RESUMO: Trata-se de uma contribuição ao estudo do conceito de affectio societatis e sobre a possibilidade de utilizá-lo como elemento específico e essencial para a caracterização das sociedades comerciais, conjugada com o conceito de ligabilidad, proposto por Agustín Vicente y Gella, visando apurar a responsabilidade das sociedades comerciais, ainda que subsidiária, perante terceiros.
PALAVRAS-CHAVE: affectio societatis – affectio maritalis – elementos de caracterização da sociedade comercial – sociedade anônima – ligabilidad.
SUMÁRIO: 1. Introdução: 1.1. Identificação do objeto do estudo e sua seqüência; 2. Affectio societatis: evolução histórica, doutrinária e jurisprudencial; 2.1. O conceito de affectio societatis; 2.1.1. A affectio societatis no Direito Romano; 2.1.2. A proximidade do conceito de affectio societatis com o de affectio maritalis; 2.2. A ausência de expressa previsão legal ; 2.3. A affectio societatis como elemento essencial para a caracterização da sociedade; 2.4. O conceito de affectio societatis segundo um critério de ordem econômica; 2.5. A affectio societatis como critério de distinção da sociedade; 2.6. As críticas de inutilidade do conceito de affectio societatis; 3. O conceito de affectio societatis adotado pela jurisprudência brasileira; 3.1. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça; 4. A existência da affectio societatis em sociedades anônimas; 5. O conceito de "ligabilidad"; 5.1. A doutrina de Vicente y Gella; 5.2. Questionamentos sobre o conceito de "ligabilidad"; 6. Conclusões; 7. Bibliografia
1. Introdução
1.1. Identificação do objeto de estudo e sua seqüência
O presente trabalho pretende ser uma contribuição ao estudo do conceito de affectio societatis e sobre a possibilidade ou não de utilizá-lo como elemento específico e essencial para a caracterização das sociedades comerciais. Embora muitos considerem que se trata de um conceito antigo e abandonado para a compreensão das sociedades mercantis, pretendemos estimular a discussão e, ainda que de forma modesta, tentar demonstrar que o conceito de affectio societatis não deve ser encarado pela doutrina e pela jurisprudência apenas no clássico sentido de "desejo de permanecer em sociedade".
Em vista disso, procuramos delimitar o âmbito deste trabalho aos seguintes pontos: a) verificar o surgimento do contrato de sociedade no direito romano e a necessidade da expressão affectio societatis para a caracterização daquela espécie contratual, bem como compará-la com o conceito de affectio maritalis; b) realizar uma comparação crítica entre as noções de affectio societatis utilizadas pelos doutrinadores; c) verificar o entendimento adotado pela jurisprudência brasileira quanto a este conceito; d) analisar o conceito de "ligabilidad", proposto por Agustín Vicente y Gella como elemento característico e diferenciador da sociedade, ao invés do tradicional conceito de affectio societatis; e, por fim, e) apresentar as nossas conclusões sobre os temas expostos.
2. Affectio societatis: evolução históricca, doutrinária e jurisprudencial
2.1. O conceito de affectio societatis
2.1.1. A affectio societatis no Direito Romano
Para explicar o surgimento da societas no Direito Romano, Waldemar Martins Ferreira assinala que com a morte do pater familias, o conjunto de seus bens caía na propriedade indivisa dos que antes se achavam sob o seu poder, ou seja, não se abria a sucessão [1]. Tais pessoas abrigadas pelo poder do paterfamilias eram denominadas sui heredes e, segundo Max Kaser, elas somente adquiriam capacidade patrimonial com a morte daquele [2].
No entanto, com o advento Lei das XII Tábuas, permitiu-se ao herdeiro, por via da actio familiae erciscundae, pedir a partilha judicial da herança, de molde a receber cada qual a sua parte.
Ocorre que apesar da possibilidade de divisão dos bens entre os herdeiros, viram-se estes na necessidade de associarem-se, voluntária e consensualmente, a fim de poderem explorar suas propriedades com maior probabilidade de ganhos. Surgiu, assim, a societas no direito romano.
A sociedade apresentou-se sob a forma contratual e o intuito especulativo (animus lucrandi) transparecia, "embora os sentimentos afetivos e pessoais, tão peculiares aos romanos, pudessem animar o contrato, desempenhando papel saliente, senão mesmo substancial, no elaborá-lo e concluí-lo" [3].
