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Hermenêutica jurídica e interpretação constitucional

Agenda 18/04/2016 às 21:10

Hermenêutica jurídica estuda os procedimentos para fixação do sentido e alcance das normas, adaptando-as aos fins sociais. É atividade valorativa e pode resultar na complementação do próprio sentido da Lei.

1.        Introdução

Hermenêutica é o ramo da Filosofia que, através de processos e métodos lógicos, cuida da compreensão e interpretação de textos escritos. A palavra deriva do nome do deus grego, Hermes (hermeutikós), a quem aquele povo atribuía a origem da linguagem, além de considerá-lo patrono do entendimento humano. Por conseguinte, de forma objetiva, hermenêutica jurídica é a ciência da interpretação de textos de lei. Estuda e sistematiza os processos a serem aplicados para fixar o sentido e o alcance das normas jurídicas, seu conhecimento adequado, adaptando-as aos fins sociais.

A tarefa fundamental da hermenêutica é a construção de uma ponte entre a generalidade do enunciado da norma jurídica e a singularidade do caso ao qual se aplica. O intérprete deverá ultrapassar o significado da interpretação filológica-gramatical e, através da interpretação jurídica, transportar o enunciado genérico e abstrato ao caso concreto. Daí, afirmar-se que interpretar é o processo dialético da compreensão como atividade infinita; ou seja, a interpretação que parecia adequada pode demonstrar-se incorreta, considerando a possibilidade de novas e melhores interpretações.

No dizer de Carlos Maximiliano, “as leis são formuladas em termos gerais; fixam regras, consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. É tarefa primordial do executor (intérprete, em nossa opinião) a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o Direito. Para o conseguir se faz mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da  norma  tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito”. Continua: “Aplicar o Direito consiste no enquadrar um caso concreto em uma norma jurídica adequada. Submeter às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo adaptável a um fato determinado. Tem por objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente um interesse humano. Interpretar uma expressão do Direito não é, simplesmente, tornar claro  o respectivo  dizer,  abstratamente falando:  é, sobretudo,  revelar  o   sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma visão real”. [1]

Na opinião de Inocêncio Coelho Mártires, as normas adquirem novas possibilidades de utilização, e os julgados, a cada concretização, passam a valer, ao mesmo tempo, como precedentes e ponto de partida para futuras concretizações da norma. Essa atividade tem por escopo preservar a força dos modelos normativos, ao permitir que estes se regenerem historicamente. E acrescenta: “No âmbito da hermenêutica jurídica, por outro lado, esse enriquecimento de perspectiva, porque aumenta a capacidade de análise e de persuasão do intérprete-aplicador, acentua-lhe, concomitantemente, o dever de prestar  contas do seu trabalho interpretativo, o qual, para ser legítimo, há de ser racional,objetivo e controlável, pois nada se coaduna menos com a ideia de Estado de Direito do que a figura de um oráculo despótico ou iluminado, que esteja acima da lei e dos critérios usuais de intérpretes”. Assim, é importante que os critérios utilizados pela hermenêutica jurídica “sejam objetivos e controláveis, para que o processo de compreensão dos modelos normativos seja racionalmente comprovado, por meio de regras de interpretação, que guiarão tanto o legislador, quanto os aplicadores do direito e os membros da sociedade”.[2]

Outra observação é acerca do brocardo “in claris cessat interpretatio”, ou seja, disposições claras não comportariam interpretação; lei clara não carece de interpretação. Porém, o conceito de clareza é relativo. Segundo ainda Carlos Maximiliano, clara é uma lei cujo sentido seria expresso totalmente pelo texto. Para saber se é mesmo clara é necessário conhecer-lhe o sentido, isto é, interpretar. A verificação da clareza, portanto, ao invés de dispensar a exegese, implica-a, pressupõe o uso preliminar da mesma. Para se concluir que não existe atrás de um texto claro uma intenção diferente, “é necessário realizar prévio labor interpretativo”.[3]

