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O direito à liberdade de expressão e as biografias não autorizadas na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815

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Agenda 11/03/2016 às 15:28

4 A EXIGÊNCIA PRÉVIA DE AUTORIZAÇÃO PARA PUBLICAÇÃO DE BIOGRAFIAS

O Código Civil Brasileiro, Lei Nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002, estabelece em sua parte geral, mais especificamente no capítulo referente aos direitos da personalidade, os artigos 20 e 21 objetos do estudo deste trabalho. Transcreve-se para melhor compreensão:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. (Vide ADIN 4815)

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma. (Vide ADIN 4815)

Bem como leciona Farias (2012, p. 238), a tutela jurídica do direito à imagem do artigo supracitado (art. 20) segue, em linhas gerais, a regra do artigo 12 do Código Civil, que tem caráter geral. Basicamente a proteção do direito à imagem se aperfeiçoa através da tutela preventiva (inibitória), com o escopo de impedir que o dano ocorra ou se alastre.

Diniz (2012, p. 147) explana que o direito à imagem é autônomo, não precisando estar em conjunto com a intimidade, a identidade, a honra etc., embora possam estar, em certos casos, tais bens a eles conexos, mas isso não faz com que sejam partes integrantes um do outro. Pode-se ofender a imagem sem atingir a intimidade ou a honra. A imagem é a individualização figurativa da pessoa, autorizando qualquer oposição contra adulteração da identidade pessoal, divulgação indevida e vulgar indiscrição, gerando o dever de reparar dano moral e patrimonial que advier desse ato.

Não se pode negar que o direito à privacidade ou à intimidade é um dos fundamentos basilares do direito à imagem, visto que seu titular pode escolher como, onde e quando pretende que sua representação externa (imagem-retrato) ou sua imagem-atributo seja difundida (DINIZ, 2012, p. 147).

Essa é a razão pela qual o artigo 20 do Código Civil requer a autorização não só para divulgar escrito ou transmitir opinião alheia, pois tais atos poderão atingir a imagem-atributo, a privacidade pode vir à tona e gerar sentimento de antipatia, influindo na consideração social da pessoa, causando gravame à sua reputação, bem como para expor ou utilizar a imagem de alguém para fins comerciais, visto que pode a adaptação da sua imagem ao serviço de especulação comercial ou de propaganda direta ou indireta gerar redução da estima ou prestígio (DINIZ, 2012, p. 147).

Diniz (2012, p. 150-151) cita como exemplo de limitação ao direito à privacidade a aplicação do princípio da diferença, que considera as pessoas envolvidas e a natureza de uma situação peculiar. Entretanto, afirma que não se pode privar pessoa notória, ou pública, de sua intimidade revelando fato reservado ao redigir sua biografia nem desconhecer o fascínio que ela exerce.

Esse era o raciocínio apresentado pela doutrina e amparado pelo Poder Judiciário para exigir previamente o consentimento dos biografados ou de seus familiares, quando morto, para a publicação de suas respectivas biografias, mesmo os interessados sendo pessoas públicas e famosas.

Observam-se na história literária diversas biografias não autorizadas que tiveram sua publicação e circulação proibidas através de ações judiciais, gerando uma censura prévia das obras e a oficialização do “censor judicial”.

Seguindo entendimento anterior à decisão da ADI que será objeto do estudo, leciona Farias (2012, p. 250-251)

“No que tange ao direito à vida privada das pessoas públicas (celebridades), contrariamente ao que ocorre com o direito à imagem, não há uma relativização tão intensa da proteção dedicada pelo sistema. Se é certo, por um lado, que a privacidade das pessoas notórias se sujeita a um parâmetro de aferição ‘menos rígido do que os de vida estritamente privada. Isso decorre, naturalmente, da necessidade de autoexposição, de promoção pessoal ou do interesse público na transparência de determinadas condutas’, como percebe Luís Roberto Barroso. De outra banda, não menos certo é que isto não quer significar que as celebridades percam proteção de sua privacidade. Em absoluto. O direito à vida privada lhes é garantido constitucionalmente e tem de ser tutelado. Apenas deve se ponderar a extensão que se deve proteger da curiosidade do público em geral, no que toca às pessoas públicas. Com isso, não se poderia chegar à simplória (e indevida) conclusão de que estaria no campo da licitude a publicação de biografias não autorizadas de celebridades. Se a biografia não autorizada pelo biografado veicular fatos privados não estará permitida pelo sistema constitucional.”

