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Comentários ao Enunciado n. 45 da I Jornada de Direito Comercial

Analisaremos o papel do juiz na concessão do benefício da recuperação judicial ordinária, diante da declaração de vontade dos credores, mostrando a importância de o intérprete da lei identificar casuisticamente eventual abuso no direito de voto.

1. PALAVRAS-CHAVE

Direito Empresarial; Recuperação Judicial Ordinária; papel do juiz; manifestação de voto pelos credores.

 

 

2. INTRODUÇÃO

 

O trabalho em tela apresenta um breve estudo referente ao enunciado n. 45 da I Jornada de Direito Comercial, no tocante `a possibilidade da desconsideração pelo juiz de votos de credores e manifestação do devedor nos casos em que seja verificado o abuso de direito por partes destes. 

 

Observa-se que nem o Decreto-Lei n. 7.661/1945 (antiga lei de falências) nem a Lei 11.101/2005 (atual lei de falências) dispõem sobre a capacidade do juiz para desconsiderar voto de credores, independentemente da situação concreta.

 

Em 2011 foi proferido acórdão no Estado do Rio de Janeiro o qual decidiu pela exclusão de voto de credor por abuso de direito, tendo como fundamento o principio da preservação da empresa e o cumprimento de sua função social – prevista no artigo 47 da Lei 11.101/05.

 

Tal acórdão criou precedente para discussão a respeito do tema, de modo que este foi debatido na I Jornada de Direito Comercial culminado no enunciado 45, in verbis:

“O Magistrado pode desconsiderar o voto de credores ou a manifestação de vontade do devedor, em razão de abuso de direito”.

 

Desta forma, analisaremos a legalidade e aplicação do referido tema. 

 

 

 

3. DESENVOLVIMENTO

 

            Para entender o enunciado objeto de estudo do presente trabalho, é necessário frisar que houve um precedente no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro no ano de 2011, ou seja, dois anos antes da I Jornada de Direito Comercial ocorrer, em que houve exclusão do voto do credor por abuso de direito.

 

            O referido julgado foi um marco no sentido de que foi o primeiro que permitiu que, em caso de abuso de direito, o juiz competente pode sim desconsiderar o que foi decidido em Assembleia Geral pelos credores e, assim, aprovar a recuperação judicial. Ainda não havia o enunciado n. 45, considerado uma diretiva no assunto. Após o acórdão proferido pelo Relator Milton Fernandes de Souza no TJ do Rio de Janeiro em 2011, já foram proferidos outros acórdãos no mesmo entendimento.

 

            Vale citá-lo:

DIREITO EMPRESARIAL. ART. 58, § 1o LEI DE FALÊNCIAS. EXCLUSÃO DO VOTO DE CREDOR POR ABUSO DE DIREITO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CONCESSÃO. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. PREVALÊNCIA.

1- O artigo 58, § 1o da Lei de Falências autoriza o juiz a homologar o plano de recuperação judicial, ainda que sem a aprovação dos credores na forma do art. 45 da Lei, desde que presentes, cumulativamente, os requisitos nele estabelecidos.

2-Nesse contexto, em homenagem ao princípio da preservação da empresa e ao cumprimento da sua função social, é lícito ao Juiz promover a exclusão do voto de credor que exerce seu direito de maneira abusiva e contrária aos interesses dos demais credores, possibilitando, assim, a recuperação judicial da sociedade devedora.

(TJ-RJ – AI: 0037321-84.2011.8.19.0000, Relator: Milton Fernandes de Souza, Data de Julgamento: 13/12/11, 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça).

 

            Por meio da ementa do julgado, infere-se que o Relator utilizou o princípio da função social como forma de justificar a desconsideração do voto do credor, além de utilizar o cram down também como argumento, vez que é um caso previsto na Lei de Recuperação de Empresas e Falência (Lei 11.101/05) em que o juiz pode conceder a recuperação judicial, sem que tenha ocorrido a aprovação prevista no art. 45 da mesma lei. Evitou, assim, de forma brilhante, que fosse consubstanciado na prática o brocardo ciceriano da "summum jus, summa injuria" (exercício do direito em excesso gera injúria excessiva), em prol da função social da empresa.

 

            Seguindo o princípio constitucional da liberdade associativa, a nova lei de recuperação de empresas estabeleceu que a deliberação dos credores sobre o plano de recuperação será soberana, não cabendo ao juiz o papel de examinar o conteúdo econômico-financeiro do projeto, conforme previsto no artigo 58, adiante transcrito:

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Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembleia geral de credores na forma do art. 45 desta Lei.

