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O fenômeno ainda não plácido da colaboração processual e sua entricheirada bipartição doutrinária

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Agenda 09/06/2016 às 09:22

Apesar do uso cada vez mais frequente da colaboraçnao processual para o desmantelamento da criminalidade hodierna, resiste o pensar de que tal fenômeno traria contornos indesejados ao mundo jurídico.

Com o eclodir da operação Lava Jato – que investigava o branqueamento de capitais perpetrado pelo ex-deputado federal José Janene, em Londrina –, jamais se imaginou que o emprego de determinados institutos processuais elucidaria um dos maiores desvios econômicos já concretizados em solo pátrio.

Nesse epicentro, além das diversas interceptações telefônicas realizadas, ganhou destaque, nos noticiários e no cerne acadêmico, o emprego do famigerado instrumento da colaboração processual - isso porque, ao passo do uso cada vez mais frequente para o desmantelamento da criminalidade hodierna, resiste o pensar de que tal fenômeno processual traria contornos indesejados ao mundo jurídico.

Diante deste cenário, de peleia doutrinária, passaremos a verticalizar o presente assunto. Vejamos!

O vetusto instituto da delação premiada, retratada liminarmente na Bíblia[2], fora introduzido em nosso ordenamento jurídico por intermédio das Ordenações Filipinas[3], havendo perdurado até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830.

Desmiúde, porém, que com o perpassar dos anos, e o aflorar de novas modalidades criminosas, exsurge das cinzas (tal qual a mitológica ave fênix[4]) a denotada colaboração processual[5].

Instituto que traduz a concessão de algumas vantagens – como redução da sanção penal ou, até mesmo, a inexistência de sua subsunção - àquele que confessa (sponte sua) a prática de determinado ato deletério ao mesmo passo em que pontua informações relevantes para o esclarecimento do fato espúrio[6] (como, por exemplo, a identificação dos demais autores e partícipes do ato ilícito; a localização da vítima com sua integridade preservada; a recuperação total ou parcial do produto do crime, etc[7].).     

Ocorre que, por mais simples que pareça tal fenômeno, a colaboração premiada (crownwitness) traz em seu cerne uma vertical digladiação doutrinária nos mais diversificados campos da ciência: pedagógico, filosófico (estudo do valor – axio) e, precipuamente, jurídico. 

Nessa acepção, de cunho crítico a esse instrumento, é imperioso destacar que:

1) No campo filosófico o referido mecanismo exterioriza a falência do aparato investigatório e punitivo estatal.

Nos lapidados dizeres de Hassemer, “não é permitido ao Estado utilizar os meios empregados pelos criminosos, se não quer perder, por razões simbólicas e práticas, a sua superioridade moral”[8].

Tal fato, quiçá, exponha a incapacidade do Estado frente as mais variadas formas de ações criminosas, externando, outrossim, a aceitação de sua ineficiência ao apurar ilícitos penais cada vez mais bem engendrados[9] - haja vista que a criminalidade recrudesce, cresce e se organiza e, em determinadas situações, chega a ter recursos próprios e estruturação similar ao de um governo instituído[10].

De mais a mais, o Estado, ao reconhecer a cultura antivalorativa e antipedagógica[11] de que a traição merece benefícios, acaba por transigir com os mais elementares princípios éticos (verbi gratia, os valores de justiça, equidade, dentre outros). Sem olvidar que, inclusive para os infratores da tipificação penal (sistema onde vige a lealdade como elemento basilar), a delação, por si só, é considerada abjeta.

Por isso, os lapidados dizeres do errante cavaleiro Dom Quixote de La Mancha (personagem da fantástica obra de Miguel Cervantes), de que, entre uma batalha e outra travada contra os atemorizantes moinhos de vento, “ainda que agrade a traição, ao traidor tem-se aversão”[12]

Dito isso, como indaga João Baptista Herkenhoff, “pode o Estado ter menos ética do que os cidadãos que o Estado encarcera? Pode o Estado barganhar vantagens para o preso em troca de atitudes que o degradam, que o violentam, e alcançam, de soslaio, a autoridade Estatal?”[13]

Como resposta a inquietantes indagações, trazem a sombria advertência – com estofo na Teoria Circular[14] – de que ao Estado, assim, não competiria exigir do governado um comportamento decente, haja vista que a própria legislação, por ele trazida, preceitua um procedimento indecoroso.   

2) De outro turno, na perspectiva crítica de diversos cultores do direito, questiona-se, outrossim, se tal meio espúrio é capaz de justificar o fim de combalir a criminalidade.

