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A Constituição, o princípio da livre concorrência e o sistema de mercado dual ou misto

Agenda 15/02/2004 às 00:00

Questão:

Quais são as conseqüências para o mercado da explícita previsão constitucional do princípio de livre concorrência (CF, art. 173, § 4º)? Há no direito positivo alguma lei ordinária que disciplina especialmente a matéria? Em caso afirmativo, descrever as sua diretrizes básicas.

A Constituição Federal do Brasil é o alicerce e é o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico pátrio. Seus comandos normativos supremos fixam todas as diretrizes que o direito infraconstitucional deve seguir e determina de forma direta e indireta a organização do Estado e da sociedade brasileiros.

O Direito Constitucional, como afirma ALEXANDRE DE MORAES, "é um ramo do Direito Público, destacado por ser fundamental à organização e funcionamento do Estado, à articulação dos elementos primários do mesmo e ao estabelecimento das bases de estrutura política." [1]

Segundo DE PLÁCIDO E SILVA, "o Direito Constitucional, como o mais fundamental dos Direitos Públicos, de ordem interna, enfeixa todos os princípios jurídicos, indispensáveis à organização do próprio Estado, à constituição de seu governo, dos poderes públicos, à declaração de direitos das pessoas, quer físicas, quer jurídicas, traçando assim os limites de ação do Estado, na defesa de seus precípuos objetivos e na defesa dos interesses da coletividade que o compõe. Firma, assim, todos os princípios de ordem política e de ordem geral, seja em relação aos indivíduos, que compõem a comunidade política, seja em relação a todas as instituições políticas em que se baseia a sua própria organização, como entidade política e soberana." [2]

Princípios, como salienta DE PLÁCIDO E SILVA são "as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como sustentáculo de alguma coisa. Revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixam para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Deste modo exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-se em perfeitos axiomas. Sem dúvida, significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito." [3]

Do alto de sua cátedra, JOSÉ AFONSO DA SILVA leciona que o Direito Constitucional Geral "é aquela disciplina que delineia uma série de princípios, de conceitos e de instituições que se acham em vários direitos positivos ou em grupos deles para classificá-los e sistematizá-los numa visão unitária." [4] Na esteira, o autor ensina que "o Direito Constitucional Positivo é aquele que estuda os princípios e as normas de uma Constituição que existe de fato num Estado qualquer; engloba a verificação, a análise, a interpretação e a sistematização das normas jurídico-constitucionais do Estado em questão, de acordo como estão dispostas e configuradas na Carta em vigência e conforme a sua ligação e o seu nexo com a realidade sócio-cultural existente." [5]

No tocante às prescrições normativas expressas na Carta Magna, vale dizer, de acordo com o Direito Constitucional Positivo supra mencionado, chama a atenção o art. 24, inc. I, o qual determina que: "Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar, concorrentemente, sobre: – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico."

É de bom alvitre registrar que as preocupações econômicas – e que culminaram com a previsão e a ‘criação’ de um novo ramo do direito, qual seja, o próprio direito econômico evidenciado nesta digressão e no próprio Texto Constitucional – ingressaram de maneira explícita nos textos constitucionais com a Constituição mexicana de 1917, surpreendentemente, com bastante detalhes (méritos para Emiliano Zapata e para Pancho Villa, ‘eternos’ paladinos da justiça do simpático país da América Central, no começo do Séc. XX).

No entanto, maior repercussão e impacto alcançaria a Constituição alemã, a Constituição de Weimar – até por uma questão de maior prestígio perante a comunidade internacional – promulgada em 11 de agosto de 1919, com o seu célebre capítulo sobre a Vida Econômica, paulatinamente imitado, embora com conteúdos diversos, por outros Documentos que se lhe seguiram em vários países do mundo, o Brasil, inclusive.

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Destarte, pode-se conceituar, sinteticamente, o Direito Econômico, com base nos apontamentos de DEOCLECIANO TORRIERI GUIMARÃES, como o "conjunto de normas que protegem as relações jurídicas resultantes da produção, circulação, distribuição e consumo das riquezas." [6]

Adiante, a Constituição consagra, no Título VII – Da Ordem Econômica –, em seu Capítulo I, os princípios gerais da atividade econômica, entre os quais ressalta, inserido no inc. IV, do art. 170, o princípio da livre concorrência. E o § 4º, do art. 173, estipula que: "A Lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros."

Destarte, como denotou o Ministro Carlos Velloso, do STF, no MS nº 22323-5/SP, "Observada a regra de hermenêutica, segundo a qual a norma expressa prevalece sobre a norma implícita,.. .", força é convir que a livre concorrência é um postulado que exclui qualquer outro (exceto nas situações predeterminadas pela própria Carta, como é o caso do petróleo e dos minerais nucleares e radioativos, conforme previsão do art. 177) não afeito com este paradigma. Assim, em face ao § 4º, do art. 173, a legislação infraconstitucional deve não apenas reprimir o abuso do poder econômico que vise à eliminação da concorrência, como, o que é a melhor constatação, deve estimular a livre concorrência.

