Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.
O advento da Lei 13.281, de 4 de maio de 2016 trouxe nova alterações no Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97).
Serão, neste trabalho, analisadas de forma breve, em nosso entendimento, as principais mudanças de natureza administrativa e penal.
Desde a anterior alteração promovida pela Lei 11.705/08, o antigo § 2º, do artigo 277, CTB, foi cindido em dois novos parágrafos (§§ 2º e 3º). O § 2º , de acordo com a redação dada pela Lei 11.705/08, aperfeiçoou a dicção do anterior, reiterando com melhor técnica a determinação de que a infração do artigo 165, CTB, poderia ser caracterizada pelos agentes de trânsito por todos os meios legais de prova em direito admitidos, “acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor”. Isso equivalia a liberar, para fins administrativos, a forma de comprovação da embriaguez ou efeito de substância psicoativa, desatrelando a prova de uma única modalidade imprescindível que poderia ser a prova pericial. Na verdade tal providência legislativa já havia sido levada a efeito pela Lei 11.275/06, que incluiu o anterior § 2º, no artigo 277, CTB, então ligeiramente modificado.
Quando se afirma que as ligeiras modificações do § 2º, do artigo 277, CTB operadas pela Lei 11.705/08 propiciaram a manutenção do sistema anterior, apenas aprimorando a técnica da redação, refere-se ao fato de que a nova conformação do dispositivo deixava muito mais claro que seu campo de incidência era estritamente administrativo, não devendo extrapolar para a seara penal, com vistas ao artigo 306, CTB. Isso porque na nova redação dada pela então Lei 11.705/08 o legislador dizia expressamente que era “a infração do artigo 165, CTB”, (administrativa), que poderia ser comprovada por outros meios legais de prova. No que tange à parte criminal seguia imprescindível a prova pericial ou ao menos a documentação formal do teste do etilômetro, a qual poderia ser equiparada à primeira, não se podendo olvidar o disposto no artigo 158, CPP. [1]
Na nova redação da Lei 12.760/12 essas características acima mencionadas permanecem intactas. Continua o legislador fazendo menção à comprovação da infração administrativa do artigo 165, CTB, delimitando bem o campo de incidência do artigo 277 do mesmo diploma. Apenas há um progresso redacional em que a lei explicita as formas pelas quais os sinais de ebriedade poderão ser aferidos pelo agente de trânsito: “imagem, vídeo, constatação de sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora”. É bem nítido que essa relação de meios de comprovação não é taxativa, mas meramente exemplificativa, pois que o dispositivo é finalizado com a previsão da possibilidade de “produção de quaisquer provas em direito admitidas”, o que, aliás, já constava na redação anterior sob a égide da Lei 11.705/08.
Por seu turno o § 3º acrescentado ao artigo 277, CTB pela Lei 11.705/08, o qual não sofreu alteração pela Lei 12.760/12, determina que o condutor que se negar a colaborar com os testes e exames previstos no “caput” será penalizado com as sanções previstas para a infração administrativa do artigo 165, CTB. Em outro giro, a Lei 13.281/16 altera novamente o § 3º. em questão e cria um artigo 165-A, CTB. Passa a afirmar a lei no artigo 277, § 3º., que todo condutor que se recusar a se submeter aos exames e testes ou quaisquer procedimentos previstos no “caput” do artigo 277, CTB ficará sujeito às penalidades e medidas administrativas previstas no novel artigo 165 – A, CTB.
Por seu turno, o artigo 165 – A, CTB consiste na falta administrativa de “recusar-se a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa, na forma estabelecida pelo art. 277”. A infração é considerada “gravíssima”, prevendo penalidade de “multa” agravada dez vezes “e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses”. A medida administrativa prevista consiste no “recolhimento do documento de habilitação e retenção do veiculo”. Além disso, a multa prevista é aplicada em dobro no caso de reincidência no período de até 12 meses. É de se notar que no âmbito administrativo, faça ou não os exames e testes, o condutor será punido com a suspensão de doze meses prevista para aquele que tem a ebriedade comprovada por exames e testes, o que equivale a tornar a submissão a exames compulsória, isso sem mencionar a multa elevadíssima e as demais medidas administrativas, em franca infração ao direito de não produzir prova contra si mesmo, que abarca também a seara administrativa e, por reflexo, acaba atingindo a penal no que tange ao artigo 306, CTB. Isso porque a coação administrativa usada para tornar obrigatória a submissão do condutor, acabará inibindo o cidadão de fazer uso de seu direito constitucional com reflexos inevitáveis na seara penal.
