RESUMO
A redução da maioridade penal é um tema árido, capaz de suscitar divergências e dividir opiniões. Inspirados pela pressão popular e a influência da mídia, parlamentares revisam o tópico com frequência raramente vista sobre outras matérias. Credita-se ao menor infrator parcela considerável de responsabilidade na escalada da violência que assola o país. Justiça seja feita, no entanto, por mais que seja inegável o crescente número de crianças e adolescentes flagrados como instrumento da criminalidade tais dados só sustentam a proposta de redução se analisados de forma isolada, sob a perspectiva da pressão pública. O presente texto tenta dirimir as dúvidas, apresentar fatos novos e lançar luz sobre a questão.
1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Crimes praticados ou envolvendo menores de idade costumam testar a capacidade de indignação do povo brasileiro. Comenta-se muito, pede-se mudança da legislação e, não raro, esquece-se o ocorrido até que novo fato volte a suscitar comoção pública. Longe do debate vazio, no entanto, é preciso entender o que diz a lei e se existe ou não fundamentação que justifique considerar a alteração da norma vigente.
Segundo o sistema jurídico brasileiro, a maioridade penal se dá aos 18 anos de idade. Essa norma encontra-se inscrita em três dispositivos legais:
- Artigo 27 do Código Penal;
- Artigo 104, “caput”, do Estatuto da Criança e do Adolescente;
- Artigo 228, Constituição Federal.
É necessário explicar a esta altura do presente texto que o legislador, ao estabelecer tais institutos, manteve-se fiel ao princípio de que a pessoa menor de 18 anos não possui desenvolvimento mental completo para compreender o caráter ilícito de seus atos. Ao fazê-lo, apenas ratificou uma tendência mundial. Explica o advogado Francisco Sales de Argolo em artigo científico publicado pela Universidade Federal de Santa Catarina:
De acordo com pesquisas realizadas por organismos internacionais, as estatísticas mostram que mais da metade da população mundial tem a sua maioridade penal fixada em 18 anos. A ONU realiza, a cada quatro anos, a pesquisa Crime Trends (Tendências do Crime), que constatou, em sua última versão, que os países que consideram adulto, para fins penais, pessoa com menos de 18 anos são os que apresentam baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), à exceção dos Estados Unidos e Inglaterra. (ARGOLO, 2007, p.3)
Os dados explicitados consistem em verdadeiro motivo de ponderação. Cabe reforçá-los, contudo, com outra informação destacada do citado artigo.
De acordo com as estatísticas oficiais, os crimes praticados por menores de 18 anos representam apenas 10% do total. Essa participação de menores nas infrações se dá, em grande parte, por conta da guerra de quadrilhas e do tráfico de drogas. Apesar disso, em recente pesquisa, realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), ficou claro que 57,4% dos nossos juízes são favoráveis à redução de 18 para 16 anos da maioridade penal, dados que foram lamentados por estudiosos e pesquisadores do Direito, além de sociólogos e pesquisadores dos institutos de pesquisa das causas da violência. (ARGOLO, p.4)
Pautado nessa ordem de observações é possível dimensionar o desafio imposto aos que assumem postura contrária ao clamor popular sobre a questão. É clara, por exemplo, a ideia de que os jovens de nosso tempo têm consciência dos atos praticados e, portanto, devem responder pelas infrações cometidas. A crítica é válida, diga-se, mas é imprescindível delimitar o contexto.
Frei Betto no artigo que inspirou o presente ensaio cita o filósofo Carlito Maia para quem “o problema do menor é o maior”. É uma afirmação consistente, sem dúvida. Permite conceber, por exemplo, a noção de que, se aprovada nova legislação, nada impede que facções criminosas passem a aliciar adolescentes com menos de 16 anos de idade. Sob essa perspectiva, o crime organizado poderia passar a incorporar crianças de 14, 13 ou mesmo 12 anos. Mudar-se-ia, então, mais uma vez, a normatização da maioridade?
2 - DA CULPABILIDADE DO MENOR
Não resta dúvida de que a discussão relativa à redução da maioridade penal carece ser examinada com atenção e minúcia. É preciso ponderar, por exemplo, quais são as condições que nos permitem verificar se um adolescente tem aptidão para ser culpável. Há critério estabelecido que seja satisfatório e adequado para estimar-se tal aptidão? De que forma poderemos saber se um indivíduo é provido da capacidade de discernimento entre o certo e o errado?
Sobre essas questões debruçam-se até mesmo representantes da magistratura que, como visto na pesquisa aludida, tendem a defender a redução da maioridade. A presente colocação faz referência a um dado relativamente recente, publicado no ano de 2015 em alguns noticiários brasileiros. Reunidos no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) no dia 20 de março do citado, o Colégio de Coordenadores da Infância e da Juventude do Brasil, formado por Juízes da Infância, declarou, por meio de moção, repúdio à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que recomenda a redução da maioridade penal. A PEC tramita na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
Na moção de repúdio, o Colégio de Coordenadores destaca que adolescentes que praticam ato infracional já são responsabilizados, sujeitando-se ao cumprimento de medidas socioeducativas. Frisa-se, ainda, que o maior envolvimento de adolescentes em atos violentos se dá, usualmente, pela ausência de políticas públicas eficientes nas áreas de assistência social, educação, saúde, cultura, esporte e lazer.
São informações pertinentes ao debate proposto neste ensaio. Não esgotam, entretanto, o tema. Como lembra em ensaio o juiz Éder Jorge, do Estado de Goiás, “há respeitáveis vozes defendendo a diminuição da maioridade penal, entretanto grande parte dessa corrente a condiciona à comprovação do desenvolvimento intelectual e emocional do adolescente entre 16 e 18 anos”. (JORGE, 2002, p.4).
