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A hermenêutica constitucional e o equilíbrio entre os poderes

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As críticas tecidas ao fenômeno do ativismo judicial com base no princípio da separação dos poderes costumam, em regra, ressentir-se de um superficialismo cego à aplicação, na seara política, das novas tendências jurídico-constitucionais, indispensáveis à efetivação dos direitos humanos fundamentais.

INTRODUÇÃO

A ciência da hermenêutica passou por profundas modificações ao longo dos séculos. Tal se deve ao fato de que qualquer ciência da interpretação, isto é, da prática de alcançar o sentido dos textos, tem de levar em conta as circunstâncias históricas e sociais nas quais eles foram produzidos.

No caso da hermenêutica jurídica, esse princípio encontra ainda mais acolhida, tendo em vista a imensa relevância – nem sempre levada em conta, porém – das circunstâncias políticas, sociais e econômicas para a aplicação e interpretação das normas jurídicas, todas elas criadas, sem exceção, em face de situações concretas que reclamam soluções jurídicas do Estado.

A partir dessa compreensão é que surge, especialmente nas últimas décadas, a proposta teórica da nova hermenêutica constitucional, que procura demonstrar a normatividade dos princípios e que o seu sentido só pode ser fixado diante de casos concretos, quando os conflitos que inevitavelmente surgem entre eles são solucionados pela valoração axiológica dos direitos e interesses em jogo.

O problema dessa perspectiva, porém, é que ela acarreta indiscutível fortalecimento do Poder Judiciário, dele exigindo uma nova atuação e uma nova mentalidade diante dos problemas sociais. No entanto, essa nova maneira de se portar, decorrência inevitável da nova hermenêutica, tem suscitado diversas críticas e polêmicas, as quais, atreladas a um paradigma de Estado e Direito já ultrapassado no século XX, acabam ficando desatentas às peculiaridades da nova realidade jurídico-política.

Diante disso, pretende o presente trabalho demonstrar que a hermenêutica constitucional e a renovação do Poder Judiciário que dela resulta não ameaçam o princípio tradicional da separação e equilíbrio entre os Poderes, mas antes o observa e realiza, ao contribuir para a efetivação da finalidade para qual este princípio foi criado, qual a seja a de permitir que o Estado satisfaça, com maior efetividade, a sua função social e humana.


PRINCÍPIOS DA INTERPRETAÇÃO E DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

Antes de abordar, especificamente, a hermenêutica constitucional, é necessário expor, de maneira sumária, o conceito de hermenêutica, sua evolução histórica e sua aplicação na seara jurídico-normativa. Nesse sentido, cumpre inicialmente observar que o conceito de hermenêutica se encontra estreitamente relacionado ao conceito de interpretação, embora com este não se confunda. Que é, porém, 'interpretação'?

Segundo explica o professor Glauco Barreira1, a palavra, em sua origem latina, significava “entre entranhas”, referindo-se, pois, à prática religiosa, bastante cultuada nas civilizações antigas, de introduzir as mãos entre as entranhas de um animal morto para adivinhar o futuro ou solucionar dadas questões. A partir desta acepção mística – em que a palavra designava, pois, um ato cognitivo que buscava trazer à luz verdades ocultas – a interpretação passou a designar toda e qualquer forma de extrair significados.

Que vem a ser, porém, 'hermenêutica'? Trata-se não do ato cognitivo de descobrir significados, mas sim da ciência da interpretação, isto é, o estudo - teorético, científico - do conjunto das técnicas intelectuais utilizadas para interpretar discursos. Esse ramo de estudos é quase tão antigo quanto seu objeto: começa nos primeiros séculos da Era Cristã, quando havia intenso debate sobre os métodos a serem utilizados para compreender corretamente os livros bíblicos.

Ora, sendo a Bíblia tão rica em regras que disciplinam a conduta humana e que determinam o que as pessoas devem ou não devem fazer, era forçoso que a interpretação dos enunciados normativos – problema, aliás, que vem ocupando não somente filósofos e lógicos, mas também teóricos do Direito, como Hans Kelsen, Carlos Cossio e Robert Alexy – fosse minuciosamente examinada pelos estudiosos de hermenêutica. Esses estudos, séculos depois, acabaram servindo à interpretação de outro tipo de norma: as regras legais, a qual, a partir de Savigny, passou a ser estudada por um ciência própria - a hermenêutica jurídica.