Observa-se que Cristiano Chaves Farias defende a proibição da publicação de biografias não autorizadas, posicionamento majoritário da jurisprudência.

Apresentando a divergência, o mesmo autor exemplifica caso com diferente solução. Em demanda na qual discutia se uma peça de teatro – que retratava a vida de personagens da História do Brasil (Olga Benário e Luiz Carlos Prestes) – feria, ou não, a privacidade de terceiros, entendeu a Corte de Justiça fluminense: “tampouco se reconhece violação à privacidade, uma vez que os fatos mostrados são do conhecimento geral, ou pelo menos acessíveis a todos os interessados, por outros meios não excepcionais, como a leitura de livro para cuja redação ministrara informações o próprio titular do direito que se alega lesado” (TJ/RJ, ApCív.1988.001.03920, rel. Des. Barbosa Moreira, j. 3.4.89) (FARIAS, 2015, p. 251).

Entretanto, deve se observar que o caso concreto supracitado não se enquadra perfeitamente na interpretação conferida aos artigos 20 e 21 do Código Civil, pois o julgamento é anterior à existência do Código Civil de 2002, e os artigos em estudo não encontravam correspondência no Código Civil de 1916.

Diante das discussões jurídicas advindas do tema, frequentemente abordada pela doutrina e nos Tribunais, em 05 de julho de 2012, a Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL, propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, tendo por objeto a declaração da inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil, argumentando que o texto tem ensejado à proibição de que as biografias não autorizadas pelos biografados não possam ser publicadas e veiculadas pelo não consentimento da pessoa a ser biografada ou de seus familiares, o que configuraria censura prévia (FERREIRA, 2015).

Na petição inicial, argumentou-se que a as pessoas públicas teriam sua privacidade e intimidade restringidas, tornando sua história objeto de interesse da coletividade, configurando censura à liberdade de expressão dos profissionais que trabalham para garantir o direito à informação dos cidadãos e, nesse contexto, o fato de inexistir exceção quanto às biografias configura tolhimento das liberdades previstas nos incisos IV, IX e XIV do artigo 5º da Constituição (FERREIRA, 2015).

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Sustentou-se na peça introdutória que a exigência de autorização prévia tolhe a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, assegurada de maneira plena e não se admitindo prescindir de censura ou licença. E ainda demonstrou que as pessoas públicas são parte da história, por isso, não possuem o direito de impedir a veiculação das biografias apenas porque nelas estão retratadas (FERREIRA, 2015).

De um lado, a instituição do Grupo Procure Saber reunia no início artistas favoráveis à censura prévia das biografias, sendo integrado por nomes famosos, tais como Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Erasmo Carlos e Djavan, entre outros artistas, e presidido pela ex-mulher de Caetano, Paula Lavigne. O grupo passou a defender a proibição de obras não autorizadas pelos biografados ou por suas famílias, em caso de morte. Nesse sentido, estabeleceu-se uma ampla discussão pública em torno do tema, que resultou em longos editoriais, matérias jornalísticas, entrevistas e bate boca nas redes sociais (BÍLIO, 2014).

Do outro lado, a ANEL e outros amici curiae apresentaram seus argumentos contra a interpretação majoritária dos artigos 20 e 21 do Código Civil, sendo favoráveis ao fim da censura prévia e o direito ao exercício da liberdade de expressão para a publicação de biografias não autorizadas. Um dos mais relevantes argumentos jurídicos da ANEL é o parecer do professor Gustavo Tepedino, objeto de análise no tópico seguinte.

