I – Eis os conselhos:
Em Como se faz uma tese Umberto Eco consegue demonstrar ao leitor como um livro de metodologia consegue aliar, de forma equilibrada, os contornos técnicos relacionados ao exercício de se fazer uma tese à crítica ao modelo impositivo que se assenta, paradoxalmente, na necessidade de os universitários[i] elaborarem-na.
Essa expressão crítica é demonstrada por Eco durante toda obra, contudo se consubstancia de modo mais direto logo nas primeiras páginas do livro. A introdução, por exemplo, além de expor o principal intuito de Eco, desmistificando algumas idéias enganosas que poderiam seguir o leitor, cita a chamada “universidade de massa”, isto é, aquilo que a universidade italiana, na visão do estudioso, se transformou.
É visto, por assim dizer, que tais centros recebem anualmente diversos estudantes, muitos deles sem mínimas noções atreladas ao curso que escolheram, e exigem, para conclusão das atividades científicas a elaboração de uma tese, ou seja, um “trabalho datilografado, com extensão média variando entre cem e quatrocentas laudas, no qual o estudante aborda um problema relacionado com o ramo de estudos em que pretende formar-se.” (p. 1)
O juízo crítico também é empregado quando se questiona a capacidade de estudantes de 22 a 24 anos, “ainda durante os exames universitários” (p. 2), elaborarem uma tese, pois, muitas vezes as mesmas são objetos de dedicação para maduros estudiosos que, de certa forma, a escolhem quando optam pelos cursos de especialização. Nesse sentido, algumas teses formuladas na conclusão dos estudos não revelam “algo novo”, objeto de profundas pesquisas, como é requisitado às teses de PhD, mas trazem, por outro lado, o trabalho de compilação.
Fixados estes pontos iniciais, torna-se necessário acrescentar qual o leitor a que se dirige, prioritariamente, Umberto Eco. Lendo a introdução e o primeiro capítulo do livro, fica claro que o professor se reporta aos estudantes que, na teoria, têm menos chances, seja por falta de tempo ou dinheiro, para construir um bom trabalho científico. Eco também afirma que suas palavras se destinam àqueles que, mesmo não estando nas condições ideais, “querem preparar uma tese que lhes dê certa satisfação intelectual e lhes sirva também depois da formatura.” (p. 4)
Eco aponta, na sequência, quais as quatro regras básicas para a escolha do tema: (i) que interesse ao candidato; (ii) que as fontes de consulta sejam acessíveis; (iii) que as fontes também sejam manejáveis; e (iv) que o quadro metodológico da pesquisa esteja ao alcance da experiência do candidato (p. 6). Após isso Eco parte para os detalhes das etapas do processo criativo construtor da tese. Assim, são reservados espaços para o debate acerca da “escolha do tema” (capítulo 2), “pesquisa do material” (capítulo 3), “plano de trabalho e fichamento” (capítulo 4), “redação” (capítulo 5) e “redação definitiva” (capítulo 6).
No capítulo dois, Eco discute a diferença entre vários tipos de tese, a exemplo da panorâmica (sempre mais excitante, porém perigosa), monográfica, histórica e teórica. Aborda, outrossim, o melhor modo de tocar nos temas antigos ou contemporâneos (delimitando os graus de dificuldades de cada um), além de indicar qual o tempo mínimo (seis meses) e máximo (até três anos), para a construção do trabalho, trazendo, ademais, a justificativa ligada aos prazos.
A necessidade de dominar línguas estrangeiras é relacionada aos critérios indispensáveis na escolha do tema, afinal, “Não se pode fazer uma tese sobre um autor estrangeiro que não pode ser lido no original” (p. 17). O polêmico antagonismo pintado entre tese política e científica, também é um dos pontos mais interessantes do capítulo. Eco indica quais os elementos de um estudo científico, e prova, ao dizer isso, que “Pode-se fazer uma tese política observando todas as regras de cientificidade necessárias.” (p. 24)
Afirma ser “ocioso” perguntar se é mais útil fazer uma tese com base em temas polêmicos, com intervenções diretas na realidade, ou através de uma abordagem histórico-teórica, cujo supedâneo está em autores célebres ou textos antigos. Contudo, se a pergunta vier, nas palavras de Eco, de um aluno “em crise” é interessante aconselhá-lo e alertá-lo sobre “risco de superficialidade existe principalmente para teses de caráter político (...)” (p. 25).