Em sua fase inicial, quando, então, vigorava o Estado Liberal modelado pelos ideais da Revolução Francesa, a ciência da hermenêutica jurídica cingia-se, em sua maior parte, a procurar fixar em padrões os mais rígidos possíveis o sentido e o alcance das regras jurídicas – especialmente as do Direito Privado, o qual preponderava em face do Direito Público, haja vista o individualismo que marcava essa época e tornava os interesses particulares mais importantes que o interesse público. Além do mais, a preocupação em que o poder estatal – representado, em parte, pelos próprios magistrados - não inflasse a ponto de violar os direitos individuais acabou levando os juristas a defenderem a aplicação literal das leis, deixando a menor margem possível de interpretação aos membros do Poder Judiciário.

Nada obstante, no século XX, o Estado liberal clássico foi substituído por uma nova formulação política e jurídica: o Estado social, no qual as constituições passaram a ter importância maior que os próprios códigos. Esse novo modelo se caracterizou pela derrubada da hegemonia dos direitos individuais na ordem jurídica e pela prevalência dos direitos sociais. Além disso, conceitos tradicionais como 'liberdade' e 'igualdade' passaram por novas reformulações: na fase liberal, a liberdade era garantida por meio da atuação negativa do Estado, isto é, por meio de mecanismos legais que impediam que o Poder Público adentrasse a esfera dos particulares e lhes violasse os direitos mais fundamentais.

No que toca à igualdade, o novo paradigma político-jurídico passou a pugnar por uma compreensão menos formal e mais substancial: em vez de tratar igualmente a todos, indiscriminadamente, passou-se à preocupação em tratar desigualmente os desiguais, de forma a estabelecer, efetivamente, uma conjuntura social justa e compensar as desigualdades sócio-econômicas.

Mas por que a adoção de um novo modelo de Estado justificava, afinal, a renovação dos métodos hermenêuticos? Ora, importa considerar que, nessa nova etapa, as codificações de direito penal e civil, que haviam vigorado no século XIX, passaram a ser secundárias às Constituições, e essa mudança radical reclamava uma nova hermenêutica, um novo ramo científico destinado à pesquisa das técnicas interpretativas apropriadas às normas constitucionais.

Entre os últimos e as primeiras, podem-se notar inúmeras diferenças essenciais. Em primeiro lugar, as regras jurídicas caracterizam-se por sua menor abstração, uma vez que preveem fatos específicos a que vinculam consequências jurídicas determinadas. Os princípios, por outro lado, não preveem situações: cingem-se a proclamar determinados valores e exigir-lhes observância por parte da sociedade e do próprio Estado.

Pode-se dizer, considerando a estrutura tridimensional do Direito – conforme a elaborou Miguel Reale – que tanto princípios quanto regras são normas, mas as últimas consistem na definição de fatos, ao passo que aqueles se ocupam de delimitar valores, o que demonstram que ambos são igualmente necessários à completude do fenômeno jurídico.

Em segundo lugar, importa considerar que o conflito entre regras jurídicas costuma solucionar-se pela exclusão de uma delas e aplicação da outra. Isto significa que caso a situação que suscite o conflito seja, novamente, trazida a juízo, a regra jurídica jurisdicionalmente aplicável deverá ser a mesma. Os princípios, ao contrário, não se excluem mutuamente quando conflituam: eis porque não se fala em invalidação de princípios em caso de conflito, mas no afastamento de um deles em prol do outro. Ademais, a mesma questão fática, quando apresentada em circunstâncias diferentes, pode ensejar a aplicação de princípios diferentes.

No âmbito da hermenêutica, essa distinção entre os princípios e regras significa que os métodos tradicionais da hermenêutica - que buscam, em última análise, a mera subsunção do fato à norma – sejam complementados pelos novos métodos interpretativos da hermenêutica constitucional, os quais buscam vislumbrar nos fatos não apenas a correspondência às definições legais, mas também aos valores consagrados, implícita ou explicitamente, pela ordem jurídica.

