Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Incidente da desconsideração da personalidade jurídica e o CPC/2015

Exibindo página 2 de 2
Agenda 27/03/2016 às 17:19

[1] A personificação das sociedades empresárias ocorreu em razão de grande valorização do princípio da autonomia patrimonial, a partir do século XIX, surgiram manifestações contra a má utilização da pessoa jurídica, procurando com formas idôneas coibir o uso nocivo das sociedades. Na Alemanha, surgiu a Teoria da Soberania desenvolvida pelo Haussmann e também por Mossa na Itália.

A origem da teoria da desconsideração da personalidade jurídica situa-se no direito anglo-saxônico com a denominação de disregard of the Legal Entity, depois disseminada no direito norte-americano, onde recebeu o nome de lifting of the corporate veil, entre outros países como Espanha e Argentina. Foi adotada no Brasil por analogia ao artigo 135 do Código Tributário Nacional e, depois com o Código de Defesa do Consumidor (artigo 28), a Lei de infrações à Ordem Econômica (art. 18) e a Lei dos crimes praticados contra o Meio Ambiente (artigo 4º).

[2] Historicamente, Rolf Serick e Piero Verrucoli foram os primeiros e mais significativos doutrinadores a enfrentarem o problema da desconsideração da personalidade jurídica. Embora tenha tido sua gênese no sistema anglo-americano, foi o alemão Serick o principal sistematizador dessa teoria, definindo os parâmetros de sua aplicação baseando-se na jurisprudência norte-americana. Na Alemanha o tema é objeto de controvérsias até o presente momento. Várias são as correntes no direito germânico que buscam fundamentação metodológica sólida ou uma solução casuística para situações relacionadas ao assunto, as quais vão desde a justificação para a desconsideração em casos excepcionais de abuso ou fraude de um sócio ou de uma controladora, apresentando-se ainda como uma forma de aplicação direta de responsabilidade do sujeito que pratica o ilícito, sem apelo à desconsideração em si, até combinações das duas alternativas anteriores, consistindo a corrente dominante na doutrina.

[3] Trata-se do caso de um comerciante de couros e calçados, Aaron Salomon, que fundou, em 1892, a Salomon & Co. Ltd., tendo como sócios fundadores, ele mesmo, sua mulher, sua filha e seus quatro filhos. A sociedade foi constituída com 20.007 ações, sendo que a mulher e os cinco filhos tornaram-se proprietários de uma ação cada um, e as restantes 20.001, foram atribuídas a Aaron Salomon, das quais 20.000 foram integralizadas com a transferência, para a sociedade, do fundo de comércio que Aaron já possuía, como detentor único, a título individual.

Aparentemente, de acordo com as narrativas dos fatos existentes em várias obras que tratam do assunto, o preço da transferência desse fundo seria superior ao valor das ações subscritas: pela diferença, Aaron Salomon era ainda credor da Salomon & Co. Ltd., com garantia real em seu favor constituída. Com a sociedade, entretanto, vindo a entrar em insolvência e a ser dissolvida, estabeleceu-se o litígio judicial entre o próprio Aaron Salomon e ela. Tanto a High Court quanto, em grau de recurso, a Court of Appeal, deram ganho de causa à sociedade, condenando Aaron Salomon a pagar-lhe certa soma em dinheiro, ressaltando as decisões de que a sociedade seria apenas um outro nome para designar o próprio Aaron Salomon.

A High Court acreditava ser um estratagema de que Aaron se serviu para ter os lucros de uma atividade econômica sem os riscos e a responsabilidade pelas dívidas. A sociedade seria um representante (agent) de Aaron Salomon e teria direito, como todo representante, a obter do representado a soma necessária à satisfação dos direitos contraídos no interesse do representado.

A Court of Appeal, embora preferindo falar em relação fiduciária, de trust, e não em agent, chegou ao mesmo resultado.