4.1 O parecer doutrinário de Gustavo Tepedino

O professor Gustavo Tepedino elaborou em 15 de junho de 2012, opinião doutrinária a pedido das Organizações Globo, que foi juntada aos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815 Distrito Federal, objetivando responder o seguinte quesito:

À luz do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais, de pessoas públicas, ou pessoas envolvidas em acontecimentos de interesse público, depende da autorização das pessoas biografadas ou envolvidas de qualquer forma na obra biográfica (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas)? (TEPEDINO, 2012, p. 2)

Para responder o quesito transcrito, Gustavo Tepedino inicia seu parecer com crítica ao texto do artigo 20 do Código Civil, destacando que o preceito possui redação confusa, gerando controvérsia interpretativa. Há, segundo o notável professor, uma valorização dos direitos da personalidade, em detrimento do direito fundamental à liberdade de expressão, de pensamento e à informação (TEPEDINO, 2012, p. 6).

A interpretação do artigo 20 em conjunto com a do artigo 21 do Código Civil permitem que o juiz possua o poder de censor perante qualquer informação que possa prejudicar a privacidade. Entretanto, tal valoração subjetiva termina por prejudicar também o trabalho jornalístico e a produção de biografias, que ficam condicionadas à prévia autorização dos biografados ou de seus familiares (TEPEDINO, 2012, p. 7).

Tepedino destaca que as liberdades de informação e de expressão, bem como a tutela à imagem, à honra, à intimidade e à privacidade encontram-se amparadas pelo texto constitucional, no rol das garantias fundamentais do artigo 5º e em outros dispositivos constitucionais. Em análise aos preceitos normativos, o professor aponta que os direitos por eles assegurados devem sobrepor à maléfica interpretação dada aos artigos em questão do Código Civil.

Como exemplo, o jurista destaca o julgamento no Supremo Tribunal Federal que baniu a Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, mais conhecida como Lei de Imprensa. O histórico julgamento decidiu por não recepcionar a lei em virtude da importância constitucional dada às liberdades de pensamento e de expressão, limitadas pela lei cunhada nos tempos da ditadura militar (TEPEDINO, 2012, p. 9-10).

A compreensão literal do texto dos artigos 20 e 21 do Código Civil choca com as garantias constitucionais, acarretando na necessidade prévia de autorização para a publicação de obras biográficas de todos aqueles cuja personalidade, direta ou indiretamente, viesse a ser atingida. Vislumbra-se um cenário de banimento ilegal de obras biográficas, que retratando fatos históricos e aspectos da vida privada de pessoas notórias ou expostas, viessem a ser proibidas por estas ou por seus familiares, no caso de pessoas falecidas (TEPEDINO, 2012, p. 10).

A interpretação dada aos artigos do Código Civil em estudo, assim ressalta Tepedino (2012, p. 11), é bastante sedutora para diversos civilistas, que visam a máxima proteção aos direitos da personalidade, sem antes entender que a liberdade de manifestação de pensamento é também direito inerente à personalidade humana e sua restrição provoca limitação a uma vida digna. Não há a plenitude da dignidade da pessoa humana quando se limita o direito de informar e de ser informado.

A proteção da personalidade na jurisprudência brasileira possui conexão íntima com o modelo das relações patrimoniais, protegendo a privacidade como se fosse território, tendo o parâmetro da inviolabilidade do domicílio. Essa perspectiva teve influência na dogmática da personalidade de diversos países de tradição romano-germânica e somente no século XX é que se começa a construção da noção de intimidade, advinda dos Estados Unidos a partir do right to be let alone no famoso ensaio de Samuel Warren e Louis Brandeis. (TEPEDINO, 2012, p. 11-13).

No direito civil contemporâneo, deve-se compreender a privacidade não mais como um direito estático de estar só; a nova perspectiva engloba o controle das informações pessoais, podendo interferir no fluxo das informações. Todavia, o direito de acesso à informação biográfica que, oriunda da trajetória de vida de uma pessoa pública, se confunde com a realidade histórica da sociedade, não sendo plausível o controle e proibição dessa informação (TEPEDINO, 2012, p. 13-14).

