1. A REALIDADE DO PODER LEGISLATIVO E JUDICIÁRIO FRENTE À HOMOAFETIVIDADE
A união homoafetiva, ou denominada, a união entre pessoas do mesmo sexo, não é normatizada pelo ordenamento jurídico brasileiro. A família legalmente reconhecida é constituída da união entre homem e mulher. Apesar da Constituição Federal, em seu artigo 5°, reconhecer o princípio da igualdade estabelecendo que homem e mulher são iguais perante a lei, só permite a união estável entre pessoas de sexos diferentes, assim como também o faz o Código Civil, não reconhecendo os direitos de natureza familiar provenientes das uniões de pessoas homossexuais.
Esclarece Dias:
A homossexualidade acompanha a história do homem. Recebeu inúmeros rótulos pejorativos e discriminatórios. Ela não é crime, nem pecado, nem doença e nem um vício. Também não é um mal contagioso, e não existe justificativa para a dificuldade que as pessoas sentem em ser amigas de homossexuais. É considerado simplesmente uma outra forma de viver. A origem não é conhecida e nem interessa, pois não é um mal que se necessita saber a causa para se buscar um remédio. [...] [1]
É com grande dificuldade que se justifica a resistência do Poder Legislativo em regulamentar os direitos denominados de homoafetivos. O legislador, com medo da reprovação do seu eleitorado fortemente influenciado pela Igreja, que retrogradamente abomina os vínculos homossexuais, prefere não aprovar leis que concedam direitos às minorias alvo da discriminação. Mas a ausência de leis não significa a inexistência de direitos e nem que tais uniões não mereçam a proteção jurídica. Aos poucos, as uniões entre pessoas do mesmo sexo vêm sendo reconhecidas pelo poder judiciário, muito embora se tenha clara consciência de que ainda haverá muita luta contra o preconceito.
Na Constituição Federal está elencado o princípio da igualdade, onde prevê tratamento isonômico a todos os cidadãos conforme os critérios existentes no ordenamento jurídico. Dessa forma, são vedadas as diferenciações arbitrárias e as discriminações absurdas.
Vale ressaltar que tal princípio opera em dois planos distintos. O primeiro, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo a criação de tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações idênticas. Em segundo plano, na obrigatoriedade à autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social. Ou seja, se existir distinção em algum tratamento especificado pela norma de forma que não seja razoável é verificada a desigualdade.
Exatamente neste sentido, Dias retrata que:
A possibilidade de desrespeito ou prejuízo a uma pessoa, em função da orientação sexual significa dar tratamento indigno a um ser humano. Não se pode ignorar a orientação sexual de um indivíduo como se não tivesse relação com a dignidade humana.[2]
Dessa forma, todos os cidadãos devem ser tutelados juridicamente, sem distinção, independentemente de qual seja a de sua orientação sexual.
1.1 A omissão do legislativo versus a aplicabilidade do judiciário
Tratando-se da omissão do legislador sobre o tema da união homoafetiva, Dias entende que:
A omissão do legislador leva ao surgimento de um círculo perverso. Diante da inexistência da lei, a justiça rejeita a prestação jurisdicional. Sob a justificativa de que não há uma regra jurídica, negam-se direitos. Confunde-se carência legislativa com inexistência de direito. O juiz não pode excluir direitos alegando ausência de lei. [3]
O julgador deve aproximar a lei da realidade social e preencher a lacuna ou obscuridade da lei, de modo que se possa construir uma sociedade livre, justa e solidária, bem como de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme os objetivos fundamentais descritos na Constituição Federal.
Diante da omissão do legislador, o poder judiciário deve decidir com base nos princípios constitucionais da igualdade e dignidade da pessoa humana. Utilizando esse exemplo, temos o acórdão 1.0024.09.484555-9/001, lavrado pelo desembargador Elias Camilo, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que retrata o posicionamento a seguir:
EMENTA: DIREITO DE FAMÍLIA - AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO HOMOAFETIVA - ART. 226, §3º DA CF/88 - UNIÃO ESTÁVEL - ANALOGIA - OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - VERIFICAÇÃO. - Inexistindo na legislação lei específica sobre a união homoafetiva e seus efeitos civis, não há que se falar em análise isolada e restritiva do art. 226, §3º da CF/88, devendo-se utilizar, por analogia, o conceito de união estável disposto no art. 1.723 do Código Civil/2002, a ser aplicado em consonância com os princípios constitucionais da igualdade (art. 5º, caput, e inc. I da Carta Magna) e da dignidade humana (art. 1º, inc. III, c/c art. 5º, inc. X, todos da CF/88). [4]
No mencionado acórdão o desembargador utilizou analogia à união estável na sua decisão, aplicando também os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, para conferir à união homoafetiva os mesmos direitos dos companheiros. Tal decisão é louvável, pois respeita os mencionados princípios constitucionais. Há que se registrar que não há proibição legal impedindo que esse tipo de união tenha efeitos civis.