Para concluir, a compreensão do grande hermeneuta Carlos Maximiliano:

            a)        “A lei não brota do cérebro do seu elaborador completa e perfeita, como um ato de vontade independente e espontânea. Em primeiro lugar, a própria vontade humana é condicionada, dominada, livre na aparência apenas”.[4]

            b)        “A atividade do exegeta não é uma só, na essência, embora desdobrada em uma infinidade de formas diferentes. Entretanto, não prevalece quanto a ela nenhum preceito absoluto: pratica o hermeneuta uma verdadeira arte, guiada cientificamente, porém, jamais substituída pela própria ciência. Esta elabora as regras, traça as diretrizes, condiciona o esforço, metodiza as lucubrações; porém, não dispensa o coeficiente pessoal, o subjetivo; não reduz a um autômato o investigador esclarecido”.

c)         “O conceito de clareza é relativo: o que a um parece evidente, antolha-se obscuro e dúbio a outro, por ser este menos atilado e culto, ou por examinar o texto sob um prisma diferente ou diversa orientação”.[5]

d)        “Não deve o intérprete alimentar a pretensão de melhorar a lei com o desobedecer às suas prescrições explícitas. Deve ter o intuito de cumprir a regra positiva, e, tanto quanto a letra o permita, fazê-la consentânea com as exigências da atualidade”.[6]  

2.         Da unicidade e denominações da interpretação

A doutrina é pacífica em relação à unicidade da interpretação. A interpretação é uma só, mas lhe são atribuídas várias denominações conforme origem, meio e finalidade em que é exercitada. Assim, a interpretação pode ser:

Quanto à origem:

.     Legislativa, quando realizada pelo próprio  poder legislativo.

.     Judicial, pelo poder judiciário no exercício da jurisdição.

.     Administrativa, pelo poder executivo no exercício do seu mister.

.     Doutrinária, pelos escritores nas obras em matéria jurídica.

Quanto ao meio:

.     Gramatical, filológica ou literal: Considera os enunciados linguísticos do texto no sentido que lhe dá o vernáculo.

.     Histórica: Considera os antecedentes históricos da norma constitucional, através da investigação dos precedentes legislativos.

.     Sistemática: O caráter de sistema intrínseco à ordem constitucional, suas relações com o próprio sistema jurídico.

.     Lógica: A finalidade da norma constitucional analisando os valores tutelados por ela.

Quanto à finalidade:

       .    interpretação declarativa: Concordância do signo da linguagem com o significado a ele atribuído. È a interpretação ao pé da letra.

       .  Restritiva: Não conformidade entre o texto e o significado a ele atribuído. Cabe ao intérprete reduzir o sentido enunciado pela norma.

.   Extensiva: Não consonância entre o texto e o significado a ele atribuído. Cumpre ao intérprete ampliar o sentido do enunciado normativo.

                3.         Hermenêutica Constitucional

As normas constitucionais também necessitam de interpretação para serem compreendidas e aplicadas. Antes da interpretação é possível que apresentem vários sentidos, dentre os quais o interprete escolherá o mais acertado. Essa escolha vem com a interpretação. Fora da interpretação não existe norma, apenas um texto, vez que não há subsunção para aplicá-lo a um caso concreto.

A interpretação constitucional é atividade precipuamente valorativa, implementada pelos métodos da hermenêutica. Tal atividade valorativa pode resultar na complementação do próprio sentido, a chamada integração da lei, nas hipóteses de lacuna, utilizando os instrumentos da analogia, equidade e princípios gerais de direito.

Diz José Joaquim Gomes Canotilho sobre os métodos de interpretação: “A questão do ‘método justo’ em direito constitucional é um dos problemas mais controvertidos e difíceis da moderna doutrina juspublicística. No momento actual, poder-se-ia dizer que a interpretação das normas constitucionais é um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela             jurisprudência com base em critérios ou premissas (filosóficas, metodológicas, epistemológicas) diferentes; mas, em geral, reciprocamente complementares”.[7]

Na opinião de Inocêncio Mártires Coelho, em razão da “variedade de meios hermenêuticos e do modo, até certo ponto desordenado, como são utilizados pelos seus operadores, o primeiro grande problema com que se defrontam os interpretes da Constituição parece residir, de um lado e paradoxalmente, nessa riqueza de possibilidade e, de outro, na inexistência de critérios que possam validar a escolha dos seus instrumentos de trabalho e resolver os eventuais conflitos entre eles, seja em função dos casos a decidir, das normas a manejar ou, até mesmo, dos objetivos que pretendam alcançar em dada situação hermenêutica, o que, tudo somado, aponta para a necessidade de complementação e restrições recíprocas, num ir e vir ou balançar de olhos que tenha seu eixo no valor justiça, em permanente configuração”.[8]