 

            Portanto, cumpre evidenciar que não há dúvidas quanto à importância da Assembleia Geral de Credores para o procedimento da Recuperação Judicial. Embora considerada soberana, não significa que a análise do plano judicial não estará sujeita a um controle de legalidade, vez que a Assembleia não incide sobre as deliberações do plano.

 

            Esse é o entendimento constante no enunciado n. 44 também da I Jornada de Direito Comercial, a saber: “A homologação de plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao controle judicial de legalidade”. Encontra respaldo ainda no Superior Tribunal de Justiça:

 

RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. APROVAÇÃO DE PLANO PELA ASSEMBLÉIA DE CREDORES. INGERÊNCIA JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. CONTROLE DE LEGALIDADE DAS DISPOSIÇÕES DO PLANO. POSSIBILIDADE. RECURSO IMPROVIDO.

1. A assembleia de credores é soberana em suas decisões quanto aos planos de recuperação judicial. Contudo, as deliberações desse plano estão sujeitas aos requisitos de validade dos atos jurídicos em geral, requisitos esses que estão sujeitos a controle judicial.

2. Recurso especial conhecido e não provido. (STJ, REsp n° 1314209, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 2/05/2012, DJe 01/06/2012).

           

            Não obstante, é preciso analisar cada caso concreto, para que seja possível identificar casos de abuso de direito que possam ensejar na desconsideração do voto dos credores pelo juiz. Isso porque a definição de abuso de direito não pode ser encontrada na Lei de Recuperação de Empresas e Falência, sendo necessário usar por analogia o que dispõe a Lei n. 6.404/76 – Lei das Sociedades Anônimas – em seu art. 115, in verbis:

           

Art. 115. O acionista deve exercer o direito a voto no interesse da companhia; considerar-se-á abusivo o voto exercido com o fim de causar dano à companhia ou a outros acionistas, ou de obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a companhia ou para outros acionistas.

            Ainda para que não restem dúvidas quanto `a definição de abuso de direito, imperioso mencionar o art. 187 do Código Civil:

 

Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

 

            Ao proteger a recuperação da empresa de votos provenientes de um excesso de poder, o enunciado n. 45 assegura o princípio da preservação da empresa, princípio este importantíssimo para a matéria. Isso porque a empresa, além de essencial para o mundo econômico-financeiro, é essencial para a sociedade, aspecto norteador para o juiz.[1]

 

            Nesse sentido, o art. 47 da Lei 11.101/05 tem grande relevância para o entendimento do enunciado que ora se estuda, na medida que abarca o supramencionado princípio. Pelas palavras do próprio artigo:

 

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

 

            A fim de ilustrar o conteúdo apresentado, necessário citar que este é o entendimento aplicado nos tribunais pátrios do País, principalmente após o marco do acórdão citado do Rio Janeiro:

 

Recuperação judicial. Aprovação do plano de recuperação apresentado, a despeito de ter sido rejeitado em Assembleia Geral de Credores. Homologação conforme teoria denominada "cram down". Controle judicial de legalidade. Desconsideração dos votos dos credores em razão de abuso de direito. Enunciados nº 44 e 45 da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal (CJF). Aplicação do princípio da preservação da empresa economicamente viável. Credores pertencentes a uma única classe, a dos créditos quirografários. Ausência de deságio. Aumento do faturamento da empresa desde a data do pedido de recuperação judicial. Abuso do exercício do direito de voto reconhecido. Manutenção da decisão que homologou o plano de recuperação judicial. Agravo de instrumento desprovido.

 

(TJ-SP - AI: 00990764620138260000 SP 0099076-46.2013.8.26.0000, Relator: José Reynaldo, Data de Julgamento: 03/02/2014, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 07/02/2014).

           

 

            Trata-se de um Agravo de Instrumento contra decisão que aprovou um plano de recuperação judicial, quando havia sido rejeitado por parte dos credores da única classe (créditos quirografários) da Assembleia Geral de Credores, que correspondiam a 73,86% dos créditos sujeitos à recuperação judicial. Foi desprovido em virtude do reconhecimento do abuso de direito por parte da classe de créditos quirografários, o que tornaria a conduta do juiz que aprovou o plano de acordo com a preservação da empresa, respeitado o enunciado 45 da I Jornada de Direito Comercial e os demais componentes para o seu entendimento, conforme elucidado.

