É antiga a discussão acerca da natureza jurídica da arbitragem, sendo certo que a doutrina se divide em basicamente três teorias: a privatista/contratual, a publicista/jurisdicional e a mista.
A teoria privatista, ou contratual, considera a arbitragem tão somente um negócio jurídico, uma vez que ao árbitro seria conferida a função de solucionar o conflito, no entanto, sem o poder de executar e impor a sentença às partes, que é monopólio do Estado.[1] Ou seja, a decisão do árbitro seria, em essência, a extensão do acordo celebrado entre as partes.[2]
A arbitragem, assim, possuiria um caráter privatista tanto no que concerne à sua origem – posto que decorre de um acordo entre as partes –, quanto no que diz respeito à qualidade dos árbitros – visto que não possuem o poder de executar suas decisões.
Por outro lado, a teoria publicista defende que a arbitragem é “verdadeira atividade jurisdicional, e, prova disso, é a lei ter outorgado poderes, ao árbitro, para dirimir os conflitos de interesse das partes”.[3] Nessa linha, os árbitros são considerados verdadeiros juízes, de fato e de direito,[4] de modo que a arbitragem é uma “jurisdição de caráter privado”.[5]
Os adeptos a essa teoria – entre eles Francisco José Cahali[6] e Carlos Alberto Carmona[7] – sustentam que as modificações trazidas pela Lei nº 9.307/1996 equipararam a atividade do árbitro à atividade estatal no exercício de função jurisdicional, tendo a sentença arbitral eficácia e força de título executivo judicial.
No mesmo sentido, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery acreditam que “o árbitro exerce verdadeira jurisdição porque aplica o direito ao caso concreto e coloca fim à lide que existia entre as partes”, considerando a arbitragem um “instrumento de pacificação social”.[8]
A teoria mista, por sua vez, “se insere na idéia de que a Arbitragem possui característica contratual em um momento inicial, ou seja, no exercício da autonomia da vontade privada das partes para a escolha e o pacto convencional desta, tendo, mais adiante, com a sentença arbitral, conteúdo jurisdicional, daí também público”.[9]
José Cretella Neto é um dos defensores desta corrente. Segundo ele, “a arbitragem tem natureza jurídica mista, sui generis, contratual em seu fundamento, e jurisdicional na forma da solução de litígios e nas consequências que provoca no mundo de Direito”.[10]
Leonardo de Faria Beraldo e Francisco José Cahali tratam ainda de uma quarta teoria, denominada autônoma, a qual enxerga a arbitragem como um “sistema de solução de conflitos totalmente desvinculado de qualquer sistema jurídico existente”.[11] Referida corrente tem mais relevância nas arbitragens internacionais.
Importante ressaltar que, para o exame das teorias supracitadas, faz-se necessária a análise do conceito de jurisdição.[12]
Na concepção proposta por Montesquieu,[13] consistente na separação dos três poderes estatais, ou seja, Executivo, Legislativo e Judiciário, independentes e harmônicos entre si, a jurisdição é verdadeiro monopólio do Estado, que, por meio do Judiciário, aplica a lei, coativa e contenciosamente, ao caso concreto.[14]
Nesse diapasão, a natureza jurídica da arbitragem não poderia ser a jurisdicional, haja vista que a sua organização não integra o aparelho estatal, mas pertence ao sistema privado de solução de controvérsias.[15]
No entanto, de fato, com o advento da Lei nº 9.307/1996, que equiparou a sentença arbitral à sentença judicial, constituindo título executivo, e não mais necessitando de homologação judicial, ficou difícil negar a natureza jurisdicional da arbitragem.
Assim, se considerarmos a jurisdição como o poder de solucionar conflitos, independentemente se exercido pelo poder público ou por alguém desvinculado a ele, é possível afirmar que a arbitragem se trata de verdadeira jurisdição privada.[16]
De acordo com esse entendimento, Francisco José Cahali atesta que:
"(...) só considerando a arbitragem como jurisdição é que se poderá explicar a regra contida no parágrafo único do art. 8º da Lei 9.307/1996, consagrando o princípio kompetenz-kompetenz, (...), pois, se prevalecesse a natureza contratual, seria inviável ao árbitro examinar e afastar ou não a sua competência para o litígio a ele submetido.".[17]
Referências Bilbiográficas
[1] CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. 2ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 84-85.
[2] Idem.
[3] BERALDO, Leonardo de Faria. Curso de Arbitragem nos Termos da Lei nº 9.307/96. 1ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2014, p. 5.
[4] Lei nº 9.307/1996, “Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário”.
[5] JOBIM, Eduardo; MACHADO, Rafael Bicca. Arbitragem no Brasil: Aspectos Jurídicos Relevantes. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2008, p. 30.
[6] CAHALI, Francisco José. Ob. cit., p. 88.
[7] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 3ª Edição. São Paulo: Atlas, 2009, p. 26-27.
[8] JUNIOR, Nelson Nery; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 13ª Edição. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013, p. 1758.
[9] JUNIOR, Antonio Pereira Gaio Júnior. Teoria da Arbitragem. 1ª Edição. São Paulo: Ed. Rideel, 2012, p. 19.
[10] NETO, José Cretella. Curso de Arbitragem: arbitragem comercial, arbitragem internacional, Lei brasileira de arbitragem, Instituições internacionais de arbitragem, Convenções internacionais sobre arbitragem. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2004, p. 15.
[11] CAHALI, Francisco José. Ob. cit., p. 86.
[12] Cf., a respeito, Humberto Theodoro Júnior, para quem a jurisdição é “a função do Estado de declarar e realizar, de forma prática, a vontade da lei diante de uma situação jurídica controvertida” (JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil –Vol. 1. 53ª Edição. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2012, p. 47-48).
[13] Cf., a respeito, a obra O espírito das Leis, de Montesquieu, que trata da divisão dos poderes, assim expondo: “O Legislativo ‘faz as leis para algum tempo ou para sempre, e corrige ou ab-roga as que estão feitas’. O Judiciário pune os crimes ou julga as demandas dos particulares’. E o Executivo, sendo o restante poder, exerce as demais funções do Estado; exerce a administração geral do Estado, constituindo-se por isso no executor das leis em geral” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das Leis. 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 25)
[14] CAHALI, Francisco José. Ob. cit., p. 87.
[15] Idem.
[16] CAHALI, Francisco José. Ob. cit., p. 87.
[17] Ibidem, p. 89-90.