Segundo o mesmo professor Mártires Coelho, os métodos de interpretação constitucional, resumidamente são:

Método jurídico ou hermenêutico-clássico

Para os adeptos desse método, a Constituição é essencialmente uma lei e deve ser interpretada segundo as regras tradicionais da hermenêutica, articulando-se e complementando-se para revelar o seu sentido, os mesmos elementos — genético, filológico, lógico, histórico e teleológico — que são levados em conta na interpretação das leis em geral.

Tópico-problemático

A Constituição é um sistema aberto de regras e princípios que admite e exige distintas interpretações. Problema, é toda questão que, aparentemente, permite mais de uma resposta; e que, afinal, a tópica é a técnica do pensamento problemático, pode-se dizer que os instrumentos hermenêuticos tradicionais não resolvem as aporias emergentes[9] da interpretação concretizadora desse modelo constitucional e que, por isso mesmo, o método tópico-problemático representa, se não o único, pelo menos o mais adequado dos caminhos de que se dispõe para chegar à Constituição.

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Hermenêutico-concretizador

Segundo este método, a leitura de qualquer texto normativo, inclusive constitucional, inicia-se pela pré-compreensão do intérprete, a quem compete concretizar a norma a partir de uma dada situação histórica, ou seja, o ambiente em que o problema é posto a exame à luz da Constituição e não segundo critérios pessoais de justiça.

Científico-espiritual

Tem como pressuposto determinada ideia de Constituição que seus adeptos adotam como fundamento e ponto de partida para definir o método que reputam adequado  ao compreender constitucional. O que dá sustentação a este método de interpretação constitucional é a ideia de Constituição como instrumento de integração, em sentido amplo; não apenas do ponto de vista jurídico-formal, como  norma suporte e de fundamento de validade de todo o ordenamento (segundo o entendimento kelseniano); mas, também, em perspectiva política e sociológica, como instrumento de regulação de conflitos, de construção e preservação da unidade social.

Normativo-estruturante

Existe uma implicação necessária entre o programa normativo e o âmbito normativo, entre os preceitos jurídicos e a realidade por eles regulada. Uma vinculação tão estreita que a própria normatividade, atributo essencial das normas jurídicas, parece condenada a evadir-se dos textos e buscar apoio fora do ordenamento para tornar eficazes  os seus propósitos normalizadores.

Observe-se que, segundo Mártires Coelho, não é o teor literal de uma norma que regulamenta um caso concreto; mas, o órgão legislativo, o órgão governamental, o funcionário da administração pública, o tribunal, que elaboram, publicam e fundamentam a decisão regulamentadora do caso, providenciando, quando necessário, a sua implementação fática, sempre de conformidade com o fio condutor da formulação linguística dessa norma e com outros meios metódicos auxiliares da concretização.

Método da comparação constitucional

Reportando-se aos quatro métodos ou elementos desenvolvidos por Savigny — gramatical, lógico, histórico e sistemático — Peter Habeerle defende a canonização da comparatística (direito comparado) como quinto método de interpretação, se não para o Direito, em geral, ao menos e tendencialmente para a compreensão do moderno Estado constitucional, cuja geografia jurídica demanda instrumentos de análise significativamente distintos dos métodos clássicos de interpretação

4. Particularidades da Interpretação Constitucioanal.

Na maioria dos autores a interpretação constitucional possui quatro particularidade: superioridade hierárquica da Constituição; natureza da linguagem; conteúdo específico e caráter político. Detalhando as particularidades temos:

Superioridade hierárquica: A Constituição legitima e valida as normas que compõem o ordenamento jurídico. É o ápice do sitema.

Natureza da linguagem: É implementada sobre normas jurídicas providas de maior abertura e menor densidade, com a necessidade de uma operação de concretização da própria norma constitucional.