É que, na senda deste luminar (não uníssono), professam-se sedimentadas críticas, como:

a) a inexistência de mecanismos protetivos ao colaborador processual (bem como a de sua família), que padece da possível represália de um dos agentes delatados[15];

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b) a possível utilização, pelo colaborador, dos mecanismos jurisdicionais como forma de retaliação às pessoas delatadas;

c) o reemprego do ignóbil sistema inquisitivo, com a supervalorização da confissão do colaborador[16] e com o direcionar do processo à condenação das pessoas ligadas ao ato criminoso; e, derradeiramente,

d) o vilipêndio aos axiomas da isonomia e proporcionalidade, ao se desvirtuar a equivalência da sanção penal de acordo com a culpabilidade de cada um no caso concreto.

3) Fora a crítica hodierna acerca da voluntariedade da delação[17], haja vista que muitas das delações realizadas teriam sido feitas com o investigado já preso, seguindo a cartilha do chamado Juiz Infernal, que primeiro castiga e depois ouve (Castigatque, auditque dolos, subigitque fateri[18]).

Castiga com a prisão preventiva e sequestro de todos os bens do acusado e depois ouve a confissão – mediante uma teórica subversão dos postulados de ciências criminais (nullum crimen nulla poena sine lege) –, uma vez que esta seria a última medida a ser tomada por um cidadão que se vê de frente a uma cautelar sem prazo de duração legal e que se faz capaz de vencer até os indivíduos mais tenazes.

Desta sorte, numa tônica Shakespeariana de “ser ou não ser, eis a questão”[19], vislumbrar-se-ia a celeuma “prender para colaborar ou colaborar para não ser preso?” [20]. Isso porque, teoricamente não aceita a negociação, a instrução processual penal seguiria, sobejando em uma decisão condenatória – muitas vezes – com pena alta.

Ou seja, o império da barganha estaria a transformar o “processo penal em um mercado de pena e culpa[21]”.     

Mutatis mutandis, apesar da louvável linha de raciocínio crítica suso esboçada, cumpre obtemperar o outro cunho da moeda.

1 e 2) Em primeiro plano, o Brasil, no Direito das gentes (Law of Nations/ droit des gens / Volkerrecht), se comprometeu a adotar a colaboração processual como meio de prova em seu sistema jurídico[22]. Isso porque, apesar de sua adoção por diversas normas internas, houve o emprego triunfal deste método de colaboração processual noutros ordenamentos jurisdicionais.

Nessa conjuntura, há de se destacar o êxito do modelo anglo-saxão (common law), pautado na condução processual pelos mecanismos da plea bargaining e guilty plea – sistema que encoraja as negociações entre defesa e acusação para a solução do litígio penal – e, identicamente, nas garantias da advertência (warning)[23] e da imprescindibilidade de outros elementos probatórios no mesmo sentido da colaboração premial (corroboration).

Ademais, na mesma alheta, calha salientar o congratulado emprego deste mecanismo na sistematização romano-gêrmanica (civil law) italiana (pattegiamento). En passant, fator determinante para o debelar dos crimes organizados existentes naquela localidade – como se deu na operação Mãos Limpas (mani pulite), que ocorreu em meados da década de 90, e que em muito se assemelha à operação brasileira Lava Jato .

Para tanto, pari passu com a estruturação anglo-saxã, a solução encontrada pelo sistema do pentito fora a exigência da junção dos lapidados dizeres do declarante com elementos objetivos externos[24], de modo que se conferisse credibilidade àquilo professado pelo colaborador.

De tal arte, ao se vislumbrar o adequado uso da colaboração premial no direito comparado, bem como ao rememorar as inovações advindas da nova ordem constitucional (neoconstucionalismo)[25], conclui-se que inexiste qualquer óbice quanto à utilização deste instituto – que já teve sua validade e constitucionalidade reconhecidas de forma unânime pelo STF (HC n. 127.483-PR, Plenário, DJde 4.2.2016).

Senão vejamos.

A limine, apesar da existência de luminar antípodo, destaca-se a inviabilidade do colaborador usufruir dos mecanismos jurisdicionais como forma de retaliação às pessoas delatadas. Isso porque, com espeque no princípio do contraditório[26] - corolário do due process of law –, bem como do princípio da não culpa[27] (artigo 5°, inciso LVII, da CRFB) – dada a filtragem constitucional[28] –, assegura-se a impossibilidade de um decreto condenatório sem estar acoroçoado em demais elementos probatórios[29].

Aqui, nota-se que a presença do devido processo constitucional, precipuamente em sua dimensão substancial (substantive due process), esboroa completamente a ideia da revitalização do pérfido sistema inquisitivo.