Considerando esse comando, passa o condutor a ser obrigado a submeter-se aos testes e exames previstos no artigo 277, CTB. O que o legislador fez foi criar uma espécie de infração administrativa por equiparação. Ele equiparou a negativa de submissão aos testes e exames à infração efetiva ao artigo 165, CTB.
É incrível que o legislador ainda insista nessa espécie de coação inconstitucional à produção de prova contra si mesmo (Princípio da não auto – incriminação), acrescentando a isso agora também uma flagrante violação ao Princípio da Presunção de Inocência, Estado de Inocência ou não culpabilidade”. O dispositivo sob comento vem sofrendo as críticas da doutrina em seu confronto com os Princípios Constitucionais sobreditos, aplicáveis ao caso mediante analogia a disposições constitucionais (art. 5º, LVII e LXII, CF) e diplomas internacionais que versam sobre Direitos Humanos e garantias individuais de que o Brasil é signatário. [2] Ainda que se considerasse que o “nemo tenetur se detegere” não tem aplicação no campo administrativo, o que não se sustenta a partir da solar constatação de que nossa Constituição estende o Devido Processo Legal, no bojo do qual se encontra o referido princípio, aos processos administrativos (art. 5º, LV, CF), não se poderia esquecer que para além da infração administrativa em casos de embriaguez ao volante, estamos ante a real possibilidade de responsabilização criminal do suposto infrator (artigo 306, CTB, sem falar do novo artigo 291, § 1º, I, CTB).
Ademais, como aventado anteriormente, o legislador acrescenta ao seu rol de afrontas à Lei Maior uma violação à “Presunção de Não – Culpabilidade” (art. 5º, LVII, CF). Isso porque ao equiparar a negativa aos testes e exames à infração de embriaguez ao volante (art. 165 c/c 277, § 3º, CTB), está presumindo que o condutor estava sob efeito de álcool ou de substância psicoativa. Há neste momento uma verdadeira inversão de valores, com a criação de uma espúria “Presunção de Culpabilidade” em franca oposição ao comando constitucional que estabelece uma “Presunção de Não – Culpabilidade”.
A única maneira de interpretar o disposto no artigo 277, § 3º, CTB, evitando uma colisão frontal com a Constituição é considerar que quando da negativa do condutor aos testes e exames, a expressão “serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no artigo 165 deste Código”, significa que o agente de trânsito diligenciará para comprovar a infração por todos os meios lícitos de prova, nos estritos termos do § 2º, do mesmo artigo, sob o crivo do devido processo legal e seus corolários da ampla defesa, do contraditório e da Presunção de Inocência. E mais, inclusive do Princípio da não auto – incriminação, pois que a previsão da recusa do condutor no § 3º sob discussão dá mostras de que ela pode realmente operar-se, inclusive não caracterizando o crime de desobediência (art. 330, CP), mas tão somente sujeitando o suposto infrator ao devido processo administrativo para apuração de possível falta. [3] Dessa forma pode-se salvar o § 3º em destaque da pecha de inconstitucionalidade, já que assim preservaria a obediência ao Devido Processo Legal e, ao invés de prever a coação à autoincriminação, tornaria expressa a possibilidade de negativa do condutor a colaborar com sua persecução administrativa e, por reflexo, penal. Certamente perdeu o legislador boa chance de extirpar o § 3º., do bojo do ordenamento jurídico brasileiro ou de reescrevê-lo de conformidade com as normas constitucionais. Não se entende por que o legislador reformulou o “caput” do artigo 277, CTB, acomodando-o à Constituição Federal e não somente manteve intacto o seu § 3º. num primeiro momento, ainda o reforçando com a Lei 13.281/16, que exige um esforço interpretativo para salvá-lo de uma inconstitucionalidade gritante e aberrante. Fato é que a nova redação do artigo 277, “caput”, CTB imposta pela Lei 12.760/12 é mais um argumento de interpretação sistemática dentro do próprio Código de Trânsito a demonstrar que o § 3º., somente pode ser aplicado e interpretado de acordo com a sistemática acima proposta. Sua interpretação literal não encontra apoio na Constituição e nem mesmo no Código de Trânsito Brasileiro, conflitando com o próprio “caput” do artigo 277 de que ele se origina. Ademais, na própria Resolução Contran n. 432/13, encontra-se tratamento mais correto da matéria. Em seu artigo 6º., Parágrafo Único, estabelece que “serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas previstas no art. 165 do CTB ao condutor que recusar a se submeter a qualquer um dos procedimentos previstos no artigo 3º., sem prejuízo da incidência do crime previsto no artigo 306, CTB caso o condutor apresente os sinais de alteração da capacidade psicomotora” (grifo final nosso). Com essa dicção resta claro que não apenas a recusa já conduz à penalização do suspeito, mas a efetiva aferição das condições psicomotoras através de outros meios legais postos à disposição do Estado sem necessariamente ferir o direito de não produzir prova contra si mesmo.