Ademais, como expressa o art. 174, do Texto Magno, "Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado."

JOSÉ AFONSO DA SILVA argumenta que "A livre concorrência está configurada no art. 170, IV, como um dos princípios da ordem econômica. Ele é uma manifestação da liberdade de iniciativa e, para garanti-la, a Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo. Visam tutelar o sistema de mercado e, especialmente, proteger a livre concorrência contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista. A Constituição reconhece a existência do poder econômico. Este não é, pois, condenado pelo regime constitucional. Não raro esse poder econômico é exercido de maneira antisocial. Cabe, então, ao Estado coibir este abuso." [7]

CELSO BASTOS, por sua vez, assevera que "A livre concorrência é um dos alicerces da estrutura liberal da economia e tem muito que ver com a livre iniciativa. É dizer, só pode existir a livre concorrência onde há livre iniciativa. (...) Assim, a livre concorrência é algo que se agrega à livre iniciativa, e que consiste na situação em que se encontram os diversos agentes produtores de estarem dispostos à concorrência de seus rivais." [8]

À evidência, tem-se, pois, que o mercado não está adstrito à chamada ‘mão invisível’, aduzida por Adam Smith, no Séc. XIX. O mercado tem livre iniciativa para buscar o melhor nicho, a melhor oportunidade ou a opção que melhor lhe aprouver, no sentido da produção de riquezas. Mas, cinge-se ao respeito à livre concorrência, isto é, não há mais, salvo as hipóteses já colacionadas – monopólio do petróleo e radioativos, entre outros – a denominada ‘reserva de mercado’, tão comum antes de 1988, especialmente quanto à indústria automobilística e à informática, sem exclusão de outras áreas. Qualquer indício, possibilidade ou tentativa de eliminação da concorrência – quase sempre velada –, devem ser, por força do § 4º, do art. 173 c/c com o 170, IV, coibidos com firmeza pelo Poder Público.

Com o fito de complementar os comandos constitucionais em comento e até por expressa ‘solicitação’ da própria Constituição, exsurge pertinente legislação infraconstitucional, especialmente a Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994 (Há outras ligadas ao assunto em tela, tais como a Lei nº 8.137/90, que tipifica os "Crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo"; a Lei nº 8.176/91, que determina quais são os "Crimes contra a ordem econômica e cria o sistema de estoques de combustíveis", bem como a própria Lei nº 9.069/95, a qual cria o "Plano Real". E há, ainda, a Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962, devidamente recepcionada pela Carta de 1988, a qual "Dispõe sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo."). Deste Diploma (Lei nº 8884/94), emergem diversas diretrizes, algumas das quais, as básicas e as essenciais, estão destacadas neste texto, no intuito de se promover uma eloqüente descrição acerca das suas principais características.

Nos termos do art. 5º da Lei Complementar nº 95/98, "A ementa será grafada por meio de caracteres que a realcem e explicitará, de modo conciso e sob forma de título, o objeto da lei." Desse modo, tenha-se presente que a Lei nº 8.884/94, "Transforma o Conselho Administrativo de Defesa Econômica em autarquia, dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações a ordem econômica e dá outras providências."

O aludido Permissivo legal está dividido em IX Títulos e já no Capítulo I, do Título I, em seu art. 1º, prescreve que a finalidade da Lei é prevenir e reprimir as infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores, bem como tem por escopo reprimir o abuso do poder econômico. Esta é, pois, uma das linhas mestras do Documento legal em evidência.

No art. 3º (Capítulo I, do Título II) está prevista a constituição do Conselho Administrativo Econômico (CADE) em autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com sede e foro em Brasília, haja vista que fora criado pela Lei nº 4.137, de 10 de setembro de 1962 como órgão judicante com jurisdição nacional e estava, antes do advento da Lei nº 8.884/94, relativamente esvaziado, no que concerne às suas funções e atribuições. Seguem-se, neste mesmo Título II, mais cinco capítulos, todos versando sobre a competência do plenário, do presidente e do próprio Conselho, demonstrando as prerrogativas dos conselheiros, bem como denotando as incumbências da Procuradoria do CADE.

Mais à frente, nos arts. 13 e ss., é criada a Secretaria de Direito Econômico (SDE) – a qual trabalha em consonância com o próprio CADE e com a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEA), vinculada ao Ministério da Fazenda –, bem como são enumeradas as competências do Secretário da SEA, o qual é indicado pelo Ministro da Justiça e nomeado pelo Presidente da República.

Para que as determinações do art. 1º, logo atrás trazidas a lume, produzam efeitos – como é cediço, regra prescrevendo condutas sem previsão de sanção, dificilmente gera eficácia – o Título V, da Lei nº 8.884/94, dispõe sobre as infrações à ordem econômica. Por exemplo, no Capítulo I, está previsto que as punições (e a própria lei, como um todo) aplicam-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividades sob regime de monopólio legal.