Conteúdo específico: Opera-se sobre normas jurídicas que prescrevem a constituição do próprio Estado, sua divisão territorial e exercício do poder político, assim como definição e proteção aos direitos fundamentais, inclusive os fins a serem alcançados na ordem econômica e social, técnicas de aplicação e meios de proteção das próprias normas constitucionais.

Caráter político: A interpretação constitucional executa-se sobre normas jurídicas dirigidas à legitimação e limitação do poder político, pois a Constituição legitima o poder transferido pela sociedade ao Estado, bem como limita o poder do Estado perante a sociedade.

5.         Princípios da Interpretação constitucional

            São regras de interpretação que ampliam a harmonia entre as normas e reduzem contradições. “Usualmente denominadas ‘princípios’, mas, rigorosamente assim não podem ser consideradas, porque não veiculam um valor autônomo”, na opinião de Marçal Justen Filho, para quem as técnicas hermenêuticas são: interpretação conforme à norma superior, principio da razoabilidade e principio da proporcionalidade.[10]

Para Luis Roberto Barroso, “o ponto de partida do intérprete há de ser sempre os princípios constitucionais, que são um conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. Funcionam como critérios de interpretação e também de integração nas lacunas do texto constitucional, sobretudo considerando seu caráter abstracionista. A atividade de interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie”. [11]

Os princípios da interpretação constitucional decorrem das particularidades do conteúdo e objetivos das normas constitucionais. A maioria dos doutrinadores define-os como princípios da: Supremacia da Constituição; Unidade da Constituição; Interpretação Conforme a Constituição; Presunção de Constitucionalidade; Máxima efetividade; Razoabilidade.

5.1      Supremacia da Constituição

            “Toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do Estado. Por força da supremacia constitucional, nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental”.[12]

A supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento decorre da mesma nascer do poder constituinte originário, uno e incontrastável. A interpretação constitucional tem como referencial esse pressuposto de superioridade jurídica da Constituição sobre leis e atos normativos que compõem o ordenamento jurídico. A Lei Maior, hierarquia máxima de um Direito pátrio, vincula as normas inferiores, além de constituir-se, ela própria, fundamento de validade do próprio ordenamento jurídico. A supremacia é dúplice: formal e material.

Supremacia formal:

A Constituição advém do poder constituinte originário, anterior e superior aos demais, o que lhe concede supremacia formal inacessível a qualquer outra norma jurídica. Considere-se, ainda, que o processo para modificações na Lei Maior é bem mais dificultoso que os requeridos para modificações de norma comum. Aliás, os procedimentos vêm definidos no próprio constitucional — art. 60.

Supremacia material:

Reflete a maior importância das normas constitucionais, que estrutura a organização e os fundamentos do Estado. O princípio da supremacia não se confunde com o principio da rigidez da Constituição. Segundo este, as normas constitucionais só podem ser modificadas por um processo mais qualificado e dificultoso de reforma. Refere-se exclusivamente ao processo formal de mudança constitucional. Já a supremacia, advém do fato de ser a Constituição  o ápice do ordenamento e fundante da própria ordem jurídica. Aliás, o poder constituinte originário, de onde brotou a Constituição, é que dá legitimidade ao próprio ordenamento.

O Min. Celso Melo bem acentuou o caráter de supremacia da Constituição ao proferir voto na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI  42-0-DF:

      “O princípio da supremacia da ordem constitucional — de que é consectária a rigidez normativa que                   ostentam os preceitos de nossa Constituição — permite realizar uma das múltiplas funções                                 inerentes à norma constitucional, que consiste na fundamentação do ordenamento jurídico instituído                   e positivado pela comunidade estatal. Dentro dessa concepção, reveste-se de nulidade o ato                               emanado do poder público que vulnerar, formal ou materialmente, os preceitos e princípios inscritos                   no documento constitucional. Uma lei inconstitucional é uma lei nula, desprovida,                                                 consequentemente, no plano jurídico, de qualquer validade e conteúdo eficacial”.

