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Inconstitucionalidade da limitação de responsabilidade no transporte internacional marítimo de carga

Agenda 12/04/2016 às 12:01

Este artigo sustenta a ilegalidade e a inconstitucionalidade de qualquer modo de limitação de responsabilidade do transportador (marítimo) de cargas, uma vez que contrária ao sistema legal brasileiro como um todo e ao conceito de reparação integral.

Um tema palpitante no cenário judicioso do Direito Marítimo é a limitação de responsabilidade do transportador pelos danos causados durante a execução da obrigação contratual de transporte.

Temos firme entendimento que a limitação de responsabilidade não tem guarida no sistema legal brasileiro, notadamente em relação ao transporte internacional marítimo de carga.

Todo o sistema jurídico brasileiro é construído, corretamente, para a defesa da vítima do dano e, portanto, para o reconhecimento da reparação civil ampla e integral.

Qualquer que seja a fonte invocada para o eventual reconhecimento da limitação de responsabilidade ou qualquer que seja a justificativa para a aplicação dessa mesma ideia, ter-se-á por ofendidos o conceito de reparação civil ampla e integral e o postulado, legal e moral, de proteção à vítima do dano.

Destacamos, pois, o trabalho do Professor André Tunc, da renomada Universidade de Paris, na sua obra La Responsabilité Civile, Paris, 1981, p. 108/9, expressamente citado no V. acórdão da apelação 358.886-4, 7ª Câmara, j. 10.02.1987, relator Luiz de Azevedo, do antigo 1º TACivSP (RT 623/101) que ressaltou os deveres do juiz, instando-o à proteção da sociedade como um todo ao tratar de temas ligados às responsabilidade penal e civil, sendo que nesta última, deve ele se preocupar, principalmente, com a indenização que a vítima tem direito.

Ora, considerando tudo o que dispõe a Constituição Federal, o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, fontes legais reconhecidamente aplicáveis aos litígios envolvendo contratos de transportes marítimos de cargas, conforme ampla jurisprudência do STJ, temos que a limitação é figura anacrônica e sem sentido, verdadeiramente antagônica ao Direito como um todo.

A limitação de responsabilidade ofende, a um só tempo, o sistema legal brasileiro e a ordem jurídica constitucional, além de esvaziar preceito de índole moral relativo à justa e necessária proteção da vítima do dano, pouco importando se essa vítima for pessoa natural ou pessoa jurídica.

Reverberamos, pois, as fortes e contundentes palavras de Pizzaro: “limitar a reparação é imputar à vítima que suporte o resto dos prejuízos não indenizados. No mundo atual, a tendência é justamente de socializar os danos, alocar os custos, dividindo-os entre todos na sociedade e não somente sobre os ombros da vítima. A tendência é do ressarcimento amplo, incluindo mesmo os danos extrapatrimoniais, é do ressarcimento efetivo, quando não ressarcimento integral”. (Cláudia Lima Marques, in “A Responsabilidade do Transportador Aéreo pelo Fato do Serviço e o Código de Defesa do Consumidor – Antinomia entre norma do CDC e leis especiais”, Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, set/dez de 1992, Ed. RT, Revista do Direito do Consumidor nº 3, p. 156).

Não é de hoje que sustentamos isso e o fazemos tanto no âmbito acadêmico como no profissional, aliás, principalmente no profissional.

Carregamos como bandeira ideológica a defesa da reparação civil ampla e integral, porque acreditamos na constitucionalidade da defesa e na moralidade plena da ideia nela estampada.

Argumentos favoráveis à limitação, por mais respeitáveis que sejam, esvaziam-se quando confrontados com o primado da Justiça, razão de ser do Direito.

Vejamos, primeiramente, o caso específico do transportador marítimo de carga, cuja limitação almejada tem apenas âmbito contratual.

Fala-se em limitação puramente contratual porque no Brasil não vige qualquer uma das muitas convenções internacionais ligadas ao Direito Marítimo em vigor noutros Estados.

Com efeito, o Brasil nunca foi signatário de qualquer convenção internacional de Direito Marítimo. A única que assinou, a de Hamburgo, 1974, não foi ratificada pelo Congresso Nacional e, portanto, não incorporada ao sistema legal brasileiro.

Ora, em sendo assim e considerando que não existe qualquer regra legal interna a amparar o conceito de limitação de responsabilidade, a matéria, ao menos no que diz respeito ao Direito Marítimo, cinge-se puramente no plano contratual.

E também por isso, ou melhor, ainda mais por isso, é que não se pode de forma alguma prestigiar interpretações favoráveis à aplicação de uma norma limitadora de responsabilidade.

Se não, vejemos:

A cláusula que limita a responsabilidade do transportador marítimo de carga é inválida e ineficaz aos olhos do Direito brasileiro, porque abusiva e frontalmente contrária a ideia de reparação civil ampla e justa.

Sempre entendi que a referida cláusula é em tudo equiparada à cláusula de não indenizar e, portanto, inoperante, segundo o Enunciado de Súmula 161 do Supremo Tribunal Federal.

Ora, “não indenizar” é, em termos práticos, a mesma coisa que indenizar valor vil, sobremodo reduzido por causa da limitação.

Além da comparação direta com a cláusula de não indenizar, também sempre me posicionei (e ainda me posiciono) contra a cláusula limitativa de responsabilidade porque o contrato de transporte de carga, qualquer que seja o modal, é um contrato de adesão, com cláusulas impressas e unilateralmente impostas pelo transportador, razão pela qual injusta e, até mesmo, imoral sua aplicação em desfavor de quem foi obrigado a aderir aos termos contratuais.

Nem mesmo as convenções internacionais podem e devem ser aplicadas nos transportes internacionais, aéreos ou marítimos, pois nos marítimos tem-se que o Brasil nunca assinou qualquer convenção, salvo a de Hamburgo, nos anos setenta do século passado, mas que até hoje não foi ratificada pelo Congresso Nacional, e, nos transportes aéreos, tanto a Convenção de Varsóvia, como a de Montreal, das quais o Brasil é signatário, dispõem sobre a possibilidade de limitação tarifada, mas somente nos casos dos grandes sinistros aéreos, os acidentes de aviação, não os casos simples de faltas ou avarias de cargas, muito menos aqueles seriamente culposos.