As biografias revelam relatos históricos descritos a partir de referências subjetivas, através do ponto de vista dos principais protagonistas da cadeia de eventos cronológicos que integram a história. Por serem os eventos considerados históricos, despertam o interesse público, decorrendo daí a necessidade da liberdade de informar e ser informado. O exercício dessa liberdade não pode ser vista somente como garantia individual, mas também como preservação da memória e da identidade cultural da sociedade (TEPEDINO, 2012, p. 15).

Tepedino (2012, p. 15) ensina que os homens públicos, que se destacam na história, ao assumirem posição de visibilidade, inserem voluntariamente a sua vida pessoal e o controle de seus dados pessoais no curso da historiografia social, expondo-se ao relato contido nas biografias.

O condicionamento de obras biográficas à autorização do biografado ou de seus familiares, quando falecido, deturpa o direito fundamental à livre divulgação da informação, pois estabelece seleção subjetiva dos fatos a serem divulgados, sacrificando a liberdade de expressão e estabelecendo a censura privada dos fatos indesejados pelo biografado (TEPEDINO, 2012, p. 15-16).

Quando a biografia se circunscreve aos limites de legitimidade próprios da informação constitucionalmente tutelada, isto é, quando é baseada em fatos obtidos por fontes legítimas e sem intuito abusivo ou doloso, não há que se falar em danos ressarcíveis ou aptos a suscitarem a tutela preventiva disposta nos artigos 20 e 21 do Código Civil, assim leciona Tepedino (2012, p. 18-19).

Entretanto, quando a informação for inverossímil ou adquirida através de fonte ilícita, ou ainda destinada a fim ilícito, há a incidência do que reza o artigo 20 do Código Civil, justificando-se somente nestas situações a repreensão a notícias motivadas por fins comerciais, observando que há por parte do intérprete a desnaturação da finalidade informativa. Quando ocorrer, não somente será cabível a indenização, mas também poderá ocorrer a incidência de crime, assim como acontece nas notícias que caracterizam injúria, calúnia e difamação (TEPEDINO, 2012, p. 19-20).

A manifestação do pensamento é livre, e se constitui em direito fundamental o acesso a qualquer tipo de obra, mesmo aquelas que pregam ideologias abjetas. O controle judicial desse tipo de obra não pode ser realizado a priori ou in abstracto, mas sim a posteriori e in concreto, como aconteceu na denegação do writ no Habeas Corpus n. 82.424-2/RS do Supremo Tribunal Federal, em que a obra camuflava propósito racista de caráter antissemita, elucida e exemplifica Tepedino (2012, p. 20).

Nesse julgamento, o ministro Marco Aurélio defendeu que a limitação estatal à liberdade de expressão deve ser entendida com caráter de extrema excepcionalidade e somente pode ocorrer quando sustentada por claros indícios de que houve grave abuso no exercício (TEPEDINO, 2012, p. 21).

Corroborando com o pensamento, o ministro Celso de Mello aponta que o procedimento estatal que implicasse em verificação prévia do conteúdo das publicações resultaria em ato injusto, arbitrário e discriminatório. Numa sociedade democrática e livre, não se pode institucionalizar a verificação prévia do Estado, nem admitir como expediente dissimulado pela falsa roupagem do cumprimento e observância da Constituição. Os abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento, quando praticados, devem ser verificados a posteriori, e assim expor aqueles que os praticarem a sanções cíveis e penais (TEPEDINO, 2012, p. 21).

A sábia decisão da Suprema Corte demonstra que a liberdade de expressão jamais pode ser tolhida e que, quando abusiva, se desejar ocultar propósitos criminosos, estes serão expostos, voltando-se o Judiciário de forma rigorosa para a repreensão da conduta nociva (TEPEDINO, 2012, p. 22).

Dando continuidade ao raciocínio, Tepedino (2012, p. 23-24) destaca que a personalidade humana, no cotidiano, é constantemente atacada, sem que haja dano ressarcível. Como exemplos, cita o caso do devedor insolvente, que diante de cobrança de dívida, pode entrar em depressão e até mesmo cometer suicídio. Ou o caso do término de um relacionamento amoroso, quando há a ruptura unilateral do noivado, não há dano injusto, por conseguinte, não há dever de reparação, ainda que a dor provoque evidente prejuízo à personalidade. Somente pode-se falar em dano moral passível de reparação quando há no caso em concreto a presença da ilicitude da conduta. O dano decorre da caracterização do ilícito, e não somente da dor causada.