Diz-se que existem várias maneiras de transformar um estudo da atualidade em tema científico, uma delas se estabelece a partir de pesquisas minuciosas. É possível construir, utilizando como tema uma amostra nacional de rádios, tabelas que contenham várias informações sobre o objeto de estudo. Além do quadro proposto, afirma ser possível delimitar alguns pontos visando acentuar temas que precisam ser aprofundados pelo pesquisador. Na situação das rádios os possíveis pontos seriam “estabelecer índices de audiência” (p. 27) e “fixar o estilo lingüístico das diversas emissoras” (p. 27).
Ainda no Capítulo dois, Eco se volta para as situações nas quais os professores, ao invés de orientar o aluno, exploram-nos. A desonestidade, por parte do docente, parte da imposição de um tema que não interessa ao aluno, ou pela apoderação desleal dos frutos provindos dos trabalhos acadêmicos dos mesmos. Eco aconselha ao estudante, para evitar tais inconvenientes, pesquisar sobre o professor obtendo referências, por exemplo, ao ler seus livros e notar se cita ou não os colaboradores. “No mais, entram fatores imponderáveis de estima e confiança.” (p. 33)
O capítulo três traz o ponto, como primeiro questionamento, “quais as fontes de um trabalho científico?” Adam Smith é utilizado para esclarecer a diferença entre objeto (a sua obra) e o instrumento (os livros sobre sua obra) da maior parte das teses. Alerta-se, por outro lado, que muitas vezes o objeto é um fenômeno real e, nesse caso, “as fontes ainda não existem sob forma de textos escritos (p. 35)”. A importância das fontes é fundamental para a escolha do tema a ser abordado na tese, pois a sua inacessibilidade barra a produção científica.
Ademais, ressalta Eco a distinção de fontes de primeira mão, a exemplo da “(...) edição original ou edição crítica da obra em apreço.” (p. 39) e de segunda, representadas, por sua vez, palas traduções, antologias e resenhas de outros autores. A forma como usar uma biblioteca também é tratada no livro através do esboço de mecanismos que tendem a agilizar o trabalho do pesquisador, como o catálogo por assuntos, por autores além da ajuda - sempre bem-vinda - do bibliotecário.
Segundo Eco, os arquivos bibliográficos e de leitura são ótimas maneiras de orientar o pesquisador; primeiro, na busca por livros que deve consultar e, em segundo lugar, na análise rápida e revigorante dos livros que, efetivamente, leu. Eco acredita que as normas de citação bibliográfica são compostas pela ficha bibliográfica, de leitura, a citação de livros em nota de rodapé e a redação bibliográfica final. Além de serem funcionais, alerta Eco, essas normas determinam a “etiqueta erudita” comum nos trabalhos desse nível.
A experiência de Alessandria, cidade natal de Eco, foi imaginada para servir de exemplo sobre como é possível conseguir uma boa citação bibliográfica mesmo com pouco tempo à disposição e diante de uma biblioteca não muito bem dotada. A ordem da leitura para os textos é aconselhada de acordo com o seguinte trecho:
(...) abordar em primeiro lugar dois ou três textos críticos mais gerais, o suficiente para formar uma idéia do terreno onde está se movendo; passar depois ao autor original, procurando algo do que ele diz; a seguir, examinar o resto da literatura crítica; por fim, voltar ao autor original e reexaminá-lo à luz das novas ideias adquiridas. (p. 78 e 79)
O plano de trabalho, iniciado no capítulo quatro, é circunscrito pela escrita do título, da introdução e do índice final. As fichas, já citadas acima, servem para orientar, agilizar o trabalho do pesquisador, e são de vários tipos: “leitura de livros antigos”, “temáticas”, “por autores”, “de citação” e “de trabalho.” (p. 87-88) Eco, ademais, indica outras tantas maneiras de fichar um livro; por “indicações bibliográficas precisas”, “informações sobre o autor”, “breve (ou longo) resumo do texto ou artigo”, “citações extensas, entre aspas, do que você acha que deve citar” e, para finalizar, através de “comentários pessoais no começo, no fim e no meio do resumo”. (p. 97)
A humildade científica, tópico que fecha o capítulo quatro, é sintetizada pela percepção que o pesquisador deve ter no tocante ao aproveitamento de todas, absolutamente todas, as fontes que estiverem ao seu alcance. A seguinte passagem é marcante, pois sintetiza bem a “humildade” necessária ao pesquisador: “O fato é que precisamos ouvir com respeito a todos, sem por isso deixar de exprimir juízos de valor ou saber que aquele autor pensa de modo diferente do nosso e está ideologicamente distante de nós.” (p. 113)
Na redação, tema do capítulo cinco, fixou-se a importância sobre saber para quem se dirigir. Quanto a isso Eco indica que se deve falar, de modo metafórico “à toda humanidade”. Ao fazer isso, propõe a quebra da primazia e exclusividade do examinador. Aconselha, em seguida, falar por períodos curtos, de maneira formal, com abertura freqüente de parágrafos e sem, entre outros pontos, aportuguesar nomes próprios estrangeiros. As citações devem responder a dois critérios básicos; mostrar um texto a ser interpretado e trazer um texto que apóie a interpretação proposta pela tese. Nesse sentido, Eco traz dez regras atreladas a citações coerentes, uma delas é: “Os textos da literatura crítica só são citados quando, com sua autoridade, corroboram ou confirmam afirmação nossa.” (p. 123), outra é: “remissão ao autor e à obra deve ser clara.” (p. 125)
A importância das notas também é trazida pelo livro do professor. Assim, Eco elabora uma seqüência de motivos para o uso das notas em trabalhos científicos semelhantes às teses. Em seguida são traçadas as principais características do sistema citação-nota e autor-data, atribuindo a cada um as vantagens e desvantagens, considerando o tipo ou modelo de trabalho e a bibliografia trazida pelos exemplos. Dicas importantes, a exemplo de “Não forneça referências e fontes para noções de conhecimento geral.” (p. 140) são dadas por Eco em relação ao modo de inserir referências na redação.