Resumidamente, estes são os argumentos jurídicos pelos quais me oponho à mera cogitação, quiçá aplicação, a qualquer título, da cláusula limitativa de responsabilidade.


A limitação de responsabilidade é tema que periodicamente ganha destaque na literatura do Direito Marítimo. Isso porque os transportadores costumam invocá-la nas disputas judiciais relativas aos contratos de transportes de cargas inadimplidos. 

Apesar do destaque, a jurisprudência é, preponderantemente, contrária a validade e a eficácia de toda e qualquer cláusula que limita a responsabilidade do transportador marítimo.

Pesa muito em favor desse entendimento o fato de a cláusula limitativa de responsabilidade encontrar-se inserida em um contrato de adesão, como é o de transporte marítimo, implicando dirigismo contratual e abusividade explícitos.

O contrato de adesão deve ser interpretado, em caso de divergência, sempre em favor de quem aderiu. Além disso, o instrumento contratual de adesão não pode ofender o sistema legal, submetendo-se em tudo ao Direito como um todo.

O Brasil, em especial, é um país que tradicionalmente se mostra contundente em relação ao dirigismo contratual e as cláusulas abusivas.

Por isso, toda e qualquer cláusula limitativa de responsabilidade estampada unilateralmente pelo transportador no conhecimento marítimo é inválida e ineficaz, senão nula de pleno Direito.

Tendo-se em consideração que limitar a responsabilidade é o mesmo que não indenizar, afirma-se que a cláusula limitativa de responsabilidade ajusta-se perfeitamente ao disposto no Enunciado de Súmula nº 161, do Supremo Tribunal Federal: “Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar”.

Antes da Constituição Federal de 1988 e da criação do Superior Tribunal de Justiça, era o Supremo Tribunal Federal o órgão jurisdicional que dava a última palavra sobre o assunto, fincando posicionamento que até hoje e acertadamente é abraçado pelos órgãos monocráticos e colegiados do Estado-juiz.

No mesmo sentido, o Direito positivo, por meio de regra legal específica, o Decreto nº 19.473/30, liquidou a eficácia de cláusulas contratuais dessa natureza, ao impor: “(...) Reputa-se não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa dessa prova ou obrigação”.

Mas, com a introdução da lei consumerista no sistema legal brasileiro, o tema ganhou novo colorido, praticamente definitivo, no sentido de se premiar a proibição às cláusulas limitativas ou restritivas de responsabilidade, comuns nos contratos de transporte marítimo.

E a legislação consumerista é perfeitamente aplicável aos casos envolvendo obrigações de transportes de cargas, sem se falar em inteligência maximalista, porque a obrigação de transporte é modalidade de fornecimento de serviço e o transportador é um prestador de serviços em todos os sentidos. Para a incidência da lei consumerista é preciso ter em foco não o bem transportado, mas o serviço propriamente dito, o qual tem no contratante, no consignatário ou no segurador legalmente sub-rogado consumidores perfeitos, porque destinatários finais dos serviços fornecidos pelos transportadores, pouco importando os destinos finais dos bens confiados para os transportes.

Com a nova lei especial, o que antes era solucionado por meio da jusfilosofia, mediante cansativo processo de esgrima das normas vigentes no sistema legal e o uso de sofisticada hermenêutica jurídica, passou a ter tratamento melhor, normativo e expresso, fulminando qualquer dúvida a respeito. Com a promulgação do Código Civil em vigor, de 2002, o dirigismo contratual foi definitivamente vedado e ao sabor dele, ainda mais forte se tornou o repúdio às cláusulas de limitação de responsabilidade, compaginada no rol das cláusulas abusivas.

Toda cláusula que limita a responsabilidade é abusiva porque constitui ofensa ao equilíbrio contratual, mormente quando o contrato que a contém, como é o caso do contrato maritimista de transporte, é um típico contrato de adesão.

Sendo um contrato de adesão, suas cláusulas são impressas, não cabendo ao consumidor e/ou beneficiário do serviço contratado, diretamente ou por estipulação em favor de terceiro, qualquer deliberação a respeito. Sua vontade não é livre, mas orientada pela imposição do transportador, sempre unilateralmente.

O consumidor (credor da obrigação de transporte de carga) simplesmente adere às condições impostas pelo transportador marítimo, não se lhe conferida oportunidade de efetivamente manifestar sua vontade, emprestando caráter verdadeiramente unilateral ao contrato.

Mesmo sem se remeter as regras consumeristas, afirmo que o Direito brasileiro como um todo sempre se posicionou e se posiciona contra toda e qualquer cláusula abusiva, cerceadora de direitos e que, como já mencionado, tem colorido de dirigismo contratual.

E nem se diga em eventual liberdade de não contratar, pois se levando em conta que cerca de 90% do transporte global de cargas é feito por mar, pouco liberdade têm os consumidores de tais serviços, uma vez que eles precisam contratar os transportes, submetendo-se, forçosamente, às disposições contidas nos instrumentos contratuais.

Com ou sem a estampa consumerista, fato é que o Direito brasileiro não reconhece a limitação contratual, pois ela provém de cláusulas impressas em contratos de adesão, sem a livre manifestação de vontade das partes e busca amparo, no caso do modal marítimo, em convenções não assinadas e/ou não ratificadas pelo Brasil.

Assim colocada a questão, nada mais há para ser dito em sede de limitação de responsabilidade, tratando-se de mais um ponto superado, donde se estranha a insistência de os transportadores marítimos, em litígios judiciais, insistirem na tese da validade e da eficácia dessas cláusulas “hardship”, notadamente as de limitação de responsabilidade, na medida em que manifestamente contrárias ao Direito, repudiadas pela jurisprudência e eivadas de elementos negativos que atingem até mesmo o campo da moral.

Além de regras legais específicas contrárias ao dirigismo contratual, existem princípios fundamentais do Direito, uns de índole geral, outros de natureza constitucional, os quais devem ser sobremodo considerados quando da análise do tema, fulminando toda e qualquer tentativa de convalidar a abusividade intrínseca às cláusulas limitativas de responsabilidade.