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Inicialmente, alguns estudiosos como o jurista Ernst Forsthoff defenderam que a hermenêutica jurídica clássica poderia ser, de igual forma, utilizada para a interpretação das normas constitucionais, uma vez que tanto nestas como nas demais normas jurídicas o objetivo principal é desvendar a vontade do seu elaborador, isto é, desvendar o sentido que este lhes intentou conferir.

O pressuposto desse posicionamento é, precisamente, a concepção de que as normas constitucionais não são distintas, no que toca à sua estrutura, das normas que compõem os códigos. Dessa forma, o mesmo espírito legalista que orienta a interpretação da lei deveria orientar a da Constituição, a fim de que esta cumpra sua missão histórica e social: limitar o poder do Estado e impedir que ele transborde as fronteiras normativas nela estabelecidas. Ademais, se fosse admitida às normas que organizam um Estado – isto é, às normas constitucionais – margem interpretativa vasta demais, a própria Constituição se tornaria um instrumento de abusos de poder por parte do Estado, uma vez que este poderia como interpretá-la a seu livre alvedrio.

Essa opinião, no entanto, não perdurou por muito tempo. Cada vez mais, as diferenças intrínsecas entre a Constituição e as leis infraconstitucionais foram ficando cada vez mais evidentes e demonstrando que as técnicas interpretativas de Savigny (método histórico, sociológico, teleológico, etc) eram insuficientes para dar conta das abstratíssimas normas constitucionais.

Para solucionar esse problema, surgiu o método tópico-problemático de interpretação, defendido por Theodor Viehweg e baseado na tópica aristotélica. Este método consiste, basicamente, em renunciar a um sistema pré-definido de interpretação e tem como ponto de partida os problemas interpretativos que surjam concretamente. Em outras palavras: em vez de eleger este ou aquele sistema – v.g., a hermenêutica clássica ou a hermenêutica pós-positivista - como o que deverá ser utilizado em todos os casos, a tópica defende que essa definição somente ocorre diante de um caso concreto, cujas peculiaridades evidenciarão qual método será utilizado.

A solução tópica teve, entre seus defensores iniciais, juristas como Friedrich Müller e Konrad Hesse. Tempos depois, esses teóricos, porém, vieram a ser os principais representantes da teoria que veio superar, dialeticamente, a oposição entre a hermenêutica clássica – excessivamente rígida – e a hermenêutica tópica – excessivamente maleável: o método da concretização. Este método retoma a norma como ponto de partida principal, mas não como texto legal a que os fatos devem subsumir-se, e sim como fonte de múltiplas possibilidades interpretativas entre as quais se deverá optar diante do caso concreto.

Além disso, por não apresentar a nora um conteúdo definido, mas sim diversos conteúdos possíveis, os teóricos da nova hermenêutica – especialmente Friedrich Müller – sustentam um novo conceito de norma jurídica, segundo o qual esta somente existe em sua integridade quando é aplicada pelos operadores do Direito. Até então, aquele enunciado que os hermenêuticos clássicos entendiam ser a norma em si mesma não passava de um texto fecundo de sentidos e alcances distintos. No entanto, para a concretização desse tipo de norma, é necessário optar por um de múltiplos sentidos por ela admitidos.

Conforme se percebe, a nova hermenêutica constitucional põe em evidência que a norma jurídica, em si mesma, não tem um sentido definido: é pela sua aplicação ao caso concreto que o sentido se completa. Essa observação é ainda mais verdadeira no que toca aos princípios, que possuem elevado grau de abstração e encerram valores que podem conflituar em situações fáticas. Esses conflitos somente poderão ser solucionados nessas situações, quando então o Poder Judiciário assumirá o papel de aplicar – e, portanto, de criar – as regras e, também, os princípios.