 

            Corolário do que foi exposto acima, tem-se a opinião de LOBO sobre o papel do juiz na solução do conflito hermenêutico entre a soberania da assembleia geral dos credores e a possibilidade de desconsideração de voto de credores em razão de abuso de direito:

 

“No caso da ação de recuperação judicial da empresa, a assembleia geral de credores, primeiro, depois, o Ministério Público e, por derradeiro, o juiz da causa deverão sopesar a realização dos fins – salvar a empresa, manter os empregos e garantir os créditos –, através do princípio da razoabilidade ou proporcionalidade, quando, então, talvez, venham a concluir que o caso concreto exige o ‘sacrifício’ de determinado fim se indispensável ao saneamento da empresa ou o ‘sacrifício’ parcial do interesse da empresa em benefício de empregados e credores etc., pois, como ressaltam os franceses, os procedimentos coletivos são ‘procedimentos de sacrifício’ que limitam os poderes do devedor e restringem os direitos dos credores.

Deverão, ao mesmo tempo, empenhar-se na ‘ponderação de princípios’ – o da conservação e da função social da empresa, o da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho e da segurança jurídica e da efetividade do Direito –, através do ‘teorema de colisão’ de Alexy, para o qual diante de um choque de princípios, as circunstâncias fáticas determinarão qual deve prevalecer, pois ‘possuem uma dimensão de peso’, verificável caso a caso.

Por isso, aos que sustentam ser a função do magistrado na ação de recuperação judicial de empresa simplesmente formal, o que o transformaria em mero homologador das deliberações da assembleia geral de credores, respondo que o juiz, no processo de reorganização da empresa, exerce, em toda a sua plenitude, poderes de caráter jurisdicional ou ‘pode- res-fim’, ‘poderes-meio’ ou ‘instrumentais’ e ‘poderes administrativos’[...].”

Destarte, se o plano de recuperação ofende o ordenamento jurídico deve ser combatido pelo Poder Judiciário, não podendo subsistir a aprovação do mesmo. Sendo a matéria relacionada a normas de conteúdo econômico é necessária que haja uma mudança de mentalidade no exercício da atividade jurisdicional, menos formalista e abstrata. Como não há uma posição jurisprudencial, tampouco legal, definida a esse respeito, o ideal é dar ampla margem de discricionariedade ao magistrado haja vista que a economia e o mercado continuam em funcionamento e clamam por respostas”. [2]

 

            Portanto, `a luz da opinião do citado Autor, o papel do juiz na concessão do beneficio da recuperação diante da manifestação de votos dos credores deve ser material e não formal, de modo que deve ele exercer o controle de legalidade sobre o processo de recuperação judicial.      

 

 

 

4. CONCLUSÃO

 

Em síntese conclusiva, pode-se afirmar que não está claramente descrito em lei as hipóteses em que o juiz pode, ou não, analisar o conteúdo do plano de recuperação judicial da empresa, uma vez que a redação do artigo 58 da Lei 11.101/05 indica que a decisão dos credores sobre o projeto do devedor é soberana.

 

Desta forma, entendemos que essa falta de parâmetro para conduzir a atuação do juiz acaba por gerar discricionariedade para o magistrado, além de retirar a previsibilidade das decisões, e, consequentemente, a segurança jurídica, que deve existir nas decisões judiciais.

 

Deve então o magistrado identificar, caso a caso, se há comprovação de que ocorreu abuso de direito de voto dos credores. Frise-se a impossibilidade de se  presumir a ocorrência de abuso de direito por parte do credor, vez que deve-se existir prova da violação dos princípios de regem a recuperação empresarial.

 

 

 

5.  BIBLIOGRAFIA

 

FILHO, Manoel Justino Bezerra. “Lei de Recuperação de Empresas e Falência”. São Paulo, Revista dos Tribunais, 10ª ed., 2014.

LOBO, Jorge Joaquim. “Direito da empresa em crise: a nova lei de recuperação de empresa”. Rio de Janeiro, Revista Forense. v. 379, p. 119/131, maio-junho 2005.

 

 

 

 


[1]Deverá o juiz sempre ter em vista, como orientação principiológica, a prioridade que a lei estabeleceu para a “manutenção da fonte produtora”, ou seja, recuperação da empresa” (Manoel Justino Bezerra Filho, em sua obra “Lei de Recuperação de Empresas e Falência”, 10ª ed., 2014).

[2]  LOBO, Jorge Joaquim. “Direito da empresa em crise: a nova lei de recuperação de empresa”. Rio de Janeiro, Revista Forense. v. 379, p. 119/131, maio-junho 2005. 

Sobre as autoras
Beatriz dos Santos Funcia

Estudante de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Estagiária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

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