Tais cláusulas ofendem fundamentos principiológicos como a eqüidade, a razoabilidade, a proporcionalidade e o bom-senso, compaginando essa ofensa mais um argumento a favor daqueles que as repudiam e as têm por nulas de pleno Direito.

A imposição de tais cláusulas, ao exclusivo alvedrio dos transportadores marítimo, faz letra morta qualquer alusão ao “pacta sunt servanda”, sendo curial notar que outro aforismo cabe na hipótese em questão: “pacta non possunt facere licita quae alias illicita sunt”.

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Relevante observar que mesmo sem se remeter às regras do Código de Defesa do Consumidor, os princípios jurídicos que regem os contratos coíbem o abuso, principalmente ao se observar o dirigismo contratual decorrente da forma adesiva de contratação. E esses princípios foram definitivamente positivados e marmorizados nas letras do Código Civil de 2002, cujo conteúdo, considerando-se a melhor hermenêutica e a interpretação sistêmica de suas regras, veda a validade das referidas cláusulas, como de toda e qualquer cláusula “hardship”, combatendo o dirigismo contratual e fortalecendo a inteligência do comentado Enunciado de Súmula 161 do Supremo Tribunal Federal.

Afinal, o Direito não se presta ao torto; e, em termos contratuais, poucas coisas são mais tortas e erradas do que as combatidas e abusivas cláusulas limitativas e/ou exonerativas de responsabilidade. Qualquer que seja a fonte legal aplicável num dado caso concreto, ou seja, Código Civil, Código de Defesa do Consumidor ou princípios gerais e fundamentais do Direito, tais cláusulas são ilegais e, mesmo, imorais, porque abusivas, cabendo ao Poder Judiciário, quando provocado, manifestar-se no sentido de se manter o entendimento vigente de tempos de antanho, hoje vitaminado por importantes ferramentas jurídicas, repudiando-se a validade e a eficácia de tais cláusulas ou, ainda mais importante, rotulando-as como nulas de pleno Direito.”.

Como disse, continuo entendendo a mesma e rigorosa coisa. Aliás, com o passar do tempo e as reiteradas vitórias judiciais no exercício da advocacia, tal convicção só fez aumentar.


Embora a jurisprudência continue pacífica no sentido de não se prestigiar a cláusula limitativa de responsabilidade, há em curso um movimento forte, patrocinado pelos transportadores marítimos em dizer que o que é errado é certo e, o que é certo, errado.

Por mais que se vistam de argumentos sedutores e aparentemente hábeis, a verdade que salta aos olhos é que a cláusula que limita a responsabilidade é, sim, uma cláusula de não indenizar.

Por isso, nunca é demais pugnar pelo não reconhecimento da cláusula limitativa de responsabilidade.

Falar em limitação de responsabilidade é falar, também, em reconhecimento da incidência das normas morais nas obrigações civis e/ou consumeritas, uma vez que limitar a responsabilidade, não raro a valores ou percentuais aviltantes, é ato afrontoso à moral que, em nosso entendimento, não pode ser de forma alguma admitido, principalmente em sede judicial.

A limitação de responsabilidade é imoral e prejudicial à economia e a decência do Direito, uma vez que permite que o ato ilícito permaneça sem punição, quebrando a regra de que aquele que causa dano à outrem deve reparar os prejuízos decorrentes com seu próprio patrimônio.

Por tal e tanto é que doutrinadores de grosso calibre, muito antes do advento do Código do Consumidor, manifestavam repúdio às ditas cláusulas, como exposto na seleção abaixo:

Hugo Simas : “Por modo tal os transportadores têm abusado das cláusulas de não responsabilidade, que não há excesso na afirmativa de Pipia de que os fretadores e armadores não têm responsabilidade nenhuma e os capitães muito pouca, pelo o que os carregadores podem dar graças a Deus e à nímia bondade daqueles, se chegar ao destino alguma cousa do que é remetido.”

José Aguiar Dias : “Sem embargo de sua utilidade, pois estimula os negócios, mediante afastamento da incerteza sobre o quantum da reparação, a cláusula limitativa muitas vezes resulta em burla para o credor. Dificilmente se dá o caso de ser o dano real equivalente à reparação prefixada, esta última, por um simulacro de perdas e danos.” (..) “Praticamente, é a cláusula exonerativa, à qual acaba por servir de argumento. As cláusulas limitativas são de uso frequente nos transoportes. Consistem, comumente, na fixação “a forfait”, de determinada soma, para constituir a indenização, em caso de perda, extravio, avaria ou atraso. (...) não temos dúvida em sustentar a sua nulidade, quando a soma arbitrariamente fixada resulte em verdadeira lesão para o credor, principalmente quando se trate de transporte, cujo contrato geralmente é de natureza a excluir a liberdade de discussão por parte do interessado no serviço.”

E Pontes de Miranda , que sobre o tema “responsabilidade do transportador”, especialmente “cláusula de irresponsabilidade”, disse: “No Decreto n.º 19.473, de 10  de dezembro de 1930, art. 1.º, 1.ª alínea, que regulou os conhecimentos de transporte de mercadorias por terra, água ou ar, e deu outras providências, estatui-se: “O conhecimento de frete — leia-se conhecimento de transporte – original, emitido por empresas de transporte por água, terra ou ar, comprova o recebimento da mercadoria e a obrigação de entregá-la no lugar de destino.”. Na 2.ª alínea, acrescenta-se: “Reputa-se não escrita qualquer cláusula restritiva, ou modificativa dessa prova ou obrigação”. Tem-se querido insinuar a diferença entre restrição ou modificação da responsabilidade do transportador, o que é sem sendo. Transportar é receber o objeto e entregá-lo tal como foi recebido. A responsabilidade pelos danos que o objeto sofreu é inclusa no dever contratual de entrega. (...) É preciso que não se admitam cláusulas de irresponsabilidade que retirariam ao contrato de transporte sua estrutura. Por outro lado, o que importa é saber-se se, na espécie, a regra jurídica invocada é “ius cognes” ou “ius dispositium” ou “ius interpretarivem”. Se a regra jurídica é cogente, não há pensar-se em qualquer permissão de cláusula de irresponsabilidade.”,

De se ver que um dos maiores tratadistas do Direito, Pontes de Miranda, lastreado na interpretação sistêmica do Direito e, especificamente, no Decreto n.º 19.473/30, já manifestava, antes mesmo do advento do Código de Defesa do Consumidor, seu inconformismo quanto as cláusulas de irresponsabilidade, defendendo, com contundência e erudição, posicionamento relativo a invalidade absoluta das mesmas.