        O Min. Maurício Corrêa, em voto proferido na ADI 1.102-2-DF (DJU 01-12-1995, p. 41684). como relator, trouxe o testemunho de Alfredo Buzaid:

“Sempre entendeu entre nós, de conformidade com a lição dos constitucionalistas norte-americanos, que toda lei adversa à Constituição é absolutamente nula; e não simplesmente anulável. A eiva de inconstitucionalidade a atinge no berço, fere ab initio. Ela não chegou a viver. Nasceu morta”.[13]

5.2  Princípio da Unidade da Constituição

            O papel do princípio da unidade é harmonizar as normas na busca do equilíbrio, sem lhes negar completamente a eficácia. A Constituição atribui caráter sistemático ao ordenamento jurídico. Revestida de alto grau de abstração, a Lei Maior é fundamento de validade para todas as normas jurídicas. Não há hierarquia normativa, devendo os conflitos (chamados antinomias) entre normas constitucionais serem solucionados através da ponderação dos valores, com a prevalência da unidade do sistema jurídico, encabeçado pela Constituição.

Para Vittorio Cassone, “a doutrina em geral, ao examinar a moderna interpretação constitucional, ressalta a unidade da Constituição, no sentido de que o dispositivo objeto de interpretação deve ser visto dentro de um ordenamento jurídico que forma a unidade da Constituição”.[14]

            Na opinião de Luís Roberto Barroso, “o princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas. Deverá fazê-lo guiado  pela grande bússola da interpretação constitucional: os princípios fundamentais, gerais e setoriais inscritos ou decorrentes da Lei Maior”.[15] 

            Inocêncio Mártires Coelho é conclusivo:“As normas constitucionais devem ser vistas não como normas isoladas, mas como preceitos integrados num sistema unitário de regras e princípios, que é instituído na e pela própria Constituição. Em consequência, a Constituição só pode ser compreendida e interpretada corretamente se nós a entendermos como unidade, do que resulta, por outro lado, que em nenhuma hipótese devemos separar uma norma do conjunto em que ela se integra, até porque — relembre-se o círculo hermenêutico — o sentido da parte e o sentido do todo são interdependentes. [...] A rigor, esse princípio compreende e dá suporte, se não a todos, pelo menos à grande maioria dos cânones da interpretação constitucional, porque ao fim das contas ele otimiza as virtualidades do texto da Constituição, de si naturalmente expansivo, permitindo aos seus aplicadores construir as soluções exigidas em cada situação hermenêutica”.[16]  

            A unidade do ordenamento jurídico positivado  é afirmada no RE 149.992-3-SP, STF, DJU 07-02-1997, da qual transcrevemos parte da Ementa:

“Os postulados informam a teoria do ordenamento jurídico e que dão o necessário substrato doutrinário assentam-se na premissa fundamental de que o sistema de direito positivo, além de caracterizar uma unidade constitucional, constitui um complexo de normas que devem manter entre si um vínculo de essencial coerência”.

5.3  Princípio da interpretação conforme a Constituição.

            Na aplicação do direito devem-se rejeitar alternativas hermenêuticas incompatíveis com o sistema jurídico, cujo reconhecimento conduziria à necessidade de invalidar a disposição interpretada. Utiliza-se para afastar interpretações com procedência jurídica, mas, configuram-se inconstitucionais ou ilegais. “Há casos em que o sentido das palavras parece inequívoco, mas cuja adoção resultaria em conflito com norma superior. A técnica da interpretação conforme afasta a invalidação da disposição normativamente inferior por meio de interpretação harmonizada. Em vez de prestigiar o sentido das palavras, consagra-se a interpretação compatível com o sistema jurídico” (JUSTEN FILHO, p. 57).

            Na cátedra de Luis Roberto Barroso, quando não se mostra evidente a inconstitucionalidade de uma norma, entre as várias interpretações possíveis, adota-se aquela compatível e conforme a Constituição. “Uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando: a) a invalidade não seja manifesta e inequívoca; b) entre as interpretações plausíveis e alternativas, exista alguma que permita compatibilizá-la com a Constituição”.[17] 

            No RE 121.336-CE, quando o STF declarou a inconstitucionalidade do art. 10 do Decreto 2.288/86, que tratava de empréstimo compulsório na aquisição de automóvel, publicado no DJU em 26-06-1992, o Min. Celso Bastos foi claro:

“A interpretação conforme a Constituição encontra suas raízes na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Não restam dúvidas de que a norma para ser constitucional há de ter pelo menos um dos seus sentidos em consonância (compatível) com a Lei Maior. O princípio da interpretação conforme a Constituição tem sua particularidade fixada no recurso que a Corte Suprema vai buscar para apurar essa conformidade. Trata-se de um recurso extremo que busca dotar de validade a norma tida como inconstitucional. O intérprete, depois de esgotar todas as interpretações convencionais possíveis e não encontrando uma interpretação constitucional da mesma, mas também não contendo a norma interpretada nenhuma violência à Constituição Federal, vai verificar se é possível pelo influxo da norma constitucional levar-se a efeito algum alargamento ou restrição da norma que a compatibilize com a Carta Maior. Todavia, tal alargamento ou restrição da lei não deve ser revestido de uma afronta à literalidade da norma ou à vontade do legislador”.   

Já o Min. Moreira Alves, no Rp 1.417-7, DJU 15-14-1988, Lex JSTF 117/224, manifestou-se da seguinte forma:

“O princípio da interpretação conforme a Constituição é princípio que se situa no âmbito do controle da inconstitucionalidade, e não apenas simples regra de interpretação. A aplicação desse princípio sofre, porém, restrições, uma vez que declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o STF — em sua função de  Corte Constitucional, atua como legislador negativo, mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída pelo Poder Legislativo”.

            O Min. Sepúlveda Pertence manifestou, no RTJ 149, p. 275, o seguinte:

“Na pratica do controle da constitucionalidade de normas, as leis mal redigidas são um campo de eleição para o exercício do dogma fundamental de interpretar conforme a Constituição: se o texto legal é equívoco, por deficiência técnica de sua formulação, dentre os significados possíveis dela há de inclinar-se o intérprete pelo que harmonize com a Lei Fundamental”.

            Ao utilizar o princípio da interpretação conforme a Constituição, o texto continua íntegro, mas sua aplicação ficará restrita ao sentido declarado pelo Tribunal.  Este princípio expressa que qualquer dúvida em relação à constitucionalidade de uma norma é resolvida em favor da primazia do mandamento contido na Constituição. A Constituição brasileira adota dois sub-princípios:

            a) De origem norte-americana, funcionando como critério de interpretação, declara que a norma jurídica somente será declarada inconstitucional se a invalidade for manifesta e inequívoca.

            b) Com base no direito alemão, veio com o artigo 27 da lei nº 9.868/99: A norma jurídica não deve ser declarada inconstitucional quando possa ser interpretada em consonância com a Constituição, de maneira que o órgão judicial elimine as possibilidades de interpretação incompatíveis com o ordenamento constitucional.

5.4      Princípio da Presunção de Constitucionalidade

            Os poderes que constituem o Estado situam-se no mesmo plano de igualdade. Os atos oriundos de cada um situam-se no mesmo plano, de forma recíproca, a priori com presunção de validade. Tal presunção pode ser elidida quando a afronta à Constituição mostra-se evidente, como declarado pelo Min. Marco Aurélio, no RE 150.764, j. 16-12-1992:

“É certo que somente devemos declarar a inconstitucionalidade quando o conflito se mostra realmente frontal, evidente (...) ou convertida em presunção absoluta de validade, em decorrência da declaração de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade”.  

            Inocêncio Mártires Coelho complementa:

(...) O princípio da presunção de constitucionalidade das leis, a significar que toda lei, à partida, é compatível com a Constituição e assim deve ser considerada, até judiciosa conclusão em contrário; ou, mais precisamente, que a inconstitucionalidade não deve ser presumida, antes deve ser provada, de modo cabal, irrecusável e incontroverso (STF Rp 1.417-DF, RTJ 126, p. 48/72,66).

                        Na opinião de Vittorio Cassone, “a presunção de constitucionalidade das leis consiste num elemento subjetivo ofertado pela Constituição, a que se deve dar a devida valoração no sentido de prevalecer sobre o elemento subjetivo de interpretação das leis, este ao sabor das tendências doutrinárias, por mais respeitáveis que sejam”.[18] 

5.5      Princípio da máxima efetividade

            Diz o princípio que a qualquer norma ou dispositivo da Constituição submetido à hermenêutica deve ser atribuído o sentido que lhe conceda maior eficácia, vedando a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade. A eficácia é ínclita a todas as normas constitucionais. Entretanto, no processo da busca dessa máxima efetividade deve-se considerar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, além daqueles princípios gerais emanados da própria Constituição.

