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Dinâmica e estabilidade do Direito: relativização da coisa julgada

Agenda 29/04/2016 às 12:39

O presente artigo apresenta, de forma sintética, o resultado do julgamento do Recurso Extraordinário n. 363.889-DF, que tratou em suas razões principais a operação da coisa julgada e segurança jurídica em conflito com outros dispositivos constitucionais.

1 INTRODUÇÃO

            O fenômeno da coisa julgada, trazido como garantia expressa na nossa Carta Magna se mostra como um dos instrumentos do princípio da segurança jurídica, uma vez que as decisões judiciais não mais merecedoras de recurso possam ser consagradas e obedecidas no plano fático em todos seus efeitos, proporcionando assim que a prestação jurisdicional seja efetiva, porquanto a tutela a ela conferida pela legislação seja defendida em todas as situações que se possam visualizar ameaça.

            A segurança jurídica se traduz em verdadeiro conceito pertencente ao Estado Democrático de Direito, porquanto qualquer outra mácula em sua verdadeira concepção ensejaria ou Estado de Exceção ou verdadeira anarquia jurídica. Exatamente para que nem mesmo o Estado possa promover insegurança ao não obedecer marco jurídico e temporal exato das decisões é que se conta com o instituto da coisa julgada.

            Todavia, necessário verificar que mesmo com a possibilidade da revisão da prestação jurisdicional, através da Ação Rescisória, certas modificações na situação fática, em decorrência do tempo, ou mesmo, por somente com o tempo se perceber uma falha de análise de mérito por parte do poder judiciário, temos que a coisa julgada, embora instrumento da segurança jurídica, não pode por se só ser considerada como algo de natureza absoluta e terminativa.  A segurança jurídica por si também deve abarcar as situações de acesso a justiça, da devida prestação jurisdicional e, por que não dizer, da interpretação do direito conforme a Constituição, além do já consagrado conceito tríplice de ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada.

            Assim, além dos conceitos puramente teóricos, o Direito como ciência social clama pela análise do caso concreto, da aplicação da norma ao fato, da transmutação do status quo, da pacificação social e da uniformidade de suas diretrizes principiológicas.

            Por tal razão se verificará no presente artigo a argumentação da impossibilidade de aplicação da coisa julgada face a modificação temporal das condições fáticas às partes à época de sua operação, bem como a argumentação para a relativização no caso concreto. A pergunta reside em se pode a segurança jurídica, através da coisa julgada, impedir verdadeiro e flagrante direito também constitucionalmente protegido? Qual vale mais?

            Não se verificará eterno conflito principiológico, nem tampouco valoração entre direito protegidos, mas sim a aplicação de cada um deles, de forma independente, frente ao conjunto das normas e do espírito do legislador constituinte. A mens legislatoris por muito deve ser previamente levada em consideração sobre a mens legis, para que se possa de forma eficaz e justa, obter prestação jurisdicional que seja equânime, exaustiva e humana.

2 CASO CONCRETO: RE n. 363.889-DF

No caso concreto ora em análise temos um Recurso Extraordinário interposto em face de Acórdão proferido pela Quinta Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, no âmbito de um processo de investigação de paternidade.

A parte autora ingressou novamente com a ação de investigação de paternidade uma vez que tentativa anterior fora julgada por falta de provas. Na pretérita ação não foi possível afirmar a paternidade alegada porquanto a prova de exame de DNA não fora realizada por insuficiência econômica da parte autora, tendo o réu por sua vez não se dispondo a realizar às suas expensas.

Naquela ocasião, no ano de 1989, o exame em questão custava cerca de US$1.500,00 (hum mil e quinhentos dólares americanos), não havendo qualquer gratuidade ou obrigatoriedade por parte do Estado, nem tampouco havia o entendimento atualmente consagrado que a negativa da submissão do exame pelo pretenso pai enseja o reconhecimento tácito da paternidade. Neste cenário, o juízo arquivou o processo por falta de provas que comprovassem a paternidade, mas realizando julgamento de mérito entendendo pela ausência da paternidade.

