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A ideia do patamar civilizatório mínimo, a Constituição Real e a teoria jusnaturalista: em que momento há invocação da condição humana?

Agenda 14/05/2016 às 18:04

Revisão do conceito de dignidade da pessoa humana.

A doutrina juslaboral brasileira, baseada nas ideias do Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Maurício Godinho Delgado, debruça-se sobre a ideia de patamar civilizatório mínimo quando explica a distinção entre direitos sociais indisponíveis e direitos sociais passíveis de transação e renúncia, destacadamente, na ótica da relação de trabalho.

Essa expressão é utilizada para tratar dos direitos sociais e sua disponibilidade no âmbito de um processo judicial de direitos sociais, principalmente, na fase conciliatória. Diante disso, passa-se a analisar, primeiramente, se este patamar civilizatório mínimo busca espeque no direito positivo ou no direito natural e, ao mesmo tempo, se existe um sedimento na ideia de Constituição Real.

O patamar civilizatório mínimo, a meu ver, é uma expressão feliz porque indica de forma muito certa duas verdades: a primeira, de que o trabalho é fruto do capitalismo e, nesta ótica, os direitos sociais são os freios de um capitalismo predador à medida que o “civiliza”, tanto que surgiram como segunda dimensão na evolução dos direitos, após o malogro do Estado Liberal.

A segunda verdade é que a civilização pressupõe um patamar de respeito, pelo menos, na sua extensão de garantir a dignidade da pessoa humana. Ousarei traduzir a expressão de Godinho para dizer que o patamar civilizatório mínimo seria todos os direitos sociais e fundamentais que garantissem ao trabalhador o mínimo necessário para se conceder um valor social ao trabalho, preservando a dignidade da pessoa humana, civilizando o capitalismo e garantindo neste círculo o laissez faire.

É preciso impor limites ao Estado e aos indivíduos. Se é certo que o mundo precisa seguir, se o comércio e a economia têm que correr contra o tempo, não se pode olvidar do valor humano, da essência humana, da condição humana. Não se limita a economia ao dinheiro. Não se limita o Estado aos tributos. Não se limita a crise à dívida. Neste aspecto, é preciso manter o mínimo de civilidade, sob pena da própria descrença nos limites, no Estado e nas normas, de que a Constituição e o ordenamento jurídico se tornem como “folhas ao vento” ou percam sua espiritualidade .

Daí porque não se pode mencionar como formas antagônicas para manter a noção de Estado Social o Direito Natural e o Direito Positivo. Antes, completam-se. E isso, a meu ver, se torna passível de verificar na ideia de patamar civilizatório mínimo.

Explico.

A Constituição, como fruto do Poder Constituinte Originário, surge de uma vontade popular e, ao menos, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, deve vir do exercício legitimado de representantes eleitos pelo povo, representando, de forma real, a vontade do povo, prestigiada pela ideia de contrato social de Rousseau ou da Teoria do Consentimento e do Princípio da Confiança. Dessa feita, elenca diversos direitos fundamentais, entre eles, os direitos sociais, de segunda dimensão e, assim, incluem-se os direitos trabalhistas. A Constituição é a base destes direitos e traz-nos a mensagem do que se deve basear o legislador constituinte derivado, tal como ocorre nos códigos e nas leis.

Aliás, no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, essa ideia é clara, ao estatuir que "toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos, nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição".

Neste aspecto, surge-nos a classificação da Constituição Real, o oposto da Constituição “de papel”, interiorizando os valores sociais, culturais, ideológicos, econômicos e, destacadamente, o sentimento do povo naquele momento (ex: uma ideologia mais social que econômica; mais democrática que autoritária etc).

E isso é de crucial importância para que os cidadãos de um Estado Constituinte não podem viver numa democracia de papel, desfocada, desatenta, irreal, sob pena de vivermos uma “hipocrisia constitucional”.

A Constituição Real que se proclama democrática deve sedimentar os direitos sociais na perspectiva de se propiciar um veículo de melhores condições de vida aos seus destinatários, um cenário de civilização máxima que seja para propiciar a todos o bem-comum, o sentimento de felicidade em estar num determinado Estado e, principalmente, injetar na veia dos seus destinatários a vivência de seus ditames.

Mas a própria Constituição Real, quando posta, pode estar atrasada em relação a novos fatos. Isso não a desnatura automaticamente em folha de papel. Daí a existência de mecanismos como a interpretação evolutiva, as mutações constitucionais, a hermenêutica etc.