Fazendo eco à doutrina, os Tribunais brasileiros, quase que majoritariamente, também fizeram consignar o repúdio a validação e eficácia das ditas cláusulas.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, decidiu de forma emblemática no  Recurso de Apelação n.º 274.840-Santos:

“Limitar a responsabilidade da transportadora a 100 (libras esterlinas) é, sem dúvida, infringir o artigo 1.º do Decreto n.º 19.473, de 10.12.1930, que reputa não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa da prova do recebimento da mercadoria e da obrigação de entregá-la no destino, prova que o conhecimento de frete original faz a obrigação que por ela as empresas de transporte assumem. O legislador, certamente, teve em mente que: “illud nulla pactione effici potest ne dolus praestatus” (Dig. Lib. II, Tit.XIV, § 3.º). Pode ocorrer que o extravio da mercadoria faça render quantia superior à que o transportador tiver de pagar a título de indenização. Para eliminar estímulo de extravios dolosos, a lei fulmina cláusulas de irresponsabilidade e de não indenizar.” (...) “É enganosa a doutrina que condiciona a validade das cláusulas de limitação de responsabilidade “a uma rebaja del frete, segun opciones que previamente los transportadores dan a los cargadores” (FRANCIS FARINA, Derecho Comercial Martitimo, T. II, Ed. 1948, Madrid, p. 290, cfn. fls. 81). Haveria frete com determinada percentagem para os transportes sem declaração de valor das mercadorias e frete com “the rate increased” para o transporte com a declaração daquele valor. Dir-se-á que a opção pode advir uma vantagem, se o transporte for levado a bom termo, pois os mesmos riscos terão sido corrigidos, com um frete mais barato. A limitação de responsabilidade, porém, continua dando oportunidades de extravio doloso por parte do capitão ou da transportadora, eventualmente em conluio com o embarcador ou exportador. E aquela álea não poderá ser uma compensação a justificar a validez da cláusula restritiva.”


Também elaborado antes do surgimento da lei do consumidor (e do novo Código Civil), o posicionamento do Tribunal de Justiça paulista foi construído com muita lucidez, dando ênfase, como não poderia deixar de ser, ao Decreto n.º 19.473/30 e aos mais importantes e elementares princípios e postulados gerais do Direito.


Nesse sentido, interessante decisão do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n.º 107.361-6, votação unânime, dispõe que:

“Dentro do mesmo raciocínio, ao reduzir-se o valor de uma indenização a parte insignificante do prejuízo efetivamente verificado, parece ser a negação do próprio princípio que assegura a obrigação do pagamento dessa indenização. O Supremo Tribunal, com base em texto legal que reputa não escrita “qualquer cláusula” restritiva ou modificativa da obrigação do transportador (art. 1.º, do Decreto n.º 19.473/30), proclamou, na Súmula n.º 161, a inoperância da cláusula de não indenizar, não vejo como conciliar, com esse enunciado, a degradação de ressarcimento de uma importância mais de uma centena de vezes menor do que o prejuízo efetivo, a ponto de não chegar a compensar a antecipação dos encargos financeiros necessários ao ajuizamento da demanda.”

Igual entendimento teve o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n.º 644-89.0009917-5-SP:

“Direito comeracial – Transporte marítimo – Cláusula limitativa de responsabilidade do transportador – O Decreto n.º 19.473, de 10.12.30, em seu art. 1.º, reputa não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa da obrigação e tanto equivale a limitação a valor irrisório do montante da indenização, precedente do STF.”

Limitar a responsabilidade, repita-se pela última vez, é o mesmo que não indenizar e, por via de consequência, ofender postulados e primados importantes do Direito pátrio.

Começando por princípios fundamentais do Direito, uns de índole geral, outros de natureza constitucional, todos, contudo, informadores de qualquer interpretação legal e, mais importante, aplicação do Direito.

Tais cláusulas ofendem fundamentos como a equidade, a razoabilidade, a proporcionalidade e o bom-senso.

Afinal, o Direito não se presta ao torto; e, em termos contratuais, poucas coisas são mais tortas e obscenas do que as combatidas e odiosas cláusulas limitativas e/ou exonerativas de responsabilidade. Tudo isso diante da vertiginosa velocidade de modificação, por vezes profunda, que a sociedade contemporânea passou a experimentar em seu modus vivendi, impedindo que as avencas permaneçam estáticas e imunes a tal evolução.

Nos dias correntes, impossível eventual apego a literalidade das cláusulas contratuais, desrespeitando-se princípios maiores e regras legais abertas, como as que tratam da boa-fé objetiva (art. 422, Código Civil).

Como anota com invulgar precisão Orlando Gomes: “o direito moderno não mais admite os contratos de “direito estrito”, cuja interpretação é literal. As partes contratantes devem atuar com lealdade e inspirar recíproca confiança, subordinando-se ao interesse da sociedade quanto à segurança das relações jurídicas e do aperfeiçoamento da relação negocial. ”.

Ainda mais em sentido tem a inteligência jurídica acima em se tratando de um contrato de adesão, em que as disposições são, como já se disse, impostas unilateralmente pelo transportador marítimo, de forma coativa, sem qualquer disposição de vontade por parte do contratante, refém do arbítrio e do abuso da outra parte.

Rechaçar qualquer cláusula contratual que dispõe sobre limitação de responsabilidade e dar preferência à ideia de função social das obrigações e aos princípios (regras legais) da função social, probidade e boa-fé objetiva das obrigações.


Os adversários do presente e sólido entendimento, fazem verdadeira ginástica jurídica para emprestar a cláusula limitativa de responsabilidade a moralidade que ela não tem, até por ser cláusula abusiva e que gera o desequilíbrio nas relações contratuais.