No ano de 1996 com edição da Lei Distrital n. 1.097/96, tornou-se obrigatório ao Estado prover o exame de DNA gratuitamente nos casos de investigação de paternidade no âmbito do Distrito Federal, razão pela qual o autor da ação intentou nova ação de investigação de paternidade contra o mesmo réu no intuito de ver o direito a paternidade garantido.

O réu por sua vez ao apresentar sua resposta alegou preliminar de mérito de coisa julgada, porquanto a ação pretérita já havia consagrado a inexistência da paternidade, o que foi indeferido pelo juízo de primeira instância ensejando o manejo pelo réu do recurso de Agravo de Instrumento, havendo o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios acolhido o recurso, razão pelo qual o autor ingressou com o ora trazido Recurso Extraordinário.

Em suas razões o autor (recorrente) utilizou como base legal o dispositivo constitucional contido na alínea ‘a’ do art. 102 que estabelece a competência de julgamento de Recurso Extraordinário por parte do STF contra decisão de única ou última instância em que se verifica violação a dispositivo constitucional, vejamos:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

 III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

  1. contrariar dispositivo desta Constituição;

Já os dispositivos constitucionais violados, conforme as razões recursais dos recorrentes, seriam aqueles contidos nos artigos 5º, inciso XXXVI e 227, §6º, da Carta Magna:

XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligencia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

            O aparente conflito entre princípios, de um lado a segurança jurídica e do outro a dignidade humana e a paternidade responsável fora a baliza para a decisão do TJDFT, que entendeu que os últimos teriam sido contemplado na pretérita ação, sendo imperioso, portanto a prevalência da segurança jurídica ora trazida pelo réu.

            O Supremo Tribunal Federal então, com a relatoria do Ministro Dias Toffoli, conheceu do Recurso e no mérito deu-lhe provimento por maioria. No argumento trazido pelo relator, para o provimento do recurso, em síntese, foram trazidos os princípios da isonomia entre irmãos, da verdade material, e principalmente o direito ao conhecimento da ancestralidade genética, consagrado pelo Direito Alemão, vejamos trecho do relatório:

Embora esse decisum aluda à técnica de colisão de princípios, a respeito da qual guardo reservas e só a tenho utilizado para demonstrar que, mesmo por essa via, se pode chegar a resultados simétricos, é evidente que a ideia de coisa julgada como topos argumentativo isolado não se presta a resolver o problema do direito fundamental à identidade genética.[1]

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            Neste particular, o que se verifica é verdadeiro o conflito de normas, mas que sua resolução pede uma avaliação do caso concreto visando a efetiva prestação jurisdicional. O que se tem é que não havendo a certeza, na ação pretérita, da efetiva paternidade alegada, não poderia, no caso, o juízo proceder julgamento de mérito, possibilitando que em havendo possibilidade da produção da prova poderia o autor novamente ingressar com a ação visando satisfazer direito tão fundamental.

            Se assim o fizesse não haveria necessariamente a operação da coisa julgada, e assim parece o lógico, porquanto não houve a devida cognição do direito reclamado. Não sendo possível afirmar categoricamente a existência ou não do vínculo biológico da paternidade, não poderia o juízo dizer, sem provas, que aquele não era o pai daquele filho.

            Contudo, o objeto do Recurso Extraordinário não tinha o seu enfoque na relação parental reclamada, mas sim no direito do autor em ver a possibilidade de provar em juízo tal relação, face a existência de coisa julgada. O relator após trazer longa doutrina e jurisprudência, onde casos em que a coisa julgada teria sido relativizada sem que contudo houvesse a perda da segurança jurídica, fez ainda apanhado histórico acerca da legislação acerca do direito à ascendência conhecida e da igualdade entre filhos frutos de um casamento e aqueles havidos em situações fora a existência de relação conjugal, estabelecendo o binômio legítimos-ilegítimos.

Nessa linha do tempo, traz doutrina que enfatiza que o reconhecimento acaba por formalizar situação no mundo jurídico preexistente no campo dos fatos, enfatiza que os efeitos do reconhecimento da paternidade não só geram direitos mas também deveres além de que a coisa julgada na improcedência do reconhecimento, em alinhamento com o Estatuto da Criança e do Adolescente, possui eficácia somente formal, porquanto se tratar de direito personalíssimo e imprescritível que merece ser vindicado sem restrições.