Esses sentimentos afetivos e pessoais eram manifestados pela conventio ou acordo, considerada como elemento essencial do contrato de sociedade, e que, segundo Eduardo Volterra, consistia na vontade de todas as partes de dispor de seus bens e de dirigir suas atividades objetivando a consecução de um fim útil comum [4]. Volterra adverte, porém, que este acordo teria uma característica especial, já que não era suficiente que se manifestasse apenas inicialmente mas sim de forma contínua [5], ou seja, o vínculo obrigatório existia e era operante entre as partes desde que existisse e perdurasse o acordo entre elas [6]. Bastaria a renúncia por um dos sócios a este acordo para que o contrato de sociedade se desfizesse e findasse a relação jurídica entre as partes [7].
Portanto, como bem observa João Eunápio Borges, na societas romana não bastava o simples consensus, presente em qualquer contrato, mas sim um consentimento permanente, cuja cessação acarretaria o fim do contrato. No entanto, como a societas estava fundada sobre um estado de ânimo continuativo, a palavra consensus foi substituída por expressão ainda mais eficaz e mais significativa – affectio [8].
De conseguinte, pode-se dizer que a expressão affectio societatis surgiu para sublinhar a exigência de continuidade e de perseverança da vontade para a manutenção da sociedade, sendo, assim, diferente do conceito de conventio exigido para outros tipos de contratos consensuais.
É interessante observar, também, que a societas constituía-se intuitu personae, ou seja, "resultava de convênio, expresso ou tácito, puro ou condicional, com ou sem termo prefixo, predominando o animus contrahendae societatis", sendo que este sentimento era essencial, pois "incompreendia-se a sociedade sem o ânimo de fazê-la" [9].
Cumpre salientar, ainda, que a affectio societatis não foi utilizada pelos romanos apenas no sentido já referido, mas também foi considerada como um critério para para estabelecer se em uma comunhão de bens existia um contrato de sociedade, ou seja, se nascia a relação obrigatória entre aqueles que colocavam as coisas em comum ou se apenas existia um condomínio, isto é, uma transformação de uma propriedade individual em compropriedade [10].
2.1.2. A proximidade do conceito de affectio societatis com o de affectio maritalis
Importa sublinhar que o conceito romano de affectio societatis assemelhava-se muito ao de affectio maritalis, que consistia na "intenção e consciência de ambos os cônjuges de que a sua união é matrimônio" [11].
Com efeito, a concepção romana do matrimônio era bem diferente da moderna, inspirada no cristianismo, pois os romanos consideravam o matrimônio antes um fato social do que uma relação jurídica. De forma que o matrimônio romano "foi caracterizado como concreta comunidade de vida, sustentada pela affectio maritalis" [12].
Eduardo de Oliveira Leite aponta ser notável a abstração jurídica palpável e visível na concepção romana do casamento, se levarmos em conta a época de sua elaboração e o estádio de evolução da civilização. Revela-se, segundo ele, ainda mais impressionante pela audácia da proposição: "um casamento desvinculado de qualquer interferência estatal, jurídica ou religiosa (ainda que reconhecendo a ocorrência das cerimônias religiosas), sem imposições, sem normas preestabelecidas, em que somente a vontade, manifestada pelo consentimento, a intenção de casar e viver como marido e mulher – affectio maritalis e animus uxoris – são levados em consideração" [13].
O casamento romano não estava, portanto, sujeito a formalidades especiais, mas sim era preciso que a affectio maritalis fosse contínua e duradoura, pois quando ausente tal intenção findava-se o matrimônio.
Não havia um vínculo jurídico e tampouco se assemelhava a um contrato, razão pela qual a sua dissolução prescindia da intervenção judicial, ou seja, poderia cessar pela simples separação voluntária e definitiva ou, nos dizeres de D’ors, "qualquer um dos cônjuges podia repudiar o outro sem necessidade de formalidades judiciais" [14].
Para Juan Iglesias este sentimento resulta claramente dos conhecidos aforismos: nuptias non concubitus, sed consensus facit (o matrimônio não nasce da coabitação, mas sim do consentimento) e non coitus matrimonium facit, sed maritalis affectio (não é a união carnal que determina o matrimônio, mas sim a afeição matrimonial) [15].
Tanto é assim que nem era necessária uma convivência efetiva, pois, de acordo com Juan Iglesias, "o matrimônio existe ainda que os cônjuges não habitem na mesma casa e sempre quando um e outro guardem a consideração e o respeito devidos – honor matrimonii".
Outra prova de que a convivência não se interpreta no sentido material, mas sim ético, é o fato de que "o matrimônio pode ser contraído na ausência do marido, entrando a mulher na casa deste – deductio in domun mariti – e dando assim começo à vida em comum" [16].