A formação das famílias decorre da presença do afeto entre as pessoas, tendo em vista que as relações afetivas não acontecem somente entre homem e mulher, mas também entre pessoas do mesmo sexo. E é com base nesse vínculo de amor e afeto, sem querer saber qual o sexo, que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no acórdão n°70035804772 da Oitava Câmara Cível, decidiu:
EMENTA: APELAÇÃO. UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. APELO DA SUCESSÃO. A união homossexual merece proteção jurídica, porquanto traz em sua essência o afeto entre dois seres humanos com o intuito relacional. Seja como parceria civil (como reconhecida majoritariamente pela Sétima Câmara Cível) seja como união estável, uma vez presentes os pressupostos constitutivos, de rigor o reconhecimento de efeitos patrimoniais nas uniões homossexuais, em face dos princípios constitucionais vigentes, centrados na valorização do ser humano. Caso em que se reconhece as repercussões jurídicas, verificadas na união homossexual, em face do princípio da isonomia, são as mesmas que decorrem da união heterossexual. (...).[5]
Com profundo conhecimento e senso de justiça, a Desembargadora Maria Berenice Dias, entende que essas as uniões homoafetivas assumem feição de família uma vez que o afeto é a exteriorização do ser e do viver, e que é o amor que caracteriza a entidade familiar:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. É de ser reconhecida judicialmente união homoafetiva mantida entre dois homens de forma pública e ininterrupta pelo período de nove anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetuou através dos séculos, não podendo o judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de gêneros. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, bem como viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. AUSÊNCIA DE REGRAMENTO ESPECÍFICO. UTILIZAÇÃO DE ANALOGIA E DOS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO. A ausência de lei específica sobre o tema não implica ausência de direito, pois existem mecanismos para suprir as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, em consonância com os preceitos constitucionais (art. 4º da LICC). Negado provimento ao apelo, vencido o Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. (SEGREDO DE JUSTIÇA).[6]
De acordo com essas decisões conclui-se que a união homossexual merece proteção jurídica por trazer em sua essência o afeto entre dois seres humano, pelo dever de respeito aos princípios constitucionais que visam à valorização do ser humano e também porque as repercussões jurídicas na união homossexual ocorrem da mesma forma das decorrentes da união heterossexual.
Não é proibida pelo ordenamento jurídico a união de pessoas do mesmo sexo, portanto, não se pode negar aos homossexuais esse direito que lhes é devido.
O Poder Judiciário vem cooperando para minimizar a aversão à homossexualidade. Não se pode mais continuar negando à união homoafetiva os efeitos jurídicos. Os juízes devem decidir de maneira sensata e não se isentarem de julgar o assunto, pois não é desconhecendo ou rejeitando situações e fatos que se faz justiça.
Apesar da sociedade ter progredido bastante nos últimos anos, pode-se observar que ela ainda rejeita, com nitidez, o direito à livre orientação sexual. Marginaliza tudo aquilo que se afasta do padrão convencional, tido como normal e correto.
As uniões homoafetivas estão amparadas pelos princípios constitucionais, que proíbem todo tipo de discriminação, bem como, a não regulamentação da questão ataca frontalmente a Constituição Federal.
Essas uniões homoafetivas ganharam relevo a partir do momento em que o obsoleto modelo patriarcal e hierarquizado de família cedeu lugar a um novo modelo fundado no afeto. A propósito, as uniões entre pessoas do mesmo sexo pautadas pelo amor, respeito e comunhão de vida preenchem os requisitos previstos na Constituição Federal em vigor, quanto ao reconhecimento da entidade familiar, na medida em que consagrou a afetividade como valor jurídico.