Por derradeiro, o relator confirma o entendimento do provimento do recurso, por se tratar de efetiva justiça em fazer prevalecer o direito fundamental do autor da ação à informação genética, afastando o óbice da coisa julgada permitindo o prosseguimento da ação de investigação de paternidade, sendo acompanhado pela maioria por extenso debater, sendo contrários os Ministros: Marco Aurélio e Cezar Peluso.

Em seu voto o Ministro Marco Aurélio entendeu que pelo lapso temporal decorrido entre as duas ações intentadas e o possível “caos social” que a flexibilização da coisa julgada poderia sofrer, somente com o advento do DNA, poderia acarretar prejuízo significativo, e no caso concreto possível ruptura familiar para com a parte recorrida. Conclui que a coisa julgada é sim instituto que deva ser preservado e que o caso concreto não se enquadra em questão de medida rescisória em razão do tempo, manifestando pelo não provimento do recurso, vejamos[2]:

Presidente, sob pena de solapar, de ferir de morte, o princípio da segurança jurídica, de contribuir para a instalação de uma verdadeira babel – e os direitos fundamentais são muitos, não se restringem à paternidade –, não tenho como desconhecer esse contexto e, 20 anos após à entrega da prestação jurisdicional pelo Estado – sendo que, no processo que a motivou se poderia ter feito o exame de DNA, porque já existente à época –, como dizer que simplesmente o que decidido pode ser colocado em plano secundário e que não se fez coberto pela coisa julgada. E digo mais: também pela preclusão maior, considerada a ação de impugnação autônoma, que é a rescisória.

Peço vênia aos Colegas que entenderam de forma diversa para desprover o recurso. E não saberia mesmo, se assim não concluísse, apontar o dispositivo da Lei Maior que teria sido vulnerado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal ao reconhecer o pressuposto negativo de desenvolvimento válido do processo, que é a coisa julgada, já que se tem valores a serem sopesados, e esta Corte proclama – e reiteradamente – que a violência à Constituição Federal capaz de impulsionar o extraordinário há de ser frontal e direta.

Já o Ministro Cezar Peluso, alinhando-se às conclusões acerca do aspecto temporal com o Ministro Marco Aurélio, entendeu que verdadeiramente o autor fora mal assistido tecnicamente, podendo se valer de outras formas a buscar o direito pretendido em face da não realização do exame de DNA.

Ponderou que da mesma forma que se observa o direito do autor e seu aspecto fundamental e sob a égide do principio da dignidade humana, também se faz imperioso analisar os mesmos aspectos sobre o réu que também restou na incerteza da paternidade e na insegurança de ver sua intimidade e paz familiar abalada. Entende que a relativização da coisa julgada, mesmo que na baliza proposta poderia abrir precedente perigoso a segurança jurídica em geral e à paz social, fazendo alusão a situações da alçada criminal, concluindo pelo não provimento do recurso, vejamos[3]:

Por todas essas razões, mais os outros motivos que o Ministro Marco Aurélio também já adiantou, é que tenho um respeito, eu diria, quase absoluto, pela coisa julgada. Tenho respeito quase absoluto à coisa julgada, porque, recordando o que ela significa a partir da concepção romana da res iudicata - em que a palavra res não é empregada evidentemente no sentido de coisa, mas no sentido de estado ou situação, assim como entra na palavra república, res publica - , a situação jurídica vital que já foi julgada definitivamente não pode ser revista, porque a norma que a define é vital. Se não houver certeza e estabilidade sobre essa definição normativa da situação em que as partes se envolveram, é impossível viver tranquilo. E não viver tranquilo é não viver na verdade.

(...)

Pedindo maxima venia e com o maior respeito aos votos da douta maioria, todos eles muito brilhantes, com argumentos muito sensíveis, de vários pontos de vista até irrespondíveis, vou alinhar-me, desta vez, com a minoria, na companhia, aliás, sempre ilustre, do Ministro Marco Aurélio.