No Capítulo II estão descritos/prescritos os atos que, independentemente de culpa e sob qualquer forma manifestados, serão capitulados como infrações à ordem econômica.

Destarte, se qualquer das pessoas logo acima elencadas limitar, falsear ou, de qualquer modo, prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa ou, ainda, dominar mercado relevante de bens ou serviços estará cometendo uma infração à ordem econômica. No art. 21 estão elencados mais de 20 (vinte) tipificações passíveis de punição e, como exemplo, destaca-se o inciso II, o qual prescreve ser uma conduta que caracteriza infração à ordem econômica o fato de se obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada (do verbo concertar – compor, ajustar). Trata-se dos atos de concentração nocivos ao bom andamento da economia e ao bom desempenho do mercado.

As fusões, aquisições, incorporações e joint ventures, como típicos atos de concentração, não são, em si, atos que configuram práticas abusivas, mas, que, no entanto, dependendo de como são conduzidos e/ou produzidos, assim poderão ser considerados. Logo, prevendo a lei tal possibilidade e instituindo mecanismos e/ou instrumentos que coíbam as práticas tipificadas como danosas à economia, então é lógico concluir que estas são disposições relevantes.

No Capítulo III, do Título V, estão presentes as punições possíveis, vale dizer, multas vultuosas, tanto para as pessoas jurídicas, como para os administradores, sem prejuízo de possíveis imputações civis, penais e administrativas inscritas noutras leis aqui não pormenorizadas (apenas mencionadas, como visto logo atrás). Outras sanções são factíveis, tais como, a publicação da decisão condenatória, a proibição de participação em licitações públicas ou, ainda, sem exclusão de outras, a inscrição no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor e até mesmo a própria cisão da sociedade.

Por fim, cumpre destacar, mesmo que de modo perfunctório, que o CADE e a SDE acompanharão e apreciarão qualquer ato que, de qualquer forma, possa prejudicar a livre concorrência ou que resulte na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, nos termos do Título VII. E, do mesmo modo, a lei prevê o chamado compromisso de desempenho, isto é, os interessados que submeteram atos e exames ao CADE deverão respeitar e implementar as regras impostas pela autarquia, no sentido de cumprirem as condições estabelecidas por esta e pela própria SDE.

Como corolário de todo o estudo e de tudo o que foi exposto, resta nítido que, hodiernamente, prevalece o chamado de sistema dual ou misto, o que significa dizer que, se de um lado está o mercado – setor privado –, livre para ‘iniciar’ e para concorrer, de outro está um centro decisório – setor público –, uma autoridade política, responsável pela elaboração jurídica, econômica e de instituições capazes de fazer valer princípios – o da livre concorrência, especialmente, sem exclusão de outros – bem como colocar em prática, justamente, as diretrizes fixadas pelas leis constitucionais e infraconstitucionais.

Tudo pelo bem do mercado, da sociedade e do próprio Estado Brasileiro.


BIBLIOGRAFIA

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo, Saraiva, 1996. 204p.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002. 807p.

BRUNO NETO, Francisco. Primeira Cartilha Acadêmica de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Ed. de Direito, 1999. 435p.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. Novo Aurélio Século XXI. O Dicionário da Língua Portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 2128p.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. 810p.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 877p.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998. 876p.

TAVARES, André Ramos. Tratado da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. São Paulo: Saraiva, 2001. 483p.

TORRIERI, Deocleciano. Dicionário Técnico Jurídico. São Paulo: Rideel, 1998, 551p.


NOTAS

01. Direito constitucional. 9. ed. São Paulo : Atlas, 2001. p. 33.

02. Vocabulário jurídico. 19. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2002. p. 270.

03. Idem. p. 639. É de boa nota destacar que existem autores, como por exemplo, ANDRÉ RAMOS TAVARES - Tratado da argüição de descumprimento de preceito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 109. - que entendem que as normas fundamentais compõem o gênero, do qual advém duas espécies, quais sejam, os princípios e as regras.

04. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo : Malheiros Editores, 1998. p. 36.

05. Idem, p. 36.

06. Dicionário técnico jurídico. São Paulo : Riedeel, 1998. p. 267.

07. Op. cit. p. 761.

08. Curso de direito constitucional. São Paulo : Celso Bastos Editor, 2002. p. 459.

Sobre o autor
Marco Aurélio Paganella

membro do Escritório Fernando, Nagao, Cardone, Alvarez Jr. & Advogados.Bacharel em Direito pela UNISA - Universidade de Santo Amaro/SP. Especialista em Direito Constitucional e em Direito Tributário pelo IICS/CEU - Instituto Internacional de Ciências Sociais/Centro de Extensão Universitária/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAGANELLA, Marco Aurélio. A Constituição, o princípio da livre concorrência e o sistema de mercado dual ou misto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 222, 15 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4823. Acesso em: 23 dez. 2024.

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