O EQUILÍBRIO ENTRE OS PODERES NO CONTEXTO DA NOVA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

O princípio da separação dos poderes tem origens remotas: já na Grécia Antiga, filósofos como Aristóteles alertavam contra a possibilidade de concentração do poder político nas mãos de uma só pessoa ou de um pequeno grupo e propunham, como forma de combatê-la, a repartição do poder político. No entanto, somente na idade moderna é que esta idéia veio a se materializar na proposta do filosofo Charles Louis de Secondat, também conhecido como Barão de Montesquieu (1689 – 1755).

A moderna formulação do conceito de separação dos poderes surgiu em uma época marcada pelo Absolutismo monárquico, na qual era comum que na figura do monarca convergissem atribuições legislativas, administrativas e jurisdicionais. Por essa razão, coube ao Iluminismo, o principal movimento filosófico a reagir contra esse modelo de Estado, o papel histórico de apresentar a proposta de separação dos poderes estatais que atualmente vigora na maior parte dos países democráticos.

O pressuposto da teoria de Montesquieu foi a constatação de que todo poder – não importa quem o detenha - tende a crescer e a ser utilizado como instrumento de opressão, a menos que seja limitado pelo próprio poder, por meio de um sistema de “freios e contrapesos” que permitisse a cada um dos Poderes, individualmente, intervir para impedir ou corrigir desmandos eventualmente praticados pelos outros.

Merece mencionar que a proposta de dividir o poder político em três ( Legislativo, Executivo e Judiciário), apesar de ser a mais aceita, não é a única. Há juristas – como Hans Kelsen - que entender haver, em última análise, somente duas funções estatais: a de criar o Direito – função que cabe, precipuamente, ao Poder Legislativo – e de aplicá-lo – função exercida tanto pelo Poder Judiciário quanto o Poder Executivo.

A esse respeito, Celso Antônio Bandeira de Mello menciona também a tendência de outros pensadores, como Francis-Paul Bénoit2, que, ao invés de reduzir, pluralizam o número de funções estatais, sustentando que não há somente duas ou três delas, mas diversas, que variam conforme se tenha em vista o “Estado-nação” (o conjunto dos órgãos estatais competentes para elaborar seu próprio direito interno) ou o “Estado-coletividade” (o conjunto dos órgãos estatais responsáveis por aplicar o direito interno criado).

Nesta concepção, o Estado-coletividade teria a função parlamentar (consistente na elaboração de normas jurídicas gerais) e a função governamental (consistente nos atos próprios de governo que fogem à administração pública, à legislação e à jurisdição, como declarar a guerra ou celebrar a paz). O Estado-nação se repartiria, segundo Bénoit, entre número bem maior de funções, das quais as principais seriam a função administrativa (gestão do interesse público), a função educativa (educação pública), a função judiciária (composição dos conflitos), e assim por diante.

A função governamental a que se referia Bénoit foi tomada por outros pensadores – como Otto Mayer3 – como o quarto poder, ao lado do Legislativo, do Judiciário e do Executivo, que teria por objeto os interesses gerais do Estado. Note-se que essa distinção é mais relevante nos países parlamentaristas, nos quais o indivíduos distintos ocupam os cargos de chefe de Estado (função governamental) e de chefe de Governo (função executiva).

No que toca ao sistema de “freios e contrapesos” de que falava Montesquieu, importa considerar que os mecanismos de equilíbrio entre os poderes variam bastante de país a país, mas há alguns que são mais frequentes. Conforme lembra o professor Paulo Bonavides4, o Executivo, por exemplo, dispõe da possibilidade de vetar os produtos da atividade legiferante (controle do Poder Legislativo) e a de nomeação de membros do Poder Judiciário (forma de intervenção nesta divisão do Poder).

O Poder Legislativo, por seu turno, tem o condão de retirar membros do Poder Executivo – por meio do impeachment e de revogar o veto executivo às leis por ele aprovadas. Além disso, são os membros do Poder Legislativo que definem a competência dos órgãos judiciários bem como a remuneração e o subsídio de seus membros e servidores, o que constitui indiscutível meio de controle ou supervisão do Poder Judiciário pelos parlamentares.