O que se verificou ao final do julgamento é um precedente importante na interpretação do princípio da segurança jurídica por parte da Corte Constitucional, em face de aparente conflito principiológico, retirando daquela um caráter de certeza absoluta, em sede de um controle difuso de constitucionalidade.

Outrossim, se mostrou decisivo o aspecto argumentativo utilizado pelo relator no que diz respeito a mutação do direito no tempo face a situação fática apresentada, onde se com o avanço do tempo a própria legislação, doutrina e jurisprudência se adequam às situações fáticas apresentadas pela sociedade, não diferente poderia se verificar no dizer do direito, não se entendendo que o caso concreto sirva como precedente universal para qualquer questão envolvendo a segurança jurídica e a coisa julgada, mas sim no caso concreto e outros semelhantes com as mesmas características.

A argumentação utilizada no caso concreto é questão que teve fundamental importância para que se chegasse ao resultado prolatado, porquanto a hermenêutica dos preceitos constitucionais se mostrou acima da simples intepretação do texto positivado indo além, à efetiva e real prestação jurisdicional devida quando do garantido acesso à justiça.

3 A INTEPRETAÇÃO LEGAL ATRAVÉS  DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA

O caso estudado mostra se tratar de verdadeira intepretação jurídica com base na pura argumentação utilizada tanto pelas partes como pelos julgadores da Corte Constitucional. O limite de aplicação e a flexibilização da coisa julgada, ao final entendida pela decisão, se pauta exatamente nas questões postas no caso concreto, tendo na argumentação verdadeira base para a tomada de decisão, acima mesmo de simples dispositivos legais, afinal era o conflito destes que se buscou dirimir.

Assim, se questiona neste técnica de intepretação e aplicação do direito, bem como na prestação jurisdicional prestada pelo Estado, quais os limites e qual o alcance no discurso jurídico e na argumentação empreendido.

Temos que ao firmar a convicção traduzida em suas decisões, os julgadores primeiramente formam a cognição do resultado entendido como correto, para que então possam, dentro dos instrumentos jurídicos e da argumentação utilizada fundamentar a conclusão que chegaram ao serem provocados.

É o que Manuel Atienza, ensina quanto os limites do discurso jurídico[4]:

Assim como ocorria no discurso prático geral, o discurso jurídico delimita também, junto com as esferas do discursivamente necessário e do discursivamente impossível, uma terceira, a do discursivamente possível: diante de um mesmo caso, as regras do discurso jurídico permitem que seus vários participantes cheguem a soluções incompatíveis entre si, mas racionais (isto é, fundamentadas discursivamente). Isso se deve, como já vimos, aos fatos de o discurso começar sobre a base das convicções faticamente existentes dos participantes, de nem todos os passos da argumentação estarem determinados e de algumas das regras do discurso só poderem ser satisfeitas de maneira aproximada.

E nessa linha de conduta é que temos que na aplicação do direito, seus operadores devem ir além da visão externa que o direito positivado se mostra, como simples conjunto de regras a ser seguida. Pelo contrário, é preciso formar a convicção do caso concreto, e verificar, ainda que dentre princípios positivados, a maneira de aplicação destes.

Por óbvio que hoje é inegável o direito à paternidade reclamada pelo filhos, bem como a responsabilidade destes de forma inclusive mútua, porquanto descendentes possuem, afetiva e economicamente obrigações para com ascendentes em algum momento da vida, muitas vezes já na velhice destes.

Mas no caso analisado, verificou-se que não bastava somente uma convicção consuetudinária atual, mas sim a análise jurídica de um histórico temporal acerca da pretensão legal deduzida que buscava a solução jurisdicional adequada.