Contudo, a House of Lords, reformando as decisões e aferrando-se aos princípios ortodoxos em matéria de pessoa jurídica, censurou asperamente aquilo que considerou incoerência das decisões recorridas. A House of Lords ponderou que, uma vez que se admite que a sociedade, por seu liquidante, possa fazer valer determinados direitos contra seu sócio principal, está-se, evidentemente, a reconhecer sua personalidade jurídica distinta; que a circunstância de estarem as poucas ações restantes em mãos de pessoas de sua família não tinha por si só o condão de afetar o fato de que a sociedade fora validamente constituída, nem o de fazer nascer contra a pessoa dos sócios deveres que, de outra forma, inexistiriam; que, também, a circunstância de virem as ações a serem transferidas durante a vida da sociedade, a uma só pessoa não afeta em nada a existência nem a capacidade de uma sociedade cuja personalidade jurídica foi reconhecida.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

É importante ressaltar a influência negativa desse caso para o desenvolvimento da Disregard Doctrine na Inglaterra que, desde então, vem aplicando rigorosamente os princípios da separação das personalidades jurídicas entre sócios e sociedade e da responsabilidade patrimonial nele consagrado. Para Verrucoli, a jurisprudência inglesa preserva bastante o privilégio da personificação das pessoas jurídicas, em que a teoria da desconsideração somente é utilizada em casos extremos. (In: SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito Brasileiro. São Paulo: LTR, 1999).

[4] No Brasil, o pioneiro a tratar do instituto foi Rubens Requião que, ao analisar os trabalhos de Serick e Verrucoli, observou que se a pessoa jurídica não podia ser confundida com as pessoas naturais que a compunham e se o patrimônio da sociedade personalizada era autônomo, seria então relativamente fácil burlar o direito dos credores do sócio, transferindo-se previamente para a sociedade todos os seus bens. A partir do momento em que tal sociedade permanecesse sob o controle desse sócio, não haveria inconveniente ou prejuízo para este que o seu patrimônio fosse administrado por aquela, de forma que assim estaria resguardado das investidas judiciais de seus credores.

[5] Outro doutrinador que deve ser merecidamente lembrado é o de Fábio Konder Comparato, que defendeu tese na qual abordava o tema da desconsideração da personalidade jurídica em concurso acadêmico para a cátedra de Direito Comercial na Universidade de São Paulo. A obra foi posteriormente publicada sob o título O Poder de Controle na Sociedade Anônima, em 1976.

[6] As penas cominadas se aplicam ao diretor, o administrador, o membro do conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que sabendo da conduta criminosa de terceiros deixa de impedir à sua prática, quando poderia ter agido para evitá-la.

[7] A essência da teoria maior é não vulgarizar a desconsideração da personalidade jurídica, assegurando que esta só deva ocorrer em casos específicos, excesso de poder, infração de lei, abuso de direito, violação do contrato ou estatuto social ou fato ou ato ilícito. Se a formulação da teoria maior pode ser considerada um aperfeiçoamento da pessoa jurídica, a teoria menor deve ser vista como questionamento de sua pertinência enquanto instituto jurídico.  Crescentemente no Brasil alguns magistrados têm aplicado a teoria menor para afastar a personalidade jurídica sem fundamentação legal, banalizando indevidamente o referido instituto.

[8] A regra do art. 50 do Código Civil vigente aplica-se a todos os ramos do direito, sendo por isso, considerada como integrante da teoria geral do direito. Fábio Ulhôa Coelho observa que tal dispositivo ocupa-se do uso fraudulento da personalidade das pessoas jurídicas, mas foge à vocação primeira qualquer esforço de codificação, que é a sistematização e atualização de seu objeto, simplesmente ignora as exceções ao princípio da autonomia jurídica dispersas pelo ordenamento jurídico.

[9] A teoria maior somente reconhece o afastamento da personalidade jurídica quando ocorrer a manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto, diferenciando-se desta forma dos demais institutos que atingem o patrimônio particular dos sócios por obrigações da sociedade. É de fato é uma teoria mais elaborada, e pela qual o juiz está autorizado a ignorar a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, como forma de coibir fraudes e abusos praticados através desta, enquanto que a teoria menor, aponta que basta o simples prejuízo do credor que já é possível afastar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica.

[10] O artigo 592 do CPC/1973 trata da fraude à execução e passou a ser disciplinado pelo artigo 792 do CPC/2015 que ampliou e aperfeiçoou a redação anterior. E ainda se harmoniza com a Súmula 375 do STJ. Frise-se que na falta de registro da penhora ou do ato constritivo patrimonial, imputa-se ao credor o ônus de provar a má-fé do terceiro adquirente, a fim de demonstrar que este tinha efetiva ciência da ação em trâmite.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!