Contrariando o posicionamento sólido cós Tribunais brasileiros, incluindo os superiores, lançam luzes numa única decisão do STJ a favor da clausula, ignorando, maliciosamente, as particularidades do caso concreto que a ensejou e a sua não aplicação aos casos simples de descumprimentos obrigacionais.

Teses acerca de aplicação, por meio de sofisticada, mas vazia, interpretação sistêmica, de uma ou outra Convenção maritimista internacional, também são constantemente lançadas, tudo com o objetivo deliberado de se conquistar, num dado caso concreto, uma vantagem supostamente legal, mas que em essência é antijurídica, ilegal e imoral.


Nenhuma Convenção Internacional de natureza maritimista pode limitar a responsabilidade do transportador marítimo porque o Brasil não foi signatário de qualquer uma delas, salvo a de Hamburgo, mas que até hoje não vige no sistema legal do país porque não foi ratificada pelo Congresso Nacional.


Se a parte que litiga contra o transportador marítimo for seguradora da carga, legalmente sub-rogada após o pagamento da indenização ao segurado, o consumidor original, o credor primitivo, da obrigação de transporte, ainda mais sem sentido se torna a alegação da limitação contratual.

Isso porque a seguradora não foi parte, nem mesmo por estipulação, do contrato de transporte (com termos impostos pelo transportador marítimo, unilateralmente) e a discussão do pagamento do suposto frete “ad valorem”, cai por terra, vê-se ferido de morte.

Não pode o direito ser acutilado de forma tão traumática por uma disposição contratual, especialmente uma da qual a seguradora não foi parte efetiva.

Se a discussão em torno do chamado frete “ad valorem” já não tem sentido relativamente ao consignatário da carga – na medida em que a suposta liberdade de escolha é uma forma de coação às avessas, com oneração excessiva e inviável do custo de transporte -, ainda mais sem sentido e até mesmo imoral, além de ilegal, a imposição ao segurador sub-rogado.

Prevalecendo tal entendimento, a sub-rogação seria atingida visceralmente e, com ela, o Enunciado de Súmula 188 do STF que diz: O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro.

Ora, em termos práticos, o segurador não conseguiria o ressarcimento do valor integral que pagou ao segurado e isso geraria a afronta do seu direito e da Súmula em destaque.

O reflexo seria imediato no campo do direito securitário e, por sua vez, na economia como um todo, com desdobramentos sérios e complexos.

Tal preocupação e outras menos graves diz respeito a racionalização dos contratos de adesão e da preocupação de se coibir as cláusulas abusivas.

Nunca é demais enfatizar que a rigor, a cláusula que limita a responsabilidade, em tudo equiparada à cláusula de não indenizar, é uma cláusula abusiva por excelência.

A verdade é que a cláusula limitativa de responsabilidade, à luz do caso concreto, deve ser interpretada sempre “contra proferente”, ou seja, contra quem a proferiu, uma vez que redigida exclusivamente pelo transportador, pelo fornecedor do serviço.

Exatamente o que afirma Wanderley Fernandes: “Nos contratos de adesão, essa regra de interpretação tem sido plenamente admitida pela doutrina e pela jurisprudência. No Brasil, a regra da interpretatio contra proferentem alçou condição de regra legal de interpretação, nos termos do artigo 423 do Código Civil” (Cláusulas de exoneração e de limitação de responsabilidade, Saraiva, São Paulo: 2013).

Ora, ainda que se queira aceitar a validade e a eficácia da cláusula limitativa de responsabilidade, não se poderia deixar de ter em alça de mira tal e inafastável critério de interpretação.

Em sendo assim, aos olhos do Direito brasileiro, somente uma hipótese poderia contemplar, eventualmente, em caráter extraordinário, muito especial, a aplicação (e mesmo assim calibrada) da limitação: um grande sinistro com a perda total do navio e de todas as cargas, desde que não houvesse prova de conduta manifestamente culposa do navio e, ainda, o perdimento das cargas fosse de tal envergadura econômica, de tal impacto, que a sobrevivência da empresa restasse comprometida (tudo segundo os ditames da teoria da preservação da empresa e conforme singularidades do sinistro).

Vê-se, portanto, o caráter essencialmente excepcional de aplicação da limitação.

Nos sinistros cotidianos, caracterizados por faltas e avarias, com ou sem a presença, num caso concreto, de avaria grossa, o fato é que não se aplica a cláusula limitativa de responsabilidade, tendo-se em conta o mosaico vasto de vícios legais que ela contém.

A limitação é um benefício que, a despeito de sua abusividade, impertinência e antijuridicidade, só pode ser aplicado e restritivamente em casos extremamente pontuais e extraordinários, tendo-se por objetivo a defesa de bens maiores e, ainda assim, sem prejuízos acentuados às vítimas diretas do caso, os donos de cargas ou seu seguradores.

Tudo dentro de uma dinâmica de equilíbrio e busca da justiça, observando-se o arquétipo da função social da obrigação contratual.

Nada disso, porém, se harmoniza com o sinistro simples, grave ou não, contornado ou não por avaria grossa, muito menos a idéia de culpa em sentido estrito. A inexecução da obrigação de resultado assumida deve, a rigor, propiciar a reparação civil mais ampla possível, compensando-se a parte credora e punindo-se, a devedora.

Há componente de justiça em tal concepção do Direito e quando se defende a Justiça, defende-se a moral, experiência que a defesa da limitação de responsabilidade insiste em deixar de lado.

O transportador que não cumpre fielmente sua obrigação contratual, não pode ser contemplado com a limitação do seu dever jurídico de indenizar, especialmente por conta de disposição contratual abusiva.

Aliás, impressionante a insistência dos transportadores, em lides forenses, no sentido de buscarem, mesmo após reiteradas derrotas nos casos concretos, arrastarem os processos com recursos especiais, buscando eventuais divergências jurisprudenciais.

Tais recursos morrem nos juízos de delibações, pois o STJ não pode rediscutir provas e a limitação de responsabilidade, ao menos no transporte marítimo, é contratual, não convencional. Logo, impedido o STJ de analisar o contrato novamente e, portanto, a tese da limitação.