Inova a Lei 13.281/16 ao estabelecer um rol específico de penas alternativas mais adequadas aos crimes de trânsito, acrescendo um artigo 312 – A do CTB. Ali fica disposto que em caso de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, nos casos de criems previstos nos artigo 302 a 312, CTB, esta deverá ser de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas estabelecidas em quatro incisos que descrevem trabalhos relativos a resgates e atendimentos de casos de acidentes de trânsito. Há que concordar com esse ajuste, que empresta ao julgador um bom parâmetro de coerência entre a penalidade alternativa e a função educativa e ressocializadora da pena que deve se fazer presente nas infrações de trânsito, inclusive as penais.
Com a advento da infeliz Lei 12.971/14 mister se faz tratar do tema do Homicídio Culposo no Trânsito (artigo 302, CTB) quando o agente está embriagado ou em disputa de racha, pois que tal diploma legal produziu alterações nesse campo, diga-se de passagem, alterações bem atabalhoadas.
Não há alteração no “caput” do artigo 302, CTB, que trata do crime de Homicídio Culposo no trânsito, seja em seu preceito primário (descrição da conduta), seja em seu preceito secundário (pena prevista).
As mudanças começam no que era o antigo Parágrafo Único, o qual se converte em dois parágrafos. No § 1º., são mantidas as tradicionais causas especiais de aumento de pena aplicáveis para o homicídio culposo sem qualquer modificação, inclusive no “quantum” da exasperação que permanece entre 1/3 e 1/2 .
Tudo já começa a degringolar com o advento do novo § 2º., onde se pretende imprimir maior rigor ao crime de homicídio culposo no trânsito quando este ocorre em circunstâncias em que o condutor está ébrio ou disputando racha.
A iniciativa é correta do ponto de vista da proporcionalidade. Efetivamente é adequada e necessária uma reprimenda mais gravosa para aquele que comete homicídio culposo nas circunstâncias acima mencionadas. Ademais, tal providência legislativa teria o condão de, se não solucionar, ao menos abrandar os questionamentos acerca da aplicação artificiosa do dolo eventual nesses casos. A verdade é que a pena branda do homicídio culposo, quando de ocorrências que envolvem ébrios ou indivíduos de suma irresponsabilidade em disputas de racha, gera um desconforto social nítido e muitos apelam para a “solução” do dolo eventual que, na verdade, não se adequa perfeitamente, ao menos à maioria desses casos que são nitidamente de culpa consciente, conforme já demonstrado neste trabalho.