Pode-se dizer, a grosso modo, que a exigência de continuidade e de perseverança da vontade dos cônjuges para a manutenção do casamento é a mesma exigida para a manutenção de uma societas, razão pela qual os conceitos de affectio societatis e de affectio maritalis são muito semelhantes em sua essência.
2.2. Ausência de expressa previsão legal
Necessário se faz esclarecer, preliminarmente, que o conceito de affectio societatis, no sentido de que esta consiste na intenção dos sócios de constituir uma sociedade, não encontra-se expressamente previsto como elemento específico para a caracterização das sociedades nas atuais legislações codificadas do Brasil [17], Portugal [18], França, Itália, Alemanha, Espanha, Argentina e México, tampouco em países do sistema da common law. No entanto, Pupo Correia, em Portugal, e Rubens Requião, no Brasil, acreditam que o legislador, ainda que de forma indireta, adotou o conceito de affectio societatis como elemento caracterizador das sociedades.
Para Pupo Correia, o conceito de affectio societatis estaria aflorado no artigo 36º, 1, do Código das Sociedades Comerciais, que cria um regime diferenciado para a chamada sociedade aparente, na qual dois ou mais indivíduos criam a ficção externa de uma sociedade que nem sequer pretenderam constituir. Isso significa que a lei conferiu uma "relevância jurídica indirecta à vontade dos sócios de constituírem uma sociedade como ente institucional diferenciado. Se assim não fosse, não haveria motivo para dar àquela situação um tratamento diferenciado do que é dado à falta de formalização do contrato de sociedade (art. 36º, 2 [19])" [20][21].
Após assinalar que a affectio societatis é "um elemento característico do contrato societário", Requião afirma que o seu conceito foi utilizado pelo Código Comercial Brasileiro "quando enumera, no artigo 305, os fatos aparentes que exteriorizam a intenção de formar a sociedade" [22][23].
2.3. A affectio societatis como elemento essencial para a caracterização da sociedade
A grande maioria dos doutrinadores considera que a affectio societatis é um elemento específico e essencial das sociedades, divergindo, porém, quanto à sua definição.
Após colocar a affectio societatis ao lado da pluralidade de sócios, do patrimônio próprio e da finalidade mercantil como elementos caracterizadores das sociedades, Azeredo Santos a define como sendo "a contribuição para o capital visando fim comum, através do esforço coletivo" [24].
Fran Martins igualmente compartilha desse conceito, definindo a affectio societatis como sendo "o desejo de estarem os sócios juntos para a realização do objeto social" [25], enquanto que Houpin et Bosvieux a definem como a "vontade de trabalhar em comum visando um interesse econômico" [26].
Todavia, vários autores criticam essa identificação da affectio societatis com a intenção de formar a sociedade porque conduz a uma tautologia, já que seria o mesmo que identificá-la com o requisito do consentimento dos contratos [27].
Carvalho de Mendonça entende que não há precisão nessa fórmula, pois "o elemento intencional, o consentimento dos contractantes sobre certo objecto é condição da essencia de todos os contratos" [28].
José Tavares também sustenta que essa intenção de formar a sociedade, embora verdadeira, "não carece de ser individualmente mencionada, por estar compreendida nas condições gerais e essenciais dos contratos". A affectio societatis não poderia, portanto, ser considerada como condição especial ou elemento natural do contrato de sociedade, mas tão somente "uma designação especial da manifestação de vontade, elemento essencial dos contratos" [29].
Embora compartilhe desse entendimento, Luís da Câmara Pinto Coelho não vê obstáculos em se recorrer àquele conceito de affectio societatis para caracterizar uma sociedade: "O intérprete deve recorrer a todos os elementos possíveis para ajuizar. Assim, não pode ser indiferente que as partes tenham ou não tido a intenção de realizar uma sociedade, e, portanto, de obter lucros; mas é igualmente apreciável o meio que tiveram em vista, ou seja, o uso normal, natural, sem risco, digamos, ou o disfrutamento activo, especulativo, produto dos elementos naturais trabalhados pela indústria dos sócios. Nem vejo inconveniente em chamar a esta intenção, mais ou menos complexa, affectio societatis, pois a sociedade pode ser tudo isso ou só parte desses elementos, conforme as circunstâncias" [30].
Em resenha, como bem salienta João Eunápio Borges, se por affectio societatis se compreende o consentimento dos contratantes, que é imprescindível à formação de qualquer contrato, é evidente que para constituir uma sociedade as partes deverão necessariamente ter a intenção de formá-la [31].