Mesmo assim, sem constrangimento algum, as alegações são feitas e os processos atrasam sobremodo, mais pela má-fé dos transportadores do que por culpa de qualquer outro fator.

Daí a importância dos juros moratórios de 1% ao mês de litígio, um mecanismo de calibragem capaz de conferir justiça pela demorada na solução de uma lide. A verdade é que o transportador assume uma obrigação de resultado e tem o dever de cumpri-la fielmente.

Não pode mitigar, quando da inexecução, os seus deveres, por conta de limitações tarifadas, especialmente quando estas são inseridas num contexto de flagrante abusividade.

Defender o contrário é, a um só tempo, desprestigiar a tradição jurídica brasileira, afrontar a lei e virar às costas à moral.

Causa estranheza, portanto, a insistência dos transportadores marítimos na defesa de um dispositivo contratual adesivo e manifestamente contrário ao sistema legal brasileiro como um todo.

Não bastasse isso tudo, a figura da limitação de responsabilidade, ainda que não fosse apenas contratual, é flagrantemente inconstitucional.


Não podemos deslembrar que o direito à indenização se encontra previsto no inciso V, do artigo 5º da CF que garante a indenização ampla e integral por danos materiais, morais e à imagem. Inciso, aliás, a ser aplicado em conjunto com o inciso X do mesmo artigo, presente no rol exemplificativo dos direitos e garantias fundamentais. Rol este, segundo estudiosos, que é o mais importante de todo o Direito brasileiro.

Por isso, nenhuma regra, mesmo convenção internacional, pode desprestigiar o conceito legal de reparação ampla e integral, pois não se trata de apenas de um direito de índole civil, mas garantia constitucional, portanto, algo com inegável primazia. Ora, se assim o é, com mais razão tem-se essa mesma inconstitucionalidade relativamente a uma mera norma contratual e, pior, disposto em contrato de adesão, unilateral, formado por cláusulas impressas e sem manifestação de vontade da parte, até por ser um contrato fundado no conceito de estipulação em favor de terceiro. 

Ora, se a Convenção internacional, mesmo que assinada e ratificada, não pode ser ombreada à Constituição Federal, em que pesem vozes contrárias, algumas de grande peso, favoráveis à inteligência ampla do Direito das Gentes, mesmo em detrimento do sistema legal pátrio, quanto mais uma mera norma contratual, que se encontra abaixo de qualquer regra legal civilista. 

Mas, ainda que o Brasil venha algum dia a incorporar uma Convenção Internacional Maritimista ou inserir no seu sistema legal alguma regra autorizadora da limitação de responsabilidade (tentativas em tal sentido não faltaram, faltam ou faltarão, como a emenda 56 ao Projeto de Lei do Código Comercial, ora em fase de processo legislativo na Câmara dos Deputados), impossível seu eventual reconhecimento à luz do sistema legal brasileiro, em especial a Constituição Federal.

O Ministro Francisco Resek, em sua prestigiosa obra Direito dos Tratados (Forense, São Paulo: 1984) foi muito claro ao dispor que somente existe prevalência do tratado quando o conflito diz respeito à lei editada pelo Congresso Nacional (logo, jamais quanto à Constituição). E, ousando interpretar e amplificar as palavras do Ministro, prevalência em relação as leis desde que suas disposições não acutilem direitos fundamentais, nem se oponham à interpretação sistêmica do ordenamento jurídico brasileiro.

Na mesma linha, o STF afirmou ser “inadimissível a prevalência de Tratados e Convenções Internacionais contra texto expresso na Lei Magna” (RE 0109173/87). Muito importante atentar que a referida afirmação é anterior à atual Constituição, o que só faz reforçar a idéia de solidez do entendimento a respeito do assunto.

Indenização ampla e integral é um direito público subjetivo da vítima (ou de quem lhe fizer legalmente às vezes) com fundamento constitucional, expressamente previsto na Carta Magna e, portanto, não pode ser diminuído, desprezado, limitado, por qualquer outro meio, incluindo Convenção.

E vale a pena insistir que a regra constitucional se espraiou por todo o sistema legal, de tal modo que é possível afirmar que a indenização ampla e integral é um valor do direito brasileiro, um princípio-norma, extremamente poderoso porque de viés constitucional direto.

Por isso, é certo dizer, valendo-nos da melhor hermenêutica jurídica, que a regra, em verdade, regra-conceito, que trata da reparação civil (indenização) ampla e integral, é de natureza eminentemente constitucional e, portanto, goza de prevalência na ordem jurídica, até porque sua gênese é alinhada ao rol de direitos e garantias fundamentais.

Temos por certo, portanto, que “a Constituição Federal de 1988 não prestou maiores homenagens ao Direito Internacional Público a não ser àquelas que ele realmente merece, isto porque as regras do cenário internacional não estão totalmente fixadas e dependem ainda muito do poder econômico e da importância política de cada país, assim, não é pelo simples fato de ter sido uma norma inserida  em um ato internacional que assegura que a ela o fato de ser uma norma justa ou que sua aplicação seja sempre conveniente ao Brasil”, como afirmou o mesmo e brilhante Francisco Resek em obra coordenada pelo maior constitucionalista do Brasil, Ives Gandra da Silva Martins (Interpretações da Constituição Federal de 1988, FUB, Brasília, 1988, p. 7).

Assim, seja por conta da correta interpretação do Direito Brasileiro, observando-se a hierarquia entre as normas, seja por conta da falta de justiça que a limitação de responsabilidade encerra, não há mesmo que se falar na sua aplicação à luz do sistema legal brasileiro, sendo, portanto, de se interpretar e de se aplicar com o peso da relatividade qualquer e eventual Convenção Internacional incorporada ao ordenamento jurídico pátrio ou, ainda, com a mesma razão, uma lei em tal sentido. E dentro do raciocínio “a fortiori”, o que cabe ao mais, cabe ainda mais ao menos, de tal esquadro que se nem mesmo norma convencional ou norma legal podem ser aproveitadas em relação à imposição de limitação de responsabilidade, não poderá, como de fato não pode, uma norma contratual dispor assim.