Acontece que um sentimento de impunidade ou de punição insuficiente toma conta da sociedade quando se depara com casos de homicídio culposo no trânsito, envolvendo embriaguez ou racha. Sempre nos pareceu que a solução para essa espécie de sentimento de “anomia” seria não a perversão de toda a teoria sobre dolo e culpa (mais especificamente a destruição bárbara da linha divisória nítida entre dolo eventual e culpa consciente). Mas, a alteração das penas para o homicídio culposo ocorrido nessas circunstâncias especialmente gravosas, com a previsão de uma reprimenda mais rigorosa para a própria conduta culposa. Não haveria aí qualquer perversão e até se respeitaria a proporcionalidade na medida em que a culpa consciente presente nesses casos estaria a justificar uma reação estatal mais gravosa do que aquela atribuída à culpa sem previsão ou inconsciente. Afinal, embora a legislação brasileira, com a reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984, tenha extirpado os chamados “graus de culpa”, segue sendo possível aferir que, no caso concreto, a culpa consciente configura o grau mais elevado de culpa possível, tanto que se aproxima e cria até mesmo certa confusão para alguns com o dolo eventual.
Portanto, a iniciativa do legislador em buscar um tratamento especial para os casos de homicídio culposo marcados pela embriaguez ou o racha não é passível de críticas. Não obstante, o é a forma pela qual se desincumbiu dessa tarefa.
Essa forma é não somente criticável como ridícula. Isso porque o tratamento em tese “mais gravoso” dado pelo legislador para tais situações consiste, pasmem, em manter a pena de 2 a 4 anos e a suspensão do direito de dirigir e somente alterar a qualidade da reprimenda de detenção para reclusão! A alteração é pífia, ridícula e certamente não satisfaz os reclamos sociais. Muito menos será suficiente para acalmar os ânimos daqueles que querem a todo custo perverter a teoria dos elementos subjetivos do crime, forçando uma situação de dolo eventual onde há culpa consciente dado o laxismo legislativo. Qualquer iniciante na seara jurídico – penal tem plena consciência de que na atualidade a diferença entre a pena ser de detenção ou reclusão é praticamente irrelevante. Seria de se esperar a previsão de uma pena reclusiva sim, mas com patamares mínimo e máximo bem acima dos previstos no “caput”. Assim sendo, dizer que essa reforma foi inútil e ridícula é um eufemismo para evitar o uso de palavras de mais baixo calão às quais a alteração faria jus. Em boa hora a Lei 13.281/16 revogou esse atrapalhado e medonho § 2º. do artigo 302, CTB (conforme consta do artigo 6º. Da Lei 13.281/16). Pena que o novo dispositivo entre em vigor somente dentro de 180 dias, nos termos do artigo 7º., II, da Lei 13.281/16, uma vez que a só existência por algum período dessa anomalia no Direito Penal Brasileiro é motivo de vergonha.
Por dádiva celeste a Lei 12.971/14 não promoveu suas “barbeiragens” na lesão corporal culposa no trânsito, mantendo “in totum” a redação do artigo 303, CTB. Apenas, dentro do cenário tenebroso acima exposto, como transformou o que era um Parágrafo Único em dois parágrafos distintos, ajustou a redação do Parágrafo Único do artigo 303, CTB que remetia, no caso de lesões culposas, aos mesmos aumentos de pena do Homicídio Culposo (antigos incisos do então Parágrafo Único do artigo 302, CTB). Como agora essas causas especiais de aumento de pena estão alocadas no novo § 1º., do artigo 302, CTB, a redação do Parágrafo Único do artigo 303 passa a fazer corretamente menção não ao antigo e revogado Parágrafo Único, mas ao novo § 1º., do artigo 302, CTB.
Contudo, as monstruosidades da Lei 12.971/14 não se reduzem ao novo § 2º., do artigo 302, CTB e sua inutilidade. É com as modificações feitas no artigo 308, CTB, mais especificamente, em seu § 2º., que as coisas vão desandar desastrosamente.
O fenômeno “Pokémon” ou “Pocket Monsters”, que pode ser traduzido literalmente como “monstros de bolso” ou “bichos de bolso” é uma marca japonesa que explora uma série de nichos midiáticos tais como jogos eletrônicos, desenhos animados, bonecos, quadrinhos etc.
