Introdução
As restrições ao uso das armas de fogo no Brasil sempre foi tema dos mais acirrados, gerando debates acalorados e defensores ferrenhos de teorias antagônicas que buscavam cada qual a seu modo uma contenção da violência. De um lado encontramos aqueles que eram contrários ao Estatuto do Desarmamento , pois apenas pessoas de bem ficariam restringidas, uma vez que bandidos sempre tiveram e continuariam a ter acesso às armas sem se importar com suas consequências, mormente por que a sua capacidade delitiva faz com que esse seja apenas um crime praticamente inexistente frente aos que são cometidos pelos que se empregam de praticar os mais diversos crimes (basta lembrarmos-nos da absorção do crime de porte de arma frente à grande maioria dos crimes que utilizam da violência). De outra banda encontramos os que defendiam que já estava na hora de restringir o uso indiscriminado de armas de fogo, pois isso estava levando o país a um colapso onde, segundo dados da Rede Desarma Brasil, em 1997 80% dos crimes eram praticados com uso de arma de fogo.
Histórico
No Brasil sempre inexistiu uma política de contenção ao uso das armas de fogo, fazendo com que a violência tomasse ares de verdadeira guerra civil (cerca de 80% dos crimes no Brasil eram cometidos fazendo-se uso dessas armas), a preocupação não era com a segurança pública, como visto nas primeiras legislações sobre o tema como o Decreto 24.602 de 6 de julho de 1934 do Governo Getúlio Vargas. A motivação deste Decreto e as legislações posteriores que o alteraram até a década de 90 eram a segurança nacional e o fortalecimento da indústria de armas, sem contemplar uma preocupação efetiva com a segurança pública (especialmente o Decreto 55.649 de janeiro de 1965, o R105 – Regulamento para o Serviço de Fiscalização da Importação, Depósito e Tráfego de Produtos Controlados pelo Ministério da Guerra).
A partir dos anos 90 com a alta exorbitante de uso de armas de fogo nos crimes mais diversos, com a vida sendo ceifada nos mais recônditos cantos e nas mais diversas hipóteses, vitimadas quase sempre por uma arma de fogo, fez com que surgissem movimentos que exigiam uma política de contenção ao uso de armas de fogo, este segundo período é motivado e orientado pela segurança pública. Em 1997, a aprovação da Lei 9.437, proposta pelo executivo, que pode ser considerada um avanço em relação ao quadro existente até então, criando o Sistema Nacional de Armas – SINARM, administrado pela Polícia Federal com o objetivo de congregar todas as informações sobre armas não restritas as Forças Armadas, além de tipificar como crime o porte ilegal de armas que até então era considerada contravenção penal. No entanto, a autorização da compra, o registro e o porte de arma e munições, por particulares, continuava fragmentado com as polícias estaduais.
Os movimentos se acirraram, ONGs passaram a realizar eventos e atos públicos que chamavam a atenção da mídia e da população, logo começaram a ter publicidade os altos índices de morte por armas de fogo e a sua relação com a violência nas mais diversas esferas, bem como a facilidade que se tinha para conseguir uma arma.
Em Julho de 2003 foi feita uma manifestação que despertou o interesse nacional (tanto de populares quanto de políticos) para uma lei de desarmamento, foi a “marcha silenciosa”, que utilizou sapatos de vítimas de arma de fogo, realizada em frente ao Congresso Nacional.
Com essa pressão popular e intensificação dos movimentos, culminando com a “marcha silenciosa” os políticos resolveram agir em atendimento aos anseios sociais e criaram uma Comissão Mista pra analisar o assunto, donde surgiu uma lei conjunta: O Estatuto do Desarmamento.
Após ser redigido pela Comissão Parlamentar Mista restava a sua aprovação nas duas casas, sendo facilmente aprovada no Senado Federal, mas encontrando obstáculos na Câmara Federal, pois existiam parlamentares que eram financiados diretamente pela indústria das armas (“lobby das armas”), recebendo o nome pejorativo de “bancada da bala”. A pressão fez com que cedessem e alguns meses após fosse aprovada a referida lei também na Câmara dos Deputados, sendo remetido novamente para o Senado, onde foi novamente aprovada e, posteriormente, sancionada pelo Presidente da República em Dezembro de 2004.
No dia 23 de outubro de 2005 toda a população foi às urnas para participar do primeiro Referendo Popular no Brasil, previsto no Estatuto do Desarmamento.. Ele colocou em votação o artigo 35 do Estatuto, que determinava que a proibição do comércio de armas e munições para civis seria decidida pela população brasileira. As campanhas se dividiram em prol do sim e do não às armas, sendo vencedor o Não com um percentual de 64%, permanecendo as empresas (estas financiaram pesado a campanha a favor da comercialização das armas) com o direito de comercializar armas de fogo.
Finalidade
O Estatuto do Desarmamento (Lei Federal 10.826/03)"dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas - SINARM, define crime e dá outras providências.”
O bem jurídico tutelado é a segurança pública e a incolumidade pública, interesses vinculados a coletividade.