O “Orgulho científico” referido por Eco indica a irritação do examinador ou alguma pessoa que tenha acesso à tese em relação ao autor que demonstra não estar à altura de abordar o que, efetivamente, foi delimitado pelo seu trabalho. Eco, no tocante a essa situação, chega a questioná-la de modo vigoroso com as seguintes palavras:
Como não está à altura? Dedicou-se meses, às vezes anos, ao tema escolhido, leu talvez tudo o que era preciso ler sobre ele, meditou, tomou notas, e vem agora com essa conversa de não estar à altura? Mas que diabo esteve fazendo todo esse tempo? Se não se sentia qualificado, não apresentasse a tese. (p. 143)
O capítulo “A redação definitiva” se refere à aprendizagem visual no sentido lato. São dadas dicas sobre o espaçamento e margens corretos, há indicações precisas de quando sublinhar e usar maiúsculas, além de se confirmar a possibilidade de dividir os parágrafos em subparágrafos para melhor orientar o leitor de acordo com as mudanças de foco levantadas pela narração.
Outros aspectos técnicos, como o uso de aspas e outros sinais, são tratados pelo capítulo, que ainda fornece a interessante noção de sinais diacríticos e transliterações, ou seja, a reprodução de letra por letra de um alfabeto para outro (Tabela 20 da página 156 traz exemplos de como transliterar alfabetos não-latinos, a posterior exemplifica o mesmo método empregado para o alfabeto grego antigo). Eco também se dispôs a dar dicas relacionadas à pontuação, trazendo vários idiomas para exemplificar. Em seguida redigiu alguns conselhos úteis para os momentos nos quais se está a fazer e revisar todo o trabalho.
A bibliografia final, o apêndice e os índices são os três últimos tópicos tratados dentro do capítulo cinco. A bibliografia e os índices são alvos de significativos comentários finais, visto que foram tratados em páginas anteriores, no processo de organização do pesquisar ao criar a tese. Informações “novas” são as referentes ao apêndice, citado, nesse ponto, pela primeira vez. Aprende-se, por exemplo, que “Via de regra, devem vir em apêndice todos os dados e documentos que tornem o texto pesado e de difícil leitura (...)” (p. 168). Assim, a lei x, fruto de análise em uma tese sobre x área do direito poderia ser acrescentada, integralmente, no apêndice.
Diante de tantas informações, um dos últimos posicionamentos de Eco é acolhedor: “Gostaria de concluir com duas observações: fazer uma tese significa divertir-se e a tese é como um porco: nada se desperdiça.” (p. 173) A diversão se une ao desafio de tentar encontrar o segredo escondido pelo autor estudado, e esse é o segundo ponto importante e esclarecedor trazido por Eco nas considerações finais, pois há de se viver a tese, com todos os seus pormenores muito bem ilustrados pelo livro, como um desafio.
A apreensão dos conselhos acima resumidos permite afirmar que o melhor de se desafiar a escrever uma tese está na consciência de que até mesmo a escolha do tema “errado” ou a tese “jogada fora” pelo estudante o marca com a insígnia do conhecimento científico, seja lá de qual área for.
II - Referência:
ECO, Umberto. Como se faz uma tese. Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2010.
[i] Referiu-se Eco, particularmente, aos Universitários italianos.