A valorização da dignidade da pessoa humana como elemento fundamental do estado democrático de direito não pode chancelar qualquer discriminação baseada em características pessoais individuais, repelindo-se qualquer restrição à liberdade sexual do indivíduo, não podendo admitir desrespeito ou prejuízo em função de sua orientação sexual.
Observa-se que o Poder Judiciário, diante da omissão do Poder Legislativo, está tentando amenizar o efeito devastador da não regulamentação da questão ao julgar positivamente várias lides, dando proteção estatal àqueles que vivem em união homoafetiva. Frente a este desfecho temos a decisão histórica prolatada pelo STF que reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar e equiparou a união homoafetiva à união estável heterossexual.
Neste sentido, essa decisão torna efetivo o princípio da igualdade, conferindo primazia ao princípio da dignidade da pessoa humana, e rompe com paradigmas históricos e culturais, não mais condizentes com a evolução da sociedade.
É necessário ter percepção ampla para atender o clamor da realidade social, os ouvidos atentos para ouvir os seus anseios e audácia para realizar o Direito em sintonia com a Justiça.
Embasado no estudo realizado é possível concluir que a união homoafetiva, que possui as características da publicidade, da estabilidade, da mútua assistência, pautada no afeto, com o objetivo de constituir família, deve ser equiparada à união estável.
Nessa linha de pensamento, ressalta-se ser impositivo que o Poder Legislativo siga os passos do Poder Judiciário e equipare a união homoafetiva à união estável entre homem e mulher.
Frente à omissão do legislador, a jurisprudência vem concedendo direitos aos casais que vivem em união homoafetiva, com base no afeto e nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade, utilizando-se também a analogia com a união estável.
É inadmissível que essa omissão perdure e que sejam negados efeitos às uniões de homossexuais, pois há evidente desrespeito aos princípios constitucionais de cidadãos tão comuns quanto os outros e que também merecem ter seus direitos tutelados, além do que, a união entre pessoas do mesmo sexo não é vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF; Senado, 1988.
BRASIL. Código Civil. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windit e Lívia Céspedes. 5. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.
BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869.htm>. Acesso em: 05 ago. 2014.
BRASIL. Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977. Regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos, e dá outras providências. Disponível em: <http://ww.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6515.htm>. Acesso em: 05 ago. 2014.
BRASIL. Lei nº 8.971, de 29 de dezembro de 1994. Regula o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão. Disponível em: <http://ww.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8971.htm>. Acesso em: 05 ago. 2014.
BRASIL. Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996. Regula o § 3º do art. 226 da Constituição Federal. Disponível em: <http://ww.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9278.htm>. Acesso em: 11 set. 2014.
BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o novo código civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm >. Acesso em: 12 jul. 2014.
BRASIL. Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942. Institui a lei de introdução ao código civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del4657.htm> Acesso em: 15 ago. 2014.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Acórdão n° 1.0024.09.484555-9/001. 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 12 de fevereiro de 2010. Disponível em: <http://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/7225793/100240948455590011-mg-1002409484555-9-001-1/inteiro-teor-12972853>. Acesso em: 30 jan.2015.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70035804772. 8ª Câmara Cível. Relator: Rui Portanova, Julgado em 10/06/2010. Disponível em: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21439842/apelacao-civel-ac-70045194677-rs-tjrs/inteiro-teor-21439843>. Acesso em: 30 jan.2015.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70009550070. 7ª Câmara Cível. Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 17/11/2004. Disponível: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22145310/apelacao-civel-ac-70047017827-rs-tjrs/inteiro-teor-22145311>. Acesso em: 30 jan.2015.
[1] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007. p. 182.
[2] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007. p. 183/184.
[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007. p. 186.
[4] MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Acórdão n° 1.0024.09.484555-9/001. 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 12 de fevereiro de 2010. Disponível em: <http://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/7225793/100240948455590011-mg-1002409484555-9-001-1/inteiro-teor-12972853>. Acesso em: 30 jan.2015.
[5] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70035804772. 8ª Câmara Cível. Relator: Rui Portanova, Julgado em 10/06/2010. Disponível em: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21439842/apelacao-civel-ac-70045194677-rs-tjrs/inteiro-teor-21439843>. Acesso em: 30 jan.2015.
[6] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70009550070. 7ª Câmara Cível, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 17/11/2004. Disponível: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22145310/apelacao-civel-ac-70047017827-rs-tjrs/inteiro-teor-22145311>. Acesso em: 30 jan.2015.