            Para conclusão, a doutrina alemã de Konrad Hesse, traduzida por Gilmar Mendes: “[...] O Direito Constitucional deve explicitar as condições sob as quais as normas constitucionais podem adquirir a maior eficácia possível, propiciando, assim, o desenvolvimento da dogmática e da interpretação constitucional. Portanto, compete ao Direito Constitucional realçar, despertar e preservar a vontade da Constituição que, indubitavelmente, constitui a maior garantia de sua força normativa. Essa orientação torna imperiosa a assunção de uma visão crítica pelo direito Constitucional, pois nada seria mais perigoso do que permitir o surgimento de ilusões sobre questões fundamentais para a vida do Estado”.[19]        

5.6      Princípios decorrentes da evolução político-social[20]

Ocorre quando a sociedade, no transcorrer pendular dos tempos, decide por novas formas de organização, exercício do poder e controle político-administrativo. A história do Brasil redesenha-se com a emancipação, república e outros fatos nacionais. Na última metade do século XX (1964) ocorreu ruptura na condução política, que prosseguiu até 1985, finalizando com a redemocratização. Em 1988 foi promulgada a chamada Constituição Cidadã, conduzida pelo facho da redemocratização. Os novos valores e referenciais da Carta de 1988 já vêm descritos no preâmbulo quando define ao Estado Democrático recém-instituído a responsabilidade constitucional de garantir e “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos”[21]. Por conta dos novos rumos redesenhou-se nova matriz de direitos, assegurados, sobretudo, por novos princípios constitucionais implícitos ou explícitos, entre os quais o princípio da Justiça.

O termo Justiça possui no ordenamento jurídico-democrático multidimensão, estendendo-se ao direito material e processual. Prima pela proteção e zelo aos direitos fundamentais individuais e coletivos, tendo como referencial a dignidade da pessoa humana. É um princípio que se esparrama sobre a prática e, principalmente, sobre os resultados finais dos processos jurídicos e administrativos. É o referencial das instituições no Estado democrático de direito. É nessa concepção que o principio da Justiça é apresentado no preâmbulo da Constituição Federal como um dos valores supremos “de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito, fundada na harmonia social…”.

Por outro lado, após a Constituição de 1998, observa-se certa relativização do princípio do interesse público e sua indisponibilidade. Por não ser objeto de pertencimento é indisponível; entretanto, experimenta nova roupagem em decorrência da prevalência da novel compreensão de que os interesses públicos não existem de forma autônoma, como um fim em si mesmo. Mas, necessariamente, tendo como perspectiva maior a dignidade da pessoa humana. Compensa conhecer a concepção negativa do interesse público na visão de Marçal Justen Filho: Interesse público não se confunde com interesse de Estado. “É público porque atribuído ao Estado, é atribuído ao Estado por ser público. Como decorrência, todo interesse público seria estatal, e todo interesse estatal seria público. Essa concepção é incompatível com a Constituição; a maior evidência reside na existência de interesse público não estatal (as organizações não governamentais)”. Segundo o autor, não é possível definir interesse público a partir da identidade do seu titular, concluindo que: “É público não por ser titularidade do Estado, mas é atribuído ao Estado por ser público”.

As atividades estatais no Estado Democrático de Direito  subordina-se a um critério fundamental que é anterior à supremacia do interesse público. Trata-se da indisponibilidade dos direitos fundamentais. Assim, uma decisão produzida por meio de procedimentos satisfatórios e com respeito aos direito fundamentais e aos interesses legítimos poderá ser reputada como traduzindo o “interesse público”. Mas, não legitimará mediante a invocação a esse interesse publico, e sim porque compatível com os direitos fundamentais (JUSTEN FILHO, p. 45).[22]