No que diz respeito às atividades jornalísticas, muitas são as situações que podem ser citadas em que se observa o exercício da liberdade de informação e de expressão versus o direito de personalidade do retratado. Quando as notícias são sérias, de interesse público, que dizem respeito sobre pessoas notórias, sem objetivo de ofensas, não há que se falar em dano injusto, mas sim o exercício regular de direito (TEPEDINO, 2012, p. 24).

Utilizando a analogia, a conclusão que se pode extrair é que as biografias não autorizadas de pessoas notórias, só por si, não provocam danos ressarcíveis. A produção dessas obras decorre do exercício do direito constitucional à livre manifestação do pensamento e à informação, e assim, não podem ser impedidas, coibidas ou cerceadas. Deve-se afastar a produção das obras à sujeição de precificação patrimonialista, como desejam alguns herdeiros em casos notórios, a exemplo do caso Garrincha; as herdeiras pleitearam indenização por dano moral e material, consistente em percentual na venda das biografias, a pretexto de proteger a honra e a imagem do falecido (STJ, REsp. 521697, 4ª Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julg. 16.2.2006) (TEPEDINO, 2012, p. 25).

Os artigos 20 e 21 do Código Civil devem ser interpretados para coibir os abusos na editoração de obras criminosas, as quais a publicação perde o caráter informativo e visa propósitos nocivos ou há a ilicitude em sua origem. Esse tipo de biografia geralmente veicula fatos mentirosos com o propósito de causar danos ao biografado. Quando configurado no caso em concreto, deflagra-se a repreensão civil e criminal pela desinformação levada a cabo a pretexto de exercício de atividade editorial, mas não com a justificativa da publicação de fatos íntimos (TEPEDINO, 2012, p. 26).

O jurista entende que há incongruência lógica, teleológica, dogmática e sistemática entre as liberdades de expressão, de pensamento e de informação e a escolha de fatos a serem aceitos em obras biográficas (TEPEDINO, 2012, p. 26). Para isso, justifica.

“Incongruência lógica porque o discrime entre o publicável e o não publicável é incompatível com o próprio conceito das liberdades de expressão, de pensamento e de informação; teleológica porque o que tem em mente o constituinte, com a proteção da personalidade, não é o cerceamento das liberdades fundamentais, sendo certo que o interesse público torna publicáveis fatos verossímeis oferecidos pela vida privada dos personagens voluntários da história; dogmática porque, como visto, nem todos os danos são indenizáveis pelo ordenamento, inocorrendo, em linha de princípio, ilicitude no exercício de liberdades fundamentais; e sistemática porque é imperativo ponderar as liberdades fundamentais com a tutela da personalidade, sendo ambos previstos pelo ordenamento jurídico que, necessariamente, há de ser unitário, sistemático e coerente.” (TEPEDINO, 2012, p. 26-27)

A ponderação prévia e in abstracto entre o direito fundamental à informação e as liberdades de expressão e de pensamento, de um lado, e a proteção à imagem, honra, privacidade e intimidade da pessoa pública biografada, de outro lado, não pode embasar o sacrifício das primeiras, sob pena de se permitir a censura privada e a extinção do gênero biografia. Eventual dano causado tão somente pela informação de fato considerado histórico não é ressarcível, mesmo que seja prejudicial à personalidade do biografado. É dano que não pode ser taxado como injusto, em consonância com o bem jurídico constitucional das liberdades de expressão, de pensamento e de informação (TEPEDINO, 2012, p. 27).

Ocorrendo abuso ou desvio do exercício da liberdade de informação, diante da ilicitude das fontes, da falsidade evidente dos fatos apresentados ou do desvirtuamento da finalidade do interesse tutelado, é perfeitamente cabível a punição após juízo a posteriori (jamais a priori, mediante ponderação in abstracto que, no caso, configuraria mera censura privada, atitude abominável pela Constituição). A obra que, sob aparente conteúdo informativo, revelasse intuito imoral, criminoso ou doloso contra a honra, intimidade ou imagem do biografado, seria coibida, e seus autores passíveis de enquadramento em diversos tipos penais (calúnia, injúria, difamação, racismo, falsidade ideológica etc.) (TEPEDINO, 2012, p. 28).