O Poder Judiciário, por fim, tem o poder de controlar a constitucionalidade das leis e dos atos normativos, suprimindo-lhes a validade quanto entenda haver conflito entre suas disposições e os valores constitucionalmente consagrados. Além disso, é possível que o Poder Judiciário exerca o controle da legalidade dos atos praticados pela Administração Pública (Poder Executivo). É indiscutível que essas possibilidades o investem da prerrogativa de limitar os abusos que os outros poderes eventualmente pratiquem e realizando, pois, o ideal de limitação e moderação do Poder Público que originariamente orientou a formulação da separação e equilíbrio entre os Poderes do Estado.

Nada obstante, essas atribuições do Poder Judiciário, graças às quais este adquire o condão de fiscalizar e controlar as atividades dos demais poderes, têm suscitado as mais intensas polêmicas na ciência jurídica. Discute-se até que ponto o Poder Judiciário pode avançar em sua atuação sem ferir as prerrogativas dos demais poderes e sem violar, com isso, os próprios princípios que lhe incumbe preservar.

Nesse intenso debate, há, de um lado, os entusiastas do chamado “ativismo judicial”, que propugnam uma nova atuação dos magistrados, pautada não mais pelo culto à Lei que caracterizou o Estado liberal, mas, ao contrário, moldada pela nova concepção de Direito e de Constituição que acabou prevalecendo no pós-positivismo. A esse respeito, elucida Luís Roberto Barroso5:

A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os da patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.

De outro lado, porém, surgem os críticos do ativismo, que se empenham em demonstrar a inadmissibilidade dessa invasão judicial da seara legislativa. Para solucionar o problema, os juristas afiliados a esse posicionamento propõem que as normas constitucionais relativas ao controle da constitucionalidade sejam alteradas de duas formas principais: de um lado, defendem que se tornem mais exigentes e restritas determinadas condições procedimentais relativas às ações de inconstitucionalidade; e, de outro lado, pugnam pela submissão ao Poder Legislativo das decisões exaradas pelas cortes superiores em sede de controle concentrado de constitucionalidade.

Utilizam, como exemplo, o sistema adotado por diversos países, como o Canadá, Israel, a Nova Zelândia, etc, para impedir que o Poder Judiciário seja, em todos os casos, quem dará a “última palavra” sobre determinada questão jurídico-política. Como lembra o professor José Guilherme Berman Corrêa Pinto6, não se trataria de tolher a voz do Judiciário, mas de submetê-la a controles democráticos atentos ao equilíbrio entre os poderes:

Os autores que criticam a supremacia judicial não negam a importância do Judiciário na proteção do Texto Constitucional e, principalmente, dos direitos fundamentais assegurados aos cidadãos. Apenas questionam se esta deve ser a última palavra sobre tais matérias, defendendo uma participação mais intensa dos demais poderes na garantia de tais prerrogativas.

Um dos maiores críticos do ativismo judicial é o constitucionalista Alfredo Canellas Guilherme7, o qual argumenta que o Poder Judiciário, ao contrário do Poder Legislativo, não tem origem democrática e eletiva. Dessa forma, a legitimidade da qual este se acha investido para a tarefa de elaborar normas jurídicas gerais e abstratas falta inteiramente àquele.

Além disso, os membros do Poder Judiciário exercem sua função convictos de que não serão retirados do Poder senão quando desejarem ou quando falecerem, uma vez que lhes assiste a garantia da vitaliciedade. Ao contrário, a provisoriedade dos mandatos legislativos funciona, ao menos em tese, como garantia de que seus detentores cumprirão suas funções em observância aos princípios e valores constitucionais que as regulam.

Por fim, Alfredo Canellas menciona que as decisões do Poder Judiciário não são submetidas ao controle democrático de “freios e contrapesos” imposto aos demais Poderes. Se for inconstitucional a lei elaborada pelo Poder Legislativo ou o ato normativo editado pelo Executivo, ambos encontrarão reprimenda no Poder Judiciário, por meio dos instrumentos processuais próprios. As decisões do Poder Judiciário, contudo, são imunes à avaliação dos outros Poderes, o que constitui indisfarçável privilégio - constitucionalmente amparado, inclusive – àquele Poder.

