o Brasil se encontra estagnado nessa característica já faz algum tempo e, o que é pior, parece até satisfeito com o que se vê ou que não se vê.

Se tecer críticas ajudasse de maneira eficiente na modificação do problema que o país enfrenta, seria algo extremamente prazeroso e frequente. Entretanto, é preciso amadurecer tais críticas a ponto de se firmar um novo entendimento e construir um novo cenário, internalizando tais conceitos na moral individual de cada cidadão.

No mais, a renovação do corpo legislativo pátrio é apenas uma pequena amostra da modificação necessária pela qual carece o país. A parte formal do serviço, por assim dizer. A moral brasileira encontra-se em níveis desprezíveis. Um país como esse, que cresceu as avessas, não poderia apresentar outro resultado que não o cultivo de uma moral extremamente conservadora, pouco flexível e, até certo ponto, estúpida, que até então enfrenta dificuldades de se inserir novas tendências e conceitos de sociedade.

O tão aclamado jeitinho brasileiro, por exemplo. Na verdade, isto tem que ser encarado como motivo de extrema vergonha para a sociedade. Não se pode mais simplesmente aplaudir atos de pseudomoralismo achando que assim estará fazendo um bem a si mesmo e à sociedade. Enganadas estão aquelas pessoas que acreditam piamente que podem esconder a poeira debaixo do tapete, como se esta fosse desaparecer miraculosamente, num passe de mágica. Não. O jeitinho brasileiro não é uma marolinha como foi ­– e continua sendo – a crise econômica mundial.

Não podemos aclamar, inclusive, o discurso politicamente correto. Essa aberração infame e distorcida de moralização forçada da sociedade só realça, ainda mais, as ações atentatórias da honra. Ao mascarar a verdade, abre-se o precedente às suposições levianas de que uma crítica salutar deve ser entendida como ofensa à honra ou coisa parecida.

Tal incidente seria cômico, se não fosse tão preocupante, para não dizer trágico. Senão, vejamos o exemplo da piada polêmica adaptada ao politicamente correto: “Eu a deglutiria de todo modo, mesmo com seu filho nascituro!” É... Realmente, muito trágico.

Ademais, a nação brasileira é relativamente nova no ramo da democracia, se comparado com os povos europeus ou aos norte-americanos. Isso não significa dizer que, por conta dessa imaturidade, não estejamos aptos de ao menos aprender como se faz uma verdadeira democracia.

Diga-se de passagem, a verdadeira democracia começa na escola. A educação é a chave para abrir todas as portas ao longo do transcurso da vida em sociedade. É com uma educação de qualidade que, inclusive, passamos a discernir entre o correto e o incorreto, o permitido e o não permitido, a ofensa e a brincadeira. Uma sociedade devidamente educada é capaz de gerar bons resultados em si mesma, servindo até de paradigma para as demais.

Uma população esclarecida pode participar mais ativamente no processo legislativo, bem como, no processo seletivo de representantes políticos, passando a escolher candidatos a partir das suas propostas inovadoras e, não somente pela conveniência ou simpatia, ou ainda pela compra descarada dos seus votos, sem falar no apadrinhamento e no nepotismo disfarçado.

É possível, sim, mudar muitas coisas quando se convém. Ao passo que é igualmente fácil desconstruir uma ideia, quando ela se torna inconveniente.

Algumas pessoas até preferem acreditar que, em algum momento, a situação calamitante possa ser modificada miraculosamente, transformando-se na perfeição tão almejada. Entretanto, quando se fala em sociedade, é necessário que se insista na ideia até que ela possa ser enraizada. É preciso cultivar a semente para que ela possa crescer. Além do mais, é preciso mantê-la viva se quiser algum dia comer dos seus frutos.

De todo modo, nossas hipóteses foram confirmadas. A liberdade de expressão no Brasil se encontra, de fato, mal interpretada. Querer dizer que existe liberdade em falar é, simplesmente, rir descaradamente da população. Existe, sim, uma expectativa de direito nesse tocante, esperando apenas que se dê maior e melhor ênfase à interpretação da letra da lei em face do praticado e entendido como correto pela sociedade.

Para tanto, a aplicação do que consideramos como crítica legítima preenche esse requisito a curto prazo, podendo, inclusive, ser aprimorado à medida que se for internalizando esse novo conceito na moral social brasileira. Com isso, essa sensação de pseudo-garantia constitucional seria amenizada.

Os objetivos traçados na abertura desse trabalho também foram alcançados. Demonstramos que o Código Civil, da maneira em que se encontra, é insuficiente – e não ineficaz, como se supunha – devido à defasagem da linha interpretativa atualmente adotada, bastando apenas o complemento dos seus conceitos, adequando-os à luz do princípio da razoabilidade, visto que, esse princípio autoriza o parâmetro do público versus privado no âmbito individual, resolvendo o conflito entre liberdade de expressão e inviolabilidade da honra.

No mais, não queremos defender o absolutismo do direito à liberdade de expressão. Não se trata, também, de enaltecê-lo como pedra angular do Estado Democrático de Direito, mesmo porque enfatizamos a problemática do excesso punível e suas respectivas consequências.

Liberdade de expressão, diferente do que se pensa, poderia ser um atributo indiscutível do ser humano. Uma característica que, sem quaisquer ressalvas, eleva-se ao patamar da necessidade.

            


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Sobre o autor
Francisco das Chagas Santos Rêgo Neto

Advogado atuante nos ramos de Direito Tributário e Processual Tributário.<br>Bacharel em Direito pela Faculdade Piauiense/Maurício de Nassau - FAP TERESINA.<br>Membro da Comissão de Estudos Tributário da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Piauí.<br>Juiz Conciliador da 7ª Vara Federal da Seção Judiciária do Piauí em 2011 (Portaria 02/2011).<br>

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