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E, ainda, é possível que, no direito posto (daí a importância do Direito Positivo) seja preciso preencher lacunas, cujas soluções não foram positivadas. Para tal mister, seria invocado o Direito Natural, principalmente, quando se está diante de verificar a própria questão dos direitos inatos à condição humana, ou seja, aqueles que são tão intrinsecamente ligados ao indivíduo que não precisam estar obrigatoriamente postos para serem atendidos pelo Estado (em uma condição horizontal de poder) e respeitados entre os próprios indivíduos (em uma condição vertical de poder).

Ilustro com o seguinte exemplo: o trabalho escravo não pode ser tolerado. Então, se a Constituição democrática não prevê esta proibição e nenhuma lei vede textualmente a pratica de escravização do indivíduo (trabalhador), em determinado Estado, tornando-o coisa e esquecendo a sua condição humana, tal ato poderia ser tolerado?

A resposta que nos vem automaticamente é não! Ora, diriam as correntes, principalmente, os árduos defensores dos Direitos Humanos, não é possível escravizar e coisificar as pessoas. O Direito Natural é justamente este poder superior ao que está posto, e que, apesar de abstrato, é algo sólido na consciência dos povos ao invoca-lo, tanto que, automaticamente, na maioria das vezes, sentimos ou intuímos a ideia de justiça num determinado concreto e, com o tempo, o legislador veicula, por normas postas, a conduta.

Porém, antes da positivação, é invocado. Neste aspecto, o direito natural trataria de todos os valores transcendentais e inerentes à condição do homem, como o direito de viver numa sociedade democrática, pensante, de expressar positivamente seus sentimentos e de se integrar a uma comunidade justa e solidária, por exemplo.

Por quê? Porque a liberdade é inerente às pessoas, à condição humana. E se não está posto isso no ordenamento – Direito Positivo – mas é automática a reação humana e do jurista, neste aspecto, o patamar civilizatório mínimo está chamando pelo Direito Natural para que evite a injustiça maior no seio social. A liberdade do indivíduo é algo inerente à sua condição. Obvio que não há direitos absolutos e, justamente, o Direito Positivo, também no reflexo da Constituição em determinado cenário, limita, por exemplo, ao exercício de trabalho para determinadas funções mediante qualificação técnica ou intelectiva.

Esse aparente contraste entre o direito natural e o direito positivo assemelha-se muito ao que, doutrinariamente, também vem se constatando entre princípios e regras. E, ao fim, conclui-se que as duas formas de veiculação do Direito são importantes e complementares, no sentido de que há pontos positivos e negativos para um Estado que se regule só por princípios ou só por regras. É preciso a combinação dos dois. Situação análoga para o debate de Direito Positivo e Direito Natural, destacadamente, na ideia de patamar civilizatório mínimo.

Em suma, parafraseando o texto bíblico: Não só de regras postas vive uma Constituição Real. E nem só de abstrações vive um povo. A segurança jurídica e o princípio da confiança urgem por um autêntico sistema constitucional que proporcione o mínimo existencial, sob pena de cair no descrédito, de não ser sentida pelo povo, de ser abandonada e morta em Revoluções, Revisões e Emendas Constitucionais.

Na ideia de patamar civilizatório mínimo, observa-se que o Direito Natural representa a expressão maior da dignidade do homem enquanto pessoa (humanização do Direito, responsável, inclusive, pela mudança de eixo patrimonialista de diversos ramos jurídicos, como o Direito Civil e Contratual), e devemos nós, aplicadores do Direito, assumir a ideia de que o Direito Positivo nem sempre cumpriu a sua função de preservar a pessoa dos interesses sociais dominantes, e todas as vezes que os princípios basilares do jusnaturalismo foram postergados o resultado foi desastroso. Deve, pois, o Direito Natural servir de base civilizada ao Direito Positivo, até porque nenhum fato, seja ele qual for, pode existir sem uma base sólida.

Neste aspecto, a Constituição Real não abandona nem o Direito Positivo e nem o Direito Natural, antes, concilia as duas noções como complementares em nome de se firmar real e garantir a civilidade mínima, estendendo-se a feliz expressão à brasileira de patamar civilizatório mínimo para todos os direitos fundamentais, com a condição de que se almeje a máxima expressão de dignidade a todos e que se possa atingir a “felicidade” constitucional.

Sobre o autor
Maria Rafaela de Castro

Juíza do Trabalho da 7a Região. Trabalhou como Juíza no TRT da 14a Região e como promotora de Justiça no Ministério Público do Estado de Rondônia. Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade do Porto, em Portugal. Professora de Cursos Preparatórios.

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