Além disso, Alfredo Canellas, em outro de seus artigos8, cita o bispo inglês Benjamin Hoadly (1676 – 1761), importante entusiasta da Revolução Gloriosa da Grã-Bretanha, que teria afirmado: “whoever hath an ultimate authority to interpret any written or spoken laws, it is he who is truly the Law-giver to all intents and purposes, and not the person who first wrote or spoke them”9.

Outro argumento contra o protagonismo do Poder Judiciário que tem sido utilizado pelos opositores, no esteio de juristas norte-americanos como Ran Hirschl10 com bastante frequência é que este Poder tem servido menos ao povo do que às elites, que, vendo seus interesses abandonados pelos parlamentares e membros do Poder Executivo, recorrem ao Judiciário para manterem seu status quo hegemônico. Trata-se da teoria da preservação hegemônica, sobre a qual Ran Hirschl assim explana:

I term this thick strategic explanation the “hegemonic preservation” thesis, and suggest that judicial empowerment through constitutionalization is best understood as the byproduct of a strategic interplay between three key groups: threatened political elites who seek to preserve or enhance their political hegemony by insulating policy-making processes from the vicissitudes of democratic politics; economic elites who may view the constitutionalization of certain economic liberties as a mean of promoting a neoliberal agenda of open markets, economic deregulation, antistatism, and anticollectivism; and judicial elites and national high courts that seek to enhance their political influence and international reputation. In other words, strategic legal innovators – political elites in association with economic anda judicial elites who have compatible interests – determine the timing, extent, and nature of constitutional reforms11.

Se, por um lado, argumenta-se que o Poder Judiciário somente se deve pronunciar em casos em situações concretas em que estejam em jogo os direitos fundamentais, ou na hipótese de omissão legislativa, respondem os inimigos do ativismo judicial que isso não impede o Poder Judiciário de intervir em diversas questões que deveriam, a rigor, estar totalmente fora de sua órbita de atuação, já que é possível encontrar em quase todo dispositivo legal o objetivo de proteger algum direito fundamental, o que torna possível a utilização desse pretexto para que desde as disposições constitucionais mais complexas até o mais singelo ato normativo, como uma circular ou portaria, pode vir a entrar no âmbito de atuação do Judiciário, em prejuízo do Poder Legislativo e Executivo.

Além disso – argumentam – quais os requisitos para que reste configurada a omissão legislativa capaz de suscitar a reação da Suprema Corte e dos Tribunais Superiores? Por exemplo, a Constituição Federal, em seu artigo 55, enumera as causas de perda de mandado parlamentar. Se o Poder Constituinte somente listou essas causas, fica subentendido que nenhuma outra há de haver, a menos que se reforme a Constituição na forma nela estabelecida (por meio de emendas constitucionais). Nada obstante, o Supremo Tribunal Federal subscreveu uma Resolução do Tribunal Superior Eleitoral segundo a qual a infidelidade partidária – motivo não elencado no referido artigo – acarretaria também a perda do mandato.

Esse e outros exemplos são mencionados na Justificativa da Proposta de Emenda Constitucional nº 33/201112, que se propôs a restabelecer o equilíbrio entre os Poderes, dentre outras medidas, por meio do aumento do quorum necessário à declaração definitiva da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo e através da submissão ao Congresso Nacional das decisões de inconstitucionalidade do Supremo Tribunal Federal.

Em que pesem diversos pontos positivos da argumentação acima desenvolvida, é necessário expor algumas questões que desautorizam diversas das suas alegações. Fala-se que o ativismo judicial, especialmente quando levado a efeito pelas Cortes Superiores, é fruto das tentativas exasperadas das elites para manterem seu atual poderio sobre as classes menos favorecidas. Nada obstante, cumpre mencionar que, conforme o próprio Ran Hirschl menciona, não somente as elites econômicas têm favorecido o ativismo judicial, mas também as próprias elites políticas, nas quais se incluem, sem dúvida, os próprios membros do Poder Legislativo cujos posicionamentos acabam sendo minoritários e sucumbindo, nas votações, à opinião da maioria.