O mero impacto negativo causado pela notícia histórica na personalidade do biografado ou de sua família, ainda que tal fato lhes seja efetivamente desgostoso e sofrido, não gera efeitos no campo da responsabilidade civil. A aplicação dos artigos 20 e 21 do Código Civil somente são compatíveis com o texto constitucional quando há o desvirtuamento da liberdade de expressão, caracterizados pela mentira ou desinformação, configurando invariavelmente conduta abusiva. Diante do ponto de vista hermenêutico com a Constituição da República, tais artigos podem ser aplicados quando a publicação possuir propósito criminoso ou doloso, para fins reprovados pelo ordenamento, desfigurando a finalidade informativa (TEPEDINO, 2012, p. 28-29).

Afirma o renomado jurista, em conclusão à sua opinião doutrinária, a seguinte resposta ao quesito formulado:

“Não. A exigência de autorização do biografado ou de seus familiares (na hipótese de pessoa falecida) prévia à publicação de biografia representa intolerável violação às liberdades de informação, expressão e pensamento, constitucionalmente tuteladas, a configurar, a partir de ponderação in abstracto, censura privada, acarretando, inevitavelmente, a extinção do gênero biografia. Por isso mesmo, tal interpretação dos arts. 20 e 21 do Código Civil afigura-se inconstitucional, não podendo ser admitida.

As biografias revelam narrativas históricas descritas a partir de referências subjetivas, isto é, do ponto de vista dos protagonistas dos fatos que integram a história. Tais fatos, só por serem considerados históricos, já revelam seu interesse público, em favor da liberdade de informar e de ser informado, essencial não somente como garantia individual, mas como preservação da memória e da identidade cultural da sociedade.

Os danos sofridos pela personalidade dos biografados e de seus descendentes, quando a biografia se circunscreve aos limites de legitimidade próprios da informação constitucionalmente tutelada, isto é, quando baseada em fatos verossímeis obtidos por fontes legítimas e sem intuito abusivo ou doloso, não são danos ressarcíveis ou aptos a suscitarem a tutela preventiva de que cuidam os arts. 20 e 21 do Código Civil.

Por outro lado, o abuso ou desvio do exercício da liberdade de informação, caracterizados pela ilicitude das fontes, falsidade evidente dos fatos apresentados ou desvirtuamento da finalidade do interesse tutelado é severamente punido pelo ordenamento, após juízo a posteriori, capaz de configurar, inclusive, tipos penais.

No campo da responsabilidade civil, o desvirtuamento da liberdade de expressão, por meio da veiculação de fatos mentirosos ou manipulados, configura conduta abusiva, sendo coibido pelo ordenamento jurídico.

Eis a única hipótese, no âmbito da atividade jornalística e literária, em que a linguagem dos arts. 20 e 21 do Código Civil pode ser preservada do ponto de vista hermenêutico, compatibilizando os dispositivos ao texto constitucional: quando a publicação for considerada veículo de propósito criminoso ou doloso, para fins reprovados pelo ordenamento, de forma a descaracterizar a finalidade informativa” (TEPEDINO, 2012, p. 29-31).

Antes mesmo da análise do voto da ministra Cármen Lúcia na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815 Distrito Federal, a opinião doutrinária do professor Gustavo Tepedino apresentou importante reflexão sobre a interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil, abordado uma visão garantista e libertária provenientes do espírito da Constituição Federal.

Sobre o autor
Pablo Edirmando Santos Normando

Advogado. Pós-graduado em Direito Público e pós-graduado em Direito Privado pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí. Graduado em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NORMANDO, Pablo Edirmando Santos. O direito à liberdade de expressão e as biografias não autorizadas na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4636, 11 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46505. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada à Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí como requisito para a obtenção do título de Especialista em Direito Privado.

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