Os ensinamentos de Thomas da Rosa Bustamante[5], de forma muito acertada trazem essa necessidade de verdadeiramente enxergar o direito além do positivismo simples e clássico:

Por isso, parece correto afirmar que mesmo quando se visualiza o Direito da perspectiva do participante não é viável um conceito puramente normativo de direito, na medida em que critérios positivistas de identificação do Direito pecam, na verdade, pela insuficiência (o Direito não é apenas um sistema de normas validamente produzidas e socialmente eficazes), mas não pela inutilidade (pois na maioria das vezes é suficiente definir o Direito como não mais que um sistema de normas validamente produzidas e eficazes). Um conceito de Direito adequado às pretensões metodológicas do Pós-Positivismo há de reunir, portanto, tanto elementos descritivos quanto elementos normativos.

No caso em apreço temos que em se tratando de Recurso Extraordinário se opera o controle da constitucionalidade incidental. De forma difusa a Corte Constitucional avalia a questão à ela posta no sentido de dar-lhe a interpretação dentro do que rege a Carta Magna, conforme leciona Luis Roberto Barroso:

O controle de constitucionalidade por via incidental, adotado desde a Constituição de 1891, caracteriza-se por ser exercido na apreciação de um caso concreto, no qual a constitucionalidade ou não de determinada norma é questão prejudicial à solução da lide. Pode ser exercido por qualquer juiz ou tribunal, que deverá deixar de aplicar à hipótese norma que considere inconstitucional. Os efeitos da decisão se produzem apenas entre as partes do processo, sem afetar a validade geral da norma. Não se forma coisa julgada em relação à matéria constitucional tratada na decisão.

Ora, logo, não há como a intepretação dada pela flexibilização da coisa julgado no caso concreto se estender a quaisquer outros casos. Todavia, ao julgado foi conferida a repercussão geral, o que quer dizer que na situação apresentada, todos os casos de investigação de paternidade o qual a paternidade fora negada por falta de provas por impossibilidade financeira de realização de exame de DNA não poderão ter receber os efeitos da coisa julgada.

 No que ora se debate, não se trata verdadeiramente de lei ou norma que possa ser entendida como inconstitucional, mas sim dos efeitos de uma sentença já transitada em julgado. Luis Roberto Barroso, ao tecer circunstâncias da relativização da coisa julgada, especificamente se pronunciou quando temos o fenômeno em relação à princípios constitucionais, como é o presente caso:

É que o princípio da segurança jurídica, como os princípios em geral, não tem caráter absoluto. É possível cogitar, portanto da necessidade de fazer sua ponderação com outros princípios de igual estatura, como o da justiça, ou da moralidade, mediante a utilização do princípio instrumental da razoabilidade-proporcionalidade. Essa será, no entanto, uma situação excepcionalíssima. Até porque a coisa julgada como já mencionado, é uma regra de concretização de um princípio (o da segurança jurídica), o que reduz a margem de flexibilidade do intérprete. Somente em situações-limite, de quase ruptura do sistema, será legítima a superação da garantia constitucional da coisa julgada.

Quanto à via a ser adotada para obter o desfazimento da coisa julgada, a doutrina processualista tem sido surpreendentemente liberal: admite a ação rescisório, sem sujeição ao prazo decadencial de dois anos, sob o fundamento de que a coisa julgada inconstitucional é nula, e como tal, não se subordina a prazos decadenciais ou prescricionais. E admite, também, a propositura de qualquer ação comum destinada a reexaminar a mesma relação jurídica litigiosa, reconhecendo ao juiz um poder geral de controle incidental da constitucionalidade da coisa julgada.  Toda tese inovadora, para romper o cerco do conhecimento consolidado, precisa ser afirmada com ímpeto, por vezes até com certo exagero. O intérprete constitucional, contudo, deverá operar essas ideias sem preconceito, mas com cautela, para não produzir uma indesejável banalização da coisa julgada.

Portanto, ainda que a doutrina e a jurisprudência tenham cada vez mais admitidos casos de relativização da coisa julgada, não se admite alguma forma de relativização geral, porquanto ser a segurança jurídica princípio de valor significativo no ordenamento jurídico brasileiro.

O cuidado e exceção são os pontos principais da operação dessa flexibilização, sendo, quando do conflito da segurança jurídica com outros princípios constitucionais ou mesmo normas positivadas, a argumentação a maneira mais sólida para construir fundamento técnico suficiente para a tomada de decisão.