Entretanto, mesmo sendo necessária a intenção das partes, devemos atentar para a observação de Joaquin Rodriguez Rodriguez, quando este adverte que não se pode averiguar esta intenção tão somente nas declarações das partes, pois as declarações podem não existir, como também podem não ser reveladas ou até mesmo serem ocultas as verdadeiras intenções dos interessados. Por essa razão, Rodriguez sustenta que o motivo ou fim do contrato de sociedade é a participação nos benefícios e nas perdas. Este sim seria um elemento essencial para a caracterização da sociedade, ao passo que a affectio societatis seria um "puro aspecto del consentimiento en el contrato de sociedade" [32].
Cumpre ressaltar, ainda, que o próprio Fran Martins, que fundamenta a sua definição na intenção dos sócios em formar uma sociedade, adverte que a affectio societatis apenas se encontra nas sociedades contratuais ou de pessoas e não nas sociedades institucionais ou de capitais, pois "quando uma pessoa entra para uma dessas sociedades pode ignorar quais sejam os outros sócios, não havendo, assim, nenhum elo pessoal a ligá-los", ou seja, os sócios não são escolhidos de comum acordo visando realizar um objetivo comum [33].
2.4. O conceito de affectio societatis segundo um critério de ordem econômica
Diante da criticada insuficiência do conceito de affectio societatis baseado na condição de se verificar a intenção das partes, Paul Pic passou a sugerir para seu conteúdo um critério de ordem essencialmente econômica: a vontade, bem determinada, por parte de todos os sócios, de cooperar ativamente na realização da obra comum.
Para este autor, "todo contrato de sociedade pressupõe não somente a intenção de realizar benefícios por uma reunião de capitais, intenção que se pode descobrir num simples empréstimo, acompanhado de uma cláusula de participação, mas a vontade bem determinada, da parte de todos os sócios, de cooperar ativamente na obra comum. Discerne-se, em outros termos, em qualquer sociedade, um pensamento de cooperação econômica (Ripert) ou, mais exatamente, uma vontade de colaboração ativa (Thaller), em vista de um fim comum, que é a realização de um enriquecimento pela comunhão dos capitais e da atividade dos sócios" [34].
Ao invés da affectio societatis, Pic propõe como caráter específico da sociedade a "colaboração ativa, consciente e igualitária de todos os contratantes, para a obtenção de um lucro a partilhar" [35].
Essa idéia de colaboração ativa e igualitária foi compartilhada por vários outros autores franceses como Vuillermet et Hureau [36] e Juglart et Ippolito [37], tendo, ainda, sido adotada integralmente por Carvalho de Mendonça [38].
E embora não tenha expressamente admitido o conceito de Pic, o mexicano Mantilla Molina salienta ainda mais a necessidade de igualdade, afirmando que a expressão latina affectio societatis deve ser entendida como "a existência de uma igualdade tal entre as partes, que as constitua em verdadeiros sócios", pois, segundo ele, "quando falta a affectio societatis assim entendida, quando nem todos os sócios estão colocados em um mesmo plano, quando alguns mandam e outros obedecem, ou alguns se aventuram no campo do comércio correndo os conseqüentes riscos, em troca da possibilidade de ótimos ganhos, ao passo que outros nem estão dispostos aquilo ou não têm possibilidade daquilo, então falta uma verdadeira comunidade de fins: uns pretendem realizar uma empreitada econômica, enquanto outros se contentam em obter uma renda de seu capital ou uma remuneração de seu trabalho. Falta o fim comum e isso traz como conseqüência que falte a affectio societatis" [39].
O argentino Horacio Fargosi também afasta o conceito de affectio societatis como sendo simplesmente a vontade ou intenção de associar-se e propõe um conceito muito similar ao de Paul Pic, ao afirmar que ela consiste na vontade de cada sócio de adequar sua conduta e seus interesses pessoais, egoístas e não coincidentes às necessidades da sociedade, a fim de que esta possa cumprir o seu objetivo.
Fargosi acompanha a idéia de Molina ao assinalar que durante a vida da sociedade deve prevalecer uma situação de igualdade e equivalência entre os sócios, de modo que cada um deles e todos em conjunto observem um conduta na qual prevalece o interesse comum, que seria, na verdade, o modo de realização de seus interesses pessoais [40].