Isto significa que o próprio Poder Legislativo favorece o ativismo judicial quando necessário à concretização de seus interesses. Além disso, a Justificativa do mencionado projeto de emenda à Constituição critica o próprio instituto da Súmula Vinculante – instituto que não foi criado pelo próprio STF, mas, antes, foi lhe conferido pela Emenda Constitucional nº 45, aprovada regularmente pelas próprias Casas Legislativas.

Cumpre também ressaltar que, em última análise, o Poder Judiciário é quem será responsável por dizer o Direito no caso concreto. Se prevalecer o entendimento de Friedrich Müller, explanado no capítulo anterior, segundo o qual a criação da norma jurídica somente é concluída no momento de sua aplicação, restará impossível qualquer tentativa de retirar do Poder Judiciário o papel, concorrente à do Legislativo, de criar o Direito: sua própria existência ameaça a exclusividade do Poder Legislativo nesse mister.

Ademais, o próprio sistema processual impediria o equilíbrio entre os poderes na visão dos opositores do ativismo judicial, já que se uma das partes de dado processo sustentasse ser inconstitucional certa lei que lhe desfavorecesse e levasse a questão - se não por via direta (ações de inconstitucionalidade), por via dos recursos – ao Supremo Tribunal Federal, este teria, forçosamente, que se manifestar, e seu entendimento, favorável ou contrário, haveria de prevalecer. Não seria mais racional que esse entendimento, tendente a prevalecer em todos os casos (mantida, em sua maioria, a composição do tribunal), estivesse logo sumulado, e estivesse anulada a lei tida por inconstitucional no julgamento daquele caso particular?

Outrossim, não se pode dizer que os membros do Supremo Tribunal Federal careçam totalmente de legitimidade democrática, uma vez que sua indicação e aprovação cabe, respectivamente, aos membros do Poder Executivo – eleito democraticamente – e aos do Poder Legislativo – também eleito de maneira democrática, o que lhes confere uma legimidade democrática indireta, ao menos.

Por fim, importa observar que o protagonismo adquirido pelo Poder Judiciário não foi um fenômeno desprovido de condições histórico-sociais que o justificassem: se deve, sobretudo, ao fracasso dos outros Poderes em solucionar, de forma efetiva e justa, diversas questões sociais da maior relevância, sem falar nos numerosíssimos eventos de corrupção em que participaram nas últimas décadas.

Ora, argumentam os opositores do ativismo judicial, não cabe ao Supremo Tribunal Federal, mas sim ao próprio povo, do qual todo poder emana, dizer o que é e o que não é a Constituição. O erro desse argumento consiste na ilusão da representatividade: o Congresso Nacional não é o povo brasileiro, apenas um conjunto de servidores públicos incumbidos de representar os interesses públicos, mas que, segundo a experiência tem demonstrado, são os que menos os respeitam. Além disso, o próprio povo já mostrou que deposita maior confiança no Poder Judiciário do que em qualquer dos outros dois, conforme evidencia pesquisa de opinião realizada em setembro de 200713.

Diante disso, conclui-se que, embora o Supremo Tribunal Federal e as cortes superiores às vezes cometam equívocos no exercício de sua função constitucional – como, aliás, os outros dois Poderes o fazem - o sistema atual de controle da constitucionalidade e demais mecanismos jurisdicionais pautados pela nova concepção de Direito e de Estado (como as garantias constitucionais, inclusive) e a atuação do Poder Judiciário consoante os novos princípios da hermenêutica constitucional são indispensáveis à realização dos direitos fundamentais no século XXI.

Sobre os autores
Fernanda Sousa Vasconcelos

Mestranda em Direito na área de concentração Ordem Jurídica Constitucional pela Universidade Federal do Ceará - UFC, onde graduou-se em Direito Bacharelado com Magna Cum Laude. Atualmente é servidora pública estadual do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.

Raphael Ayres de Moura Chaves

Possui graduação em Direito pela Universidade de Fortaleza(2003). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Privado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VASCONCELOS, Fernanda Sousa; CHAVES, Raphael Ayres Moura. A hermenêutica constitucional e o equilíbrio entre os poderes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4637, 12 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46468. Acesso em: 5 nov. 2024.

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