Mesmo em se tratando de aplicação da limitação apenas para os casos de sinistros derivados dos grandes riscos da navegação, aqueles sinistros com cifras cima do patamar astronômico, é preciso muita atenção quanto aos fatos particulares de um caso concreto, pois mesmos nos países onde as convenções internacionais maritimistas vigem é necessário que a figura da culpa grave do transportador não esteja presente para o benefício da limitação ser eventualmente contemplado.

E há razão ôntica nisso: as normas convencionais, criadas pelos países com grandes armadores para proteger acima de tudo os seus interesses, foram criadas quando as tecnologias de navegação e de construção de embarcações eram muito inferiores às presentes, embrionárias e, portanto, maiores os riscos.

Hoje, os riscos da navegação, a bem da verdade, são manifestamente inferiores aos riscos do passado, logo, com essa mudança de paradigma, não pode o Direito contemplar aos transportadores os mesmos benefícios contemplados no passado.

Havia no passado um sentido maior na limitação de responsabilidade, repita-se, mesmo nos casos de riscos de navegação, do que há hoje, pois as embarcações, atualmente, são construídas segundo os rigorosos padrões de engenharia entabulados como “riscos zero”.

De certo modo, no passado, a limitação era uma forma de contrabalancear a força da presunção de responsabilidade, tudo dentro de processos de busca de equilíbrio entre as partes de um dado negócio de transporte marítimo de carga.

Os riscos do transporte marítimo, ao menos como antes, como no início do século passado (apenas para não alongar muito no tempo passado), já não existem mais, ao passo que as cargas confiadas para transportes marítimos possuem valores agregados muito maiores do que os dos bens do passado, razão pela qual (ou melhor, também pela qual) não se justifica mais e escancarada e escandalosa limitação, tipo normativo contratual que afronta os mais comezinhos princípios do Direito.

Como ensina Oscar Tenório, “a vida das normas jurídicas não é eterna; elaboradas para as relações dos homens em sociedade, têm o seu destino condicionado ao substratum social que eles disciplinam e ordenam” (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, Rio de Janeiro: Borsói, 1955, p. 64), de tal modo que as mudanças sociais devem refletir na aplicação do Direito, no melhor estilo da teoria tridimensional do professor Miguel Reale.

Assim, mesmo que se queira aplicar normas contratuais (ou, mesmo, convencionais) que dispõem sobre limitação de responsabilidade, é imperioso se observar tudo o que gira em torno da navegação marítima comercial contemporânea, à obrigação de transporte de carga, aos princípios fundamentais ligados à reparação civil ampla e integral e, assim, esgrimindo-se tudo isso, não se reconhecer a aplicação e a validade das normas e cláusulas limitativas de responsabilidade, equiparando-as em tudo as de não indenizar.

Aguiar Dias, grande civilista, sempre viu com maus olhos a limitação de responsabilidade, dispondo: “o problema se prende intimamente ao da causa. Para apreciar a contraprestação, rejeita-se o valor irrisório. Não convém exigir equivalência, palavra que se presta a equívocos. O que se procura é o mínimo capaz de tornar a injustiça por demais violenta”. (Cláusula de Não Indenizar, 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 129/130).

De tudo isso, a conclusão justa e coerente é de que a indenização tarifada, ou seja, a limitação de responsabilidade, não pode mais ser aplicada em qualquer caso concreto relativo a inexecução de obrigação de transporte de carga, qualquer que seja o modal de transporte, especialmente o marítimo, porque a ordem jurídica em vigor, destacadamente a Constituição Federal, dispõe o dever de reparação atrelado ao conceito de indenização ampla e integral, máxime em se tratando de relação negocial caracterizada por dever objetivo de resultado e, ainda, gravada com o selo de consumerista, de relação de consumo (fornecimento de serviço).

Aliás, sempre é bom rememorar que a incidência do CDC, braço armado do texto Constitucional, diploma legal principiológico e que é mais um item na luta contra a limitação de responsabilidade, é amplamente aceito em relação aos transportes aéreos, de pessoas e de coisas, conforme jurisprudência dominante, incluindo o STJ, como se pode conferir no REsp 65.837-SP, 4ª Turma, j. 26-6-2001, relator: Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira e no REsp 257,833-SP, da mesma turma, j. 10-10-2000, Min. Waldemar Zveiter, entre outros muitos julgados.

Não nos sobra dúvida alguma quanto a não aplicação da limitação de responsabilidade, sendo muitos, formais e substanciais, os argumentos e os fundamentos em tal sentido.

A limitação afronta a própria Constituição Federal e deve ser, por isso mesmo, combatida via controle difuso repressivo de constitucionalidade.

A limitação de responsabilidade, como já se disse e nunca é demais repetir, é uma figura anacrônica e incompatível com o Direito do país.

Tradicionalmente rechaçada pelos tribunais brasileiros, ela fere muitas regras legais, enunciado de súmula do STF, o melhor entendimento jurisprudencial e a garantia constitucional de a reparação do dano ser ampla e integral.

Quem a defende, costuma afirmar que ela há de ser implantada no país por uma necessidade de se incentivar a navegação comercial, mediante o abrandamento do dever de reparação integral no âmbito civil do empresário.

Em outras palavras: ao invés de incentivar a navegação comercial com investimentos e reduções tributárias pontuais, o que os articuladores da limitação desejam é abrandar as responsabilidades dos armadores, de tal sorte que eles, ao contrário de todos os demais, podem causar prejuízos milionários, mas responder de forma limitada por seus danos.

A limitação prevista nos contratos marítimos de transporte, unilaterais e adesivos, manifestamente abusivos, nunca foi aceita pelo Direito brasileiro. Igualmente, a limitação da responsabilidade prevista em convenções internacionais nunca foi admitida, por conta da não adesão do Brasil.

Daí, pois, o absurdo gigantesco em querer se defender a inserção desse tipo legal no Brasil.

Outro argumento muito utilizado pelos defensores da limitação de responsabilidade é o de muitos países do primeiro mundo serem signatários das convenções internacionais que estabelecem em suas normas a tarifação da responsabilidade.