No entanto, essas fórmulas fundadas na colaboração ativa dos sócios não resistem ao argumento de João Eunápio Borges, no sentido de que existem sociedades "em que somente um dos sócios trabalha efetivamente para o fim social, limitando-se os demais a entrar com a sua cota para a formação do fundo social" [41].
Solá Cañizares também critica a noção de colaboração ativa e igualitária, asseverando ser evidente que ela não existe nos acionistas das grandes sociedades anônimas. Tampouco existiria a vontade de união e de cooperação, aceitando deliberadamente riscos comuns, nos acionistas das grandes sociedades anônimas que compram ações para obter uma renda e, menos ainda, para aqueles que compram os títulos com a finalidade de especular na Bolsa de Valores [42].
2.5. A affectio societatis como critério de distinção da sociedade
De outra parte, existem autores, como José Tavares, que apenas consideram a affectio societatis como um elemento de distinção entre a sociedade e outros estados jurídicos semelhantes. Em sua opinião, a affectio societatis seria um elemento intencional utilizado como último recurso de diferenciação para investigar o verdadeiro caráter jurídico do contrato de sociedade.
Ele exemplifica o seu raciocínio assinalando que a repartição de lucros na proporção de metade, a exigência de acordo comum das partes para a realização de operações a efetuar, os poderes de intervenção das partes na marcha dos negócios, bem como a situação de igualdade entre sócio e não de subordinação do empregado em relação aos patrões, são alguns elementos que podem determinar a existência de affectio societatis e, desse maneira, distinguir a sociedade de outros contratos [43].
Rubens Requião chega a dizer que a finalidade prática da affectio societatis consiste em "distinguir a sociedade de outros tipos de contrato, que tendem a se confundir, aparentemente, com a sociedade de fato ou presumida" [44]. Este também é o entendimento adotado por Houpin et Bosvieux [45], Rodrigo Uría [46] e Pinto Furtado [47].
Entretanto, se considerarmos, por exemplo, a exigência do artigo 980 do Código Civil Português, de que a atividade econômica de uma sociedade seja exercida "em comum" e não seja "de mera fruição", verificamos que o legislador já estabeleceu um elemento objetivo de distinção da sociedade e de outros tipos contratuais como, v.g., o de comunhão, sendo, assim, desnecessária a utilização da affectio societatis apenas como critério de distinção.
No caso do ordenamento brasileiro, não se justifica a utilização desse critério de distinção pois em se tratando de sociedades de fato, o artigo 305 do Código Comercial estabelece a presunção de que "existe ou existiu sociedade, sempre que alguém exercita atos próprios de sociedade, e que regularmente se não costumam praticar sem a qualidade social".
2.6. As críticas de inutilidade do conceito de affectio societatis
Parte da doutrina desconsidera totalmente o conceito de affectio societatis, alegando, entre outros motivos, a sua absoluta inutilidade prática para a caracterização das sociedades comerciais.
Solá Cañizares afirma que a affectio societatis é uma noção desconhecida pelas legislações e pela maioria dos autores e que as distintas teorias formuladas tem nenhuma utilidade prática. Acrescenta, ainda, que a affectio societatis não é um elemento específico essencial da sociedade e que é melhor abandonar definitivamente esta noção, pois não tem utilidade alguma e serve unicamente para provocar discussões doutrinárias [48].
José de Oliveira Ascensão assevera que as doutrinas subjetivistas que tentaram dar "uma pedra de toque da verificação do substrato social" das sociedades são todas "supérfluas" e que "não há nenhum animus que seja necessário comprovar para que exista a sociedade. Bastam os elementos objectivos que ficam enunciados. Fora deles, só ficam os clássicos princípios integradores, como o da fraude à lei, que também eles próprios são cada vez mais apresentados a uma luz objectivista, e não subjectivista" [49].
Pinto Coelho também rejeita a noção de affectio societatis, argumentando que ela "visa apenas o aspecto interno da vontade individual, que é, como sabemos, irrelevante para o direito" e que "o traço característico da sociedade deve respeitar necessariamente a um aspecto externo".
Cita, ainda, os ensinamentos de Navarrini, no sentido de que a affectio societatis é supérflua para a análise do juiz, uma vez que em qualquer relação jurídica sobre a qual tenha que se pronunciar, ele deverá averiguar a natureza jurídica do ato em questão, olhando para isso a vontade das partes.
Em outras palavras, sempre terá de averiguar qual foi a intenção das partes ao praticar um determinado ato produtivo de efeitos de direito, sendo, assim, desnecessário o conceito da affectio societatis para a caracterização da sociedade [50].