Por demais, nem sequer há de se falar em qualquer vilipêndio ao axioma da isonomia, ou quiçá da proporcionalidade, haja vista a adoção, em nossa sistematização, da Aristotélica teoria valorativa (que possibilita uma igualdade material, com distinções justificadas). Nesta tela, reverbera-se a compatibilidade desta isonomia substancial com o princípio da individualização da pena, fundada em questão de política criminal.

Nessa alheta, diante de um “fair trial”, com espeque na Teoria dos Jogos – onde o Poder Judiciário sempre analisará se o processo ocorre de acordo com o sistema jurídico –, descabida a crítica de que o Estado estaria por transigir com os mais elementares princípios éticos.

Até porque, “todas as provas produzidas necessariamente deverão ser disponibilizadas para a defesa daqueles que tiverem sido citados, assegurando assim os princípios da ampla defesa e do contraditório”[30]

Quiçá, por isso – para uma maior compreensão –, fosse interessante permutarmos a imagem estigmatizada da delação premiada. Ou seja, a realização de uma representação positiva da colaboração processual, esboçando que o arrependimento – pautado na boa-fé subjetiva – do colaborador é o estopim para um vindouro desmantelamento de uma organização criminosa (verbi gratia), ao invés de uma abordagem crítica, onde ela é visualizada como uma traição capaz de trazer benefícios.

Diga-se de passagem, ainda que o instituto permaneça fiel na sua essência, nosso Poder Legiferante, em determinadas situações, tem optado pelo emprego de outras tipologias, como colaboração espontânea (trazida na Lei de Organizações Criminosas – L.9.034, de 03-05-1995), ao invés da tradicional delação premiada, para se furtar ao embate direto com tais ponderações antivalorativas (o que merece a breve crítica de que essas meras alterações de nomenclatura, que muitas vezes denotam mudanças fáceis, mascaram problemas)[31].

3) Com relação à voluntariedade e a espontaneidade do colaborador, não há que se trazer a conjectura de que a relativização do princípio da presunção da não culpa, por nova interpretação do Supremo Tribunal Federal[32] – onde a pena passa a ser cumprida imediatamente ao julgamento em segundo grau –, viria a constranger o acusado a colaborar.

Raciocínio similar é possível adotar com relação àquele indivíduo que já se encontra preso. Isso porque, a prisão cautelar é um mecanismo utilizado somente mediante a observância dos requisitos legais e quando estritamente necessária, uma vez que é a ultima ratio – daí, o “baixíssimo índice de provimento de habeas corpus, inclusive pelo STF, em recentes casos de presos em processo com grande repercussão nacional ou internacional”[33]

Nesse cipoal, justamente por ser essa uma das maiores preocupações do Ministério Público, adotam-se todas as medidas necessárias para que jamais haja qualquer forma de imposição para a celebração do acordo – sendo digno de nota que 80% das colaborações processuais realizadas na operação Lava Jato foram concretizadas com indivíduos que já se encontravam em liberdade.

Decerto, é por este motivo que o STF pontuou que a “liberdade que deve ter o colaborador é psíquica, e não de locomoção[34]” (Habeas Corpus n. 127.483-PR, STF, Plenário, DJ de 4.2.2016).

De outra banda, somado a isso, o sequestro dos bens do acusado não traduz um mecanismo de pressão para a colaboração, mas a garantia da consequência óbvia da perda do produto do crime, efeito civil da condenação penal – tendo, a operação Lava Jato, até o momento, repatriado R$ 2,9 bilhões de reais desviados da Petrobrás.

Diante disso, ainda que falha nossa legislação quanto à proteção dada aos colaboradores processuais[35], deveras plausível, e positiva, a adoção da delação premiada em nosso ordenamento.

Diga-se de passagem, em mera elucubração, com a proteção dos direitos fundamentais do investigado, quiçá possível sua eventual extensão para outros diversos tipos penais, a serem revisados pelo Poder Legiferante[36] - pois estamos diante de um novo instrumento de produção de provas apto a auxiliar, no due process of law, “a busca pela responsabilização daqueles que até hoje conta(va)m com a impunidade, sobretudo, por deficiências probatórias”[37] .  


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Sobre o autor
Fernando Gentil Gizzi de Almeida Pedroso

Advogado. Presidente da Comissão de Cultura da 18ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil – São Paulo (2013/2015; 2016/2018). Professor no Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade de Taubaté. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (IBRASPP), do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos (IBDH), da Fundación Internacional de Ciencias Penales (FICP – Madrid) e investigador no “International Center of Economic Penal Studies” (ICEPS – New York)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDROSO, Fernando Gentil Gizzi Almeida. O fenômeno ainda não plácido da colaboração processual e sua entricheirada bipartição doutrinária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4726, 9 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48069. Acesso em: 22 dez. 2024.

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