A finalidade específica da lei é punir todo e qualquer comportamento irregular relacionado à arma de fogo, acessório ou munição. Conforme visto, apenas armas de fogo e seus respectivos acessórios e munições são englobados na lei, extraindo-se o conceito de arma de fogo do artigo 3º, XIII do Decreto 3.665/2000:
· Arma de fogo: arma que arremessa projéteis empregando a força expansiva dos gases gerados pela combustão de um propelente confinado em uma câmara que, normalmente, está solidária a um cano que tem a função de propiciar continuidade à combustão do propelente, além de direção e estabilidade ao projétil;
O mesmo artigo traz no seu inciso I a definição de acessórios:
· Acessório: engenho primário ou secundário que suplementa um artigo principal para possibilitar ou melhorar o seu emprego;
Ainda o artigo 3º do Decreto 3.665/2000 traz a definição de munição, conforme excerto abaixo:
“LXIV - Munição: artefato completo, pronto para carregamento e disparo de uma arma, cujo efeito desejado pode ser: destruição, iluminação ou ocultamento do alvo; efeito moral sobre pessoal; exercício; manejo; outros efeitos especiais;”
A necessidade de regulamentação do estatuto ocorreu a fim de coibir o uso indiscriminado de armas de fogo, como por exemplo, o teste psicotécnico para a aquisição e porte de armas de fogo, marcação de munição e indenização para quem entregar sua arma.
A lei proíbe o porte de armas por civis, com exceção para os casos onde haja necessidade comprovada; nesses casos, haverá uma duração previamente determinada e sujeita o indivíduo à demonstração de sua necessidade em portá-la, com efetuação de registro e porte junto à Polícia Federal (Sinarm), para armas de uso permitido, ou ao Exército (Sigma).
O artigo 6º da Lei veda o porte de arma de fogo, elencando os casos de permissão.
Dos crimes
Posse irregular de arma de fogo:
Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa.
Esse crime visa punir quem possuir ou manter (arma, acessório ou munição de uso permitido) no interior de sua residência ou em local dependente a isso ou local de trabalho onde seja responsável legal ou dono do estabelecimento. Nucci alerta para a nomenclatura, pois deveria se chamar posse irregular de arma de fogo permitido, pois há também o tipo de arma de fogo de uso restrito, com previsão no artigo 16 da Lei.
No crime do artigo 12 o tipo é possuir ou manter, vedando o transporte, o que incidirá em porte ilegal, gerando atipicidade da conduta quanto a esse crime. Necessita também analisar o termo “uso permitido”, pois se trata de uma norma penal em branco, pendente de conceituações.
A alerta deve ser feita quanto à nomenclatura, pois se confunde muito posse com porte, o que é errôneo, pois no crime de posse a arma fica estagne, pois se cuida de mantê-la sob a sua vigilância interna, guardada. Por outro lado o porte é o trânsito da arma, acessório ou munição pelo agente.
O agente apenas incide nesse tipo penal se não tiver o Registro da arma.
Omissão de Cautela:
Art. 13. Deixar de observar as cautelas necessárias para impedir que menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa portadora de deficiência mental se apodere de arma de fogo que esteja sob sua posse ou que seja de sua propriedade.
Defende a doutrina que se trata de um crime de perigo concreto, pois se faz necessário que além de existir a arma de fogo sob sua posse, fazendo-se necessário também a presença de um menor ou um deficiente mental. A posse tem que ser legal, pois caso contrário incidirá o concurso formal de crimes previsto no artigo 69 do Código Penal, respondendo por posse ilegal de arma e omissão de cautela. É crime omissivo, pois apenas existe com a ausência de cuidados. Existe uma discussão acerca do confronto desse dispositivo com o artigo 242 do Estatuto do Criança e do Adolescente que assim dispõe:
Art. 242. Vender, fornecer ainda que gratuitamente ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente arma, munição ou explosivo.
Esses tipos penais podem coexistir, pois o tipo do artigo 13 do Estatuto do Desarmamento. é uma conduta omissiva e culposa, pois ao não se observar os cuidados necessários dá margem para que a criança se aproprie da arma, ao passo que no ECA a disposição é comissiva e dolosa, pois há a efetiva entrega da arma ao menor, o que justifica até mesmo a pena majorada, naquele de 1 a 2 anos e multa, e neste de 3 a 6 anos.
O parágrafo único do artigo do Estatuto traz outra modalidade de omissão, inexistindo nesse caso a necessidade de concretude do apoderamento:
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorrem o proprietário ou diretor responsável de empresa de segurança e transporte de valores que deixarem de registrar ocorrência policial e de comunicar à Polícia Federal perda, furto, roubo ou outras formas de extravio de arma de fogo, acessório ou munição que estejam sob sua guarda, nas primeiras 24 (vinte quatro) horas depois de ocorrido o fato.
O tipo se dá com a perda, furto roubo ou qualquer outro extravio, ocasionando o sumiço da perda e não for procedido ao Boletim de Ocorrência na Polícia Civil e comunicar a PF em 24 horas da ocorrência do fato. É uma conduta de omitir às autoridades o fato ocorrido, gerando perigo e presumindo que a incidência dos efeitos do caput do artigo 13.
Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido:
Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
É um tipo penal misto alternativo, pois são várias formas de cometimento do crime. A arma deve está em trânsito para não ensejar a posse irregular (vide distinção já feita).
Portar significaria carregar consigo, transportar ao seu turno quer dizer conduzir, sendo a pessoa flagrada conduzindo uma arma para transporte irregularmente, incide no crime, sendo um crime só. Se a pessoa estiver conduzindo a arma até um ponto de entrega para fazer a entrega o fato é atípico.
A arma quebrada ou incapaz de efetuar disparos incide em crime impossível, pois o objeto criminoso não enseja perigo, e sendo o crime de perigo abstrato, não havendo periculosidade na conduta, o crime é impossível, vigorando o artigo 17 do Código Penal. Já se for relativo, ou seja, se a arma funcionar esporadicamente haverá o crime, pois configurado o perigo, segundo entendimento do STJ (Informativo 505).
O STF e o STJ tem firmado entendimento de que o porte de arma desmuniciada comete o crime de porte ilegal de arma de fogo, pois se trata de crime de perigo abstrato e presumido, bastando o simples porte para a sua configuração, desde que a arma seja eficaz.
Se o porte envolver mais de uma arma, o crime é único, pois a quantidade apenas incidirá sobre a dosimetria da pena, configurando apenas um tipo penal. No caso de arma desmontada, entende-se que a pessoa apenas incidirá no crime se a arma estiver ao alcance do agente e puder ser montada em pouco tempo.
Para o STJ, no caso do agente ser flagrado portando irregularmente armas ou munição de uso permitido juntamente com armas de uso proibido configurará crime único, recebendo a pena mais grave (no caso responderá pelo artigo 16 do Estatuto do Desarmamento.).
O parágrafo único desse artigo prevê que o crime é inafiançável, mas o STF julgou inconstitucional na Adin 3.112.
Disparo de arma de fogo:
Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime.
Exige-se que o lugar seja habitado, se o lugar for ermo não configura o crime. Nos lugares habitados mesmo que o disparo seja feito para o alto configura o crime.
No caso de portar a arma ilegalmente e efetuar o disparo, por força do princípio da consunção só será punível o crime de disparo, pois o porte é crime meio para o disparo.
O parágrafo único dizia se tratar de crime inafiançável, mas foi também declarado inconstitucional pelos mesmos motivos do artigo anterior.
Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito:
Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;
II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz;
III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;
V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório, munição ou explosivo a criança ou adolescente; e
VI – produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer forma, munição ou explosivo.
O tipo penal unificou as condutas de porte e posse de arma, tratando de arma de fogo acessório ou munição de uso restrito (armas que só podem ser usadas pelas forças armadas, algumas instituições de segurança ou por algumas pessoas habilitadas, devidamente autorizadas pelo Exército).
As Réplicas não configuram crime, pois somente caracteriza se verdadeira a arma, apenas incidindo as penas dos eventuais crimes cometidos por essa “arma falsa” não a penalidade prevista no Estatuto do Desarmamento..
Os explosivos se equiparam aos de uso restrito nesse artigo, devendo ser punida a sua fabricação e demais meios de ameaça.
Há um conflito de normas entre o inciso V do parágrafo único e o artigo 242 do ECA, mas se aplica a norma do Estatuto do Desarmamento. pelo princípio da especialidade.
Comércio ilegal de arma de fogo:
Art. 17. Adquirir, alugar, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, adulterar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
Parágrafo único. Equipara-se à atividade comercial ou industrial, para efeito deste artigo, qualquer forma de prestação de serviços, fabricação ou comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercido em residência.
São condutas já tipificadas em outras modalidades, mas o fim é comercial, industrial, o que incide no tipo. Comercial ou Industrial é especificada no parágrafo único do dispositivo. O crime se configura dentro do território nacional, caso contrário, incidirá no crime do artigo 18 do mesmo diploma legal.
Tráfico internacional de arma de fogo:
Art. 18. Importar, exportar, favorecer a entrada ou saída do território nacional, a qualquer título, de arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização da autoridade competente:
Pena – reclusão de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
O referido dispositivo segue as mesmas disposições do anterior, com as especificidades que seguem.
O fato de não mencionar os explosivos faz com que estes se insiram nos artigos 334 e 318 do CP. A competência nesses casos da será da Justiça federal, pois há interesse entre países.
Os artigos 19 e 20 tratam de agravantes nos crimes neles especificados.
COMPETÊNCIA
A competência para julgamentos dos crimes do Estatuto do Desarmamento será da Justiça Estadual, excetuados os casos previstos no artigo 18, onde os interesses de países deslocam a competência para a Justiça Federal, conforme o Inciso II do artigo 109.
REFERÊNCIAS
1. http://www.deolhonoestatuto.org.br/index.php?option=com_frontpage&Itemid=92
2. Estatuto do Desarmamento: Lei Federal 10.826, de 22 de dezembro de 2003
3. DECRETO Nº 3.665, de 20/11/2000
4. Código Penal: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
5. Constituição Federal:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/constituição. Htm