Já a segurança jurídica “cuida de evitar alterações surpreendentes que instabilizem a situação dos administrados e de minorar os efeitos traumáticos que resultem de novas disposições jurídicas que alcançariam situações em curso. O Direito propõe-se a ensejar uma certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social. Daí o chamado princípio da ‘segurança jurídica’, indisputavelmente um dos mais importantes entre eles. Os institutos da prescrição, da decadência, da preclusão (na esfera processual), do usucapião, da irretroatividade da lei, do direito adquirido, são expressões concretas que bem revelam esta profunda aspiração à estabilidade, à segurança. [...] A ordem jurídica  corresponde a um quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar (MELLO, p. 74, 77 e 113).[23]

Concluindo, ao adotar os princípios como referenciais maiores a interpretação constitucional assumiu novas tendências. O novo referencial é a realização dos direitos fundamentais, definidos a partir da dignidade da pessoa humana. A propósito, “fundamental eliminar o preconceito de que as organizações estatais possuem justificativas de existência em si mesmas. O Estado não existe para satisfazer suas estruturas burocráticas internas nem para realizar interesses exclusivos de algumas classes dominantes. [...] Tem um compromisso com a realização dos interesses coletivos e com a produção ativa dos valores humanos”.[24]

Os princípios espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e finalidades. Dito de forma sumária, são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificação essenciais da ordem jurídica, como registro o constitucionalista Luís Roberto Barroso.[25]

7. Referências bibliográficas

1. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9ª e. – rio de janeiro: Forense, 1981.

BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 6ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2004.

CRETELLA JUNÍOR, José. Introdução à Filosofia do Direito, 10ª ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2004.

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Vittorio Cassone, Interpretação no Direito Tributário, p.103.

[1] José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. 1084.

[1] Inocêncio Coelho Mártires, Métodos e Princípios da Interpretação Constitucional, fórum administrativo, 23, p. 1709-1923.

  Alfredo Buzaid,Da Ação Direta de Inconstitucionalidade das leis no Direito no Direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958, p. 128-132.

[1] Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Editora, ano, p.1

[2] Inocêncio Mártires Coelho, ob. cit., p. 69

[3] Carlos Maximiliano, ob. cit., p. 12

[4] Carlos Maximiliano, ob. cit. p. 12

[5] Carlos Maximiliano, ob. cit., p. 37

[6] Carlos Maximiliano, ob. cit., p. 277

[7] José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. 1084.

[8] Inocêncio Coelho Mártires, Métodos e Princípios da Interpretação Constitucional, fórum administrativo, 23, p. 1709-1923.

[11] Luís Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, p.151.

[12] Luís Roberto Barrosa, ob. cit. , p.161.

[13] Alfredo Buzaid,Da Ação Direta de Inconstitucionalidade das leis no Direito no Direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958, p. 128-132.

[14] Luis Roberto Barroso, ob. cit. , p. 86.

[15] Luis Roberto Barroso, ob. cit., p. 196

[16] Inocêncio Mártires Coelho, Métodos e princípios da interpretação constitucional. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, n.º 23, p. 1718, jan. 2003.

[17] Luis Roberto Barroso, ob. cit., p. 188 

[18]Vittorio Cassone, Interpretação no Direito Tributário, p.103.

[19] Konrad Hesse, in “A Força Normativa da Constituição”, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 34.

[22] Ob. citada.

[23] Ob. citada.

[24] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 3. Segundo Marçal Justen Filho, “a regra traduz uma solução concreta e definida, refletindo escolhas instrumentais. Já o princípio indica uma escolha axiológica, que pode concretizar-se em diversas alternativas concretas. De modo geral, a regra torna válida uma solução determinada, enquanto o princípio impõe a invalidade de soluções indeterminadas. Todas as escolhas compatíveis com certo princípio podem ser praticadas — o principio não fornece solução de escolha dentre as soluções com ele compatíveis. A função do princípio reside, basicamente, em excluir a validade das alternativas que sejam contraditórias com os valores neles consagrados”.[24] Curso de direito administrativo, ob. cit., p. 52.

[25] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 151.

Sobre o autor
Astrogildo Miag Regis Barbosa

Escritor, Advogado e Economista, servidor público da área tributária atualmente em exercício na Unidade de Corregedoria da Secretaria de Economia do Distrito Federal.

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