O magistrado, no mesmo texto, cita que outras condicionantes são a “adoção do sistema biopsicológico (ou biopsicológico normativo ou misto), onde as pessoas nessa faixa etária necessariamente serão submetidas à avaliação psiquiátrica e psicológica para aferir o seu grau de amadurecimento”.
Além dos previsíveis desafios impostos por tais exigências há de se considerar quão difícil e dispendioso será torná-la real. O próprio autor tece valiosa consideração sobre a hipótese.
O grande inconveniente dessa opção está na necessidade de perícia psicológica e psiquiátrica em todo menor entre 16 e 18 anos que venha a cometer infração penal. Como é cediço, inexiste em nosso País estrutura organizacional para a realização desses exames. Em cada crime ou contravenção praticada por adolescente nessa faixa etária, ter-se-ia de providenciar perícia médico-psicológica para apurar a imputabilidade ou inimputabilidade, mesmo em se cuidando de delito de bagatela. Ora, isso atrasaria sobremaneira a instrução do processo, congestionaria a rede pública de saúde e obstaria por completo a entrega da prestação jurisdicional. De salientar que em grande parte das comarcas do interior do Brasil não há profissionais habilitados para tal. Haveria, então, necessidade de transportar os menores para centro maior, aumentando os riscos de resgate, fuga, além de considerável ônus para o Estado. (JORGE, 2002, p.5).
Considerado o exposto, determinar a responsabilidade de adolescentes, para enquadrá-los criminalmente como maiores, tornar-se-ia processo não só extremamente difícil como visivelmente dispendioso - e, por que não dizer, possivelmente impraticável.
03 – DA LEGALIDADE DA MUDANÇA
Para se entender a complexidade que envolve a discussão da possiblidade de redução da maioridade penal é preciso antes compreender o caráter pétreo que dificulta a modificação da Constituição Federal. Explicam as autoras Cláudia e Márcia Samuel Kessler:
Os artigos da CF que não podem ser reformulados estão mencionados no art. 60, §4 o, da CF. Surge, então, a discussão sobre se o art. 228, da CF, pode ser enquadrado como uma garantia ou direito individual, o que impediria a sua reforma pelo legislador ordinário. Para alguns juristas, o rol dos direitos e garantias do cidadão está relacionado apenas no art. 5º, § 2º da Constituição. Porém, para outros, como Fábio Konder Comparato, os direitos dos cidadãos não se exaurem tão somente nesse parágrafo, podendo ser admitida a coexistência de outros direitos, decorrentes de princípios estabelecidos na Constituição e de Tratados Internacionais dos quais o Brasil faça parte. Dessa forma, considera-se que é uma garantia individual do jovem a inimputabilidade, fazendo com que o artigo 228 da CF (o qual institui que “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”) seja considerado uma cláusula pétrea. De acordo com esse ponto de vista, tornar-se-ia impossível a aprovação de qualquer emenda constitucional que diminua a idade penal. (KESSLER; KESSLER, 2011, p.3)
Acerca dessa tese dirão alguns a essa altura que, se de um lado a Constituição Federal considera o menor de dezoito e maior de dezesseis anos inimputável (artigo 228), por outro, o permite exercer o direito ao voto (artigo 14, § 1º, inciso II, alínea c). A divergência sob esse ponto é tão crucial ao debate em torno do tema que já em 1990 o jurista Miguel Reale opinava a respeito do assunto, como bem lembra JORGE.
No Brasil, especialmente, há outro motivo determinante, que é a extensão do direito ao voto, embora facultativo aos menores entre dezesseis e dezoito anos, como decidiu a Assembleia Nacional Constituinte para gáudio de ilustre senador que sempre cultiva o seu ‘progressismo’... Aliás, não se compreende que possa exercer o direito de voto quem, nos termos da lei vigente, não seria imputável pela prática de delito eleitoral. (JORGE, 2002, p.4).
A discussão situa-se, portanto, no mérito do problema. Trata-se de estabelecer se o menor de dezoito anos está ou não amparado por cláusula pétrea da Constituição Federal e, não estando, se eventual mudança para atender ao apelo popular não feriria a lei máxima do país.
04 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A divergência de opiniões acerca da redução da maioridade penal deve ser vista como algo salutar para o processo democrático. Necessita ser amparada, contudo, pela divulgação de estudos técnicos que considerem perspectivas divergentes e permitam a tomada de decisões de forma madura, como reflexo do querer legítimo da sociedade e não por comoção midiática reiterada no calor da divulgação de episódios violentos.
Como se sabe, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), adequadamente aplicado, já atribui responsabilidades e determina medidas socioeducativas que abrangem advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional. Se fossem cumpridas corretamente pelo Estado, há de se convir, seriam suficientes para ressocializar o menor infrator.
REFERÊNCIAS
DE ARGOLO, Francisco Sales. Redução da maioridade penal: uma maquiagem nas causas da violência. 2007.
KESSLER, Cláudia Samuel; KESSLER, Márcia Samuel. A diminuição da maioridade penal e a influência midiática na aprovação de leis. http://www. buscalegis. ufsc. br/revistas/index. php/buscalegis/article/viewFile/12949/12513>. Acesso em 27/03/2015, v. 20, p. 143-176, 2011.
JORGE, Éder. Redução da maioridade penal. Jus Navigandi, Teresina, ano, v. 7, 2002.