Ocorre que esses países têm frotas de armadores ou economias muito pujantes, a ponto de a eventual limitação de responsabilidade em favor dos transportadores ser mitigada pelo volume de negócios ou pela existência de interesses poliédricos, numa balança, portanto, compensatória.

O Brasil é, por seu turno, um país eminentemente “cargo”, de exportadores e importadores e praticamente sem armadores.

Logo, o eventual reconhecimento da limitação de responsabilidade somente prejudicará os legítimos interesses nacionais, públicos e privados, sem qualquer tipo de compensação.

Não há, nem haverá, mecanismo de calibragem em favor do Brasil.

O país, como um todo, só perderá com a limitação de responsabilidade.

A limitação é um benefício que, a despeito de sua abusividade, impertinência e

Existem, também como já mencionado, figuras legais constitucionais que inibem e muito a limitação de responsabilidade.

O princípio e garantia constitucional fundamental da reparação de dano integral e ampla não pode ser mitigado ou acutilado.

Nem é preciso ser habilidoso em matemática para notar os prejuízos que a limitação acarretará aos empresários, seguradores e a sociedade brasileira em geral, incluindo aí o Erário.

Os valores das indenizações previstos nos conhecimentos marítimos são tarifados em patamares ínfimos, mesmo vis, inferiores até mesmo aos critérios da Convenção de Hamburgo.

O Congresso Nacional corajosamente disse não ao governo federal dos anos 70, período de exceção política, negando-se a ratificar a assinatura presidencial na convenção.

Por isso, esse mesmo Congresso Nacional precisa ter cuidado extremo para não se deixar induzir a erro para patrocinar eventual ataque ao sistema econômico nacional, com critérios de limitação de responsabilidade mais draconianos do que os da convenção de Hamburgo.

Não faltam tentativas, via processo legislativo, de se introduzir no Brasil uma norma que no plano contratual não tem reconhecimento, eficácia ou validade pelo entendimento jurisprudencial.

Se uma eventual e hipotética norma legal for aprovada como proposta, só os armadores ganharão, ao passo que o Brasil perderá.

Nenhum benefício será dado ao Brasil, mas apenas aos armadores estrangeiros, descompromissados com as coisas de imediato interesse da sociedade brasileira.

Os patamares pequenos, insignificantes, da limitação tarifada confirmam o entendimento que sempre sustentamos que limitar a responsabilidade do transportador, sobretudo a montante baixo, é o mesmo que não indenizar, de tal modo que a súmula 188 do STF também é desprestigiada no caso de limitação. [igualmente desprestigiados o enunciado de Súmula 161 do mesmo Tribunal Superior e o art. 5º, da CF, relativamente à garantia da reparação civil ampla e integral]

A limitação em nada será aproveitada para o bem do Brasil.

Outro argumento não jurídico, puramente comercial, em favor do reconhecimento da limitação de responsabilidade quanto ao eventual barateamento do frete marítimo é sem sentido, descabido.

De fato, é a energia do mercado, as leis da oferta e da procura que ditam os valores do frete, não as normas legais. Afirmar que o frete o frete será mais baixo com a limitação de responsabilidade é algo falacioso, infantil, para não dizer mentiroso.

Pelo contrário!

Tudo será muito onerado, a começar pelo seguro de transporte.

Um dos motivos pelos quais as seguradoras podem cobrar alíquotas relativamente baixas dos segurados, importadores e exportadores brasileiros, é exatamente a possibilidade que a lei brasileira oferece de ressarcimento em regresso amplo dos prejuízos indenizados.

Com a limitação, tal possibilidade será negada e consequentemente os riscos majorados, incluindo aí os prêmios dos contratos de seguro.

Dentro da natural cadeia de repasse dos custos, é o consumidor brasileiro quem, no final, arcará com os prejuízos e, às avessas, o próprio erário, já que a balança comercial, a médio prazo será desequilibrada.

Nunca é demais lembrar que a reparação do dano, ampla e integral, é uma garantia constitucional fundamental encartada no artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais, cláusula pétrea da Constituição Federal.

Também é importante lembrar, até porque a tônica do presente trabalho, que o sistema legal brasileiro, dentro do respeito ao quanto determinado expressamente pela regra constitucional, orienta-se pelo princípio do “neminem laedere”, ou seja, que a “ninguém é dado causar dano a outrem”. Logo, não pode existir no Direito qualquer regra talhada a limitar a responsabilidade do causador do dano.

Também por isso, insisto, a regra da limitação da emenda, qualquer que seja sua fonte, é inconstitucional.

É bem verdade que no cotidiano maritimista pode-se dizer que mesmo os contratos marítimos de transportes de carga contêm, ainda que adesivos, um aparente mecanismo de calibragem, qual seja: a declaração do valor do bem transportado.

Mas, essa é uma verdade relativa, se é que assim se pode dizer, pois no mundo dos fatos, o chamado frete “ad valorem” é outra ficção, uma expediente, de certo modo duvidoso, para não dizer malicioso, com ares de armadilhas, apresentados pelos transportadores com vistas à novamente desequilibrar forças nas relações e dinâmicas obrigacionais.

Em termos práticos, não é algo fácil de levar a efeito, nem tanto pelo pagamento de um frete maior, mas pela exposição de informações que os proprietários de cargas nem sempre se sentem confortáveis em razão da legítima proteção de seus interesses empresárias.

Assim, se o pagamento do frete maior for efetuado e o transportador se obrigar pelo valor integral do bem transportado, exigindo um reajuste de procedimentos dos atores do comércio exterior e do mercado segurador, que ao menos seja garantida uma forma mais segura, privada, de declaração, vinculando apenas as partes diretamente interessadas, ou seja, o transportador e o dono da carga.

Por isso, ousamos afirmar e reafirmar que se a limitação de responsabilidade for efetivada de algum modo no sistema legal brasileiro, os danos serão praticamente irreparáveis.

O Brasil sempre se opôs à limitação de responsabilidade em favor do transportador marítimo, rotulando-a como um manifesto abuso. Manter esse posicionamento é imprescindível para a defesa da ordem jurídica, da soberania constitucional do país e para o bem da sociedade como um todo.

Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

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