4 CONCLUSÃO

O princípio da segurança jurídica é fundamental para que os operadores do direito possam contar com uma prestação jurisdicional eficaz e que traga pacificação social àqueles que deduzem pretensões ao poder judiciário visando a satisfação de seus direitos.

Contudo, os instrumentos dessa segurança, como a coisa julgada, não podem, em face da mutabilidade das relações sociais, do aspecto temporal e da possibilidade de nova convicção ou certeza sobre determinado tema, possuírem caráter absoluto, de forma a prevalecer o cerceamento de direito, ou operação de injustiça.

No caso concreto se verificou que a forma adotada pelo autor foi o ingresso de nova ação com mesmo pedido, mesmas partes mesma causa de pedir, mas com a possibilidade da certeza do alegado e da facilitação da busca pela verdade material, razão pela qual a coisa julgada restou, ao final, relativizada, afastada, não podendo se mostrar como empecilho a pretensão a direito deduzida em juízo.

Em que pesem as aflições dos votos contrários, sob alegado caos social que a relativização poderia ocasionar, se verifica verdadeiramente que o direito fundamental à personalidade, à identidade genética, e como muito utilizado nos tempos atuais, principalmente em questões sob o crivo da Corte Constitucional, o direito à dignidade humana.

Ao contrário do que se pode ao primeiro olhar intuir, não se trata de encarar a busca pelo reconhecimento da paternidade somente com o viés financeiro ou patrimonial, mas sim o de caráter íntimo, de reconhecimento social, de condição civil de identidade.

E neste particular, ainda que o reconhecimento não desenvolva qualquer relação afetiva entre as partes, é necessário estabelecer a responsabilidade mútua que estas possuem no caso de comprovada a paternidade, porquanto se ora pais são responsáveis pelos filhos, em outro momento filhos são responsáveis por seus pais.

O que se destaca no caso concreto, no que diz respeito à coisa julgada face a desrespeito à dispositivo constitucional, não é dispositivo legal ou normativo, tão amplamente estudado pela doutrina, mas sim de sentença judicial transitada em julgado, e neste particular, somente se verificando que os efeitos daquela não devem prevalecer no campo do mérito é que se pode de forma excepcional relativiza-los, devolvendo ao poder judiciário a possibilidade de analisar a questão apresentada.

5 REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. 2012. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro: Exposição Sistemática da Doutrina e Análise Crítica da Jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2012.

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. 2012. Teoria do Precedente Judicial: a Justificação e a Aplicação de Regras Jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012.

KELSEN, Hans. 2003. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LEAL, Saul Tourinho. 2012. Controle de Constitucionalidade Moderno. Niterói: Impetus, 2012.

MACHADO, Daniel Carneiro. 2005. A Coisa Julgada Inconstitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

MARINONI, Luiz Guilherme. 2010. Coisa Julgada Inconstitucional: a Retroatividade da Decisão de (In)Constitucionalidade do STF sobre a Coisa Julgada; a Questão da Relativização da Coisa Julgada . São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

MENDES, Gilmar Ferreira. 2004. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004.

MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. 2008. Coisa Julgada. Belo Horizonte: Fórum, 2008.

NASCIMENTO, Carlos Valder do e FARIA, Humberto THEODORO JÚNIOR e Juliana Cordeiro de. 2011. Coisa Julgada Inconstitucional: a Questão da Segurança Jurídica. Belo Horizonte: Fóum, 2011.

PAULO, Vicente e ALEXANDRINO, Marcelo. 2008. Controle de Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.


[1] RE 363889, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 02/06/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-238 DIVULG 15-12-2011 PUBLIC 16-12-2011 RTJ VOL-00223-01 PP-00420

[2] RE 363889, Voto Ministro Marco Aurélio.

[3] RE 363889, Voto Ministro Cezar Peluso.

[4] ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2003. {2.5 “Os limites do discurso jurídico (...), pp. 263-296}.

[5] BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente Judicial: a Justificação e a Aplicação de Regras Jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p. 133

Sobre o autor
João Paulo Prates

Advogado. Especialista em Direito Administrativo e Órgãos de Controle Públicos.

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