Quando chegamos agora ao ponto de análise das alterações promovidas no artigo 308, CTB e suas reverberações na sistemática da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), inclusive em cotejo com o disposto no artigo 302, § 2º., CTB, torna-se perfeita a metafórica denominação da Lei 12.971/14 como “Lei Pokémon”. Afinal, esses monstrinhos de desenho animado são exatamente aqueles que quando são olhados num primeiro momento e de certa distância, parecem apenas meio esquisitinhos, mas, na verdade, são verdadeiros monstros com super – poderes destrutivos e assustadores. Até o momento e ainda por alguns parágrafos adiante continuaremos com a mera impressão de esquisitice, até que veremos a real teratologia da legislação sob comento, ao ponto de ser capaz de inaugurar talvez um novo ramo do estudo da ciência do Direito, qual seja, a “Teratologia Jurídica”. O “Pokémon” se revelará com todos os seus poderes para fazer rir e chorar de desespero!
Pois bem, a Lei 12.971/14 traz uma ligeira modificação na redação da parte final do “caput” do artigo 308, CTB. Substitui a frase indicadora da necessidade de perigo concreto “desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada”, pela frase diversa, mas de conteúdo semântico idêntico “gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada”. Mudam as palavras, mas o efeito é o mesmo: trata-se de um crime de perigo concreto comum. Em suma, faz-se necessário que a conduta enseje perigo real e não presumido, mas prescinde-se da identificação de um ou mais sujeitos passivos específicos (crime vago). Talvez a alteração seja salutar a fim de jogar uma pá de cal sobre a alegação de alguns autores como, por exemplo, Damásio de Jesus, que afirmavam que o crime era de dano, [4] tendo em conta um bem jurídico difuso que seria a “segurança do trânsito viário terrestre”. A palavra “dano potencial” anteriormente constante do tipo poderia induzir a essa conclusão, o que nos parece inviável a partir de sua substituição pela palavra “risco” que certamente está ligada ao perigo e não ao dano efetivo. Não obstante, esse posicionamento desde sempre foi considerado equivocado e inclusive a criação de bens jurídicos difusos como “segurança do trânsito viário terrestre” tem merecido a justa crítica da doutrina quanto à banalização do critério de definição do que seja realmente um bem jurídico – penal. [5] Ou seja, a maioria da doutrina e da jurisprudência sempre assentaram que o crime de Racha é de “perigo concreto” e não de “dano”. [6] Inclusive, como anota Marcão, o STJ já estabeleceu essa natureza de crime de perigo concreto para o dispositivo do artigo 308, CTB (STJ, Resp 585.345/PB, 5ª. Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJU de 16.02.2004). [7]
A verdade é que a mudança tem o condão de pacificar uma situação em que havia alguma ligeira dissidência, mas não altera muito o quadro prático, de modo que se trata de uma alteração que faz tudo ficar como estava, de acordo com a famosa frase de Lampedusa. [8]
Uma novidade louvável foi a alteração da pena de prisão em seu máximo cominado de 2 para 3 anos de detenção, retirando o Racha do rol de infrações de menor potencial ofensivo nos termos do artigo 61 da Lei 9.099/95. Efetivamente era algo incompreensível que uma conduta tão perigosa e tão socialmente reprovável estivesse catalogada dentre as infrações de menor potencial. Isso já foi anteriormente mencionado de passagem nesta obra.
O leitor já percebeu que até o momento ainda não chegamos ao estágio “Pokémon” da Lei 12.971/14, mas chegaremos lá, estamos perto.
Em sua versão original o artigo 308, CTB não contava com parágrafos. A Lei 12.971/14 incluiu dois parágrafos, prevendo formas qualificadas respectivamente pelos resultados lesão corporal grave e morte.
No § 1º., afirma que em caso de conduta culposa (afastados os dolos direto e eventual), se resultar “lesão corporal de natureza grave”, a pena passa a ser de “reclusão, de 3 a 6 anos”, além das demais penalidades já previstas no artigo. É preciso destacar que quando a lei menciona a expressão “lesões graves” está abrangendo as doutrinariamente chamadas “lesões graves” e “lesões gravíssimas”, de acordo com o disposto no artigo 129, §§ 1º. e 2º., CP.
Embora seja incomum a ligação entre a gravidade da lesão e a figura da lesão corporal culposa, seja no Código Penal, seja no Código de Trânsito, nada impede que o legislador crie essa distinção na reprimenda, considerando o desvalor do resultado mais intenso.
A partir de agora é preciso saber distinguir algumas situações em caso de lesão corporal culposa:
a)Se ocorre uma lesão corporal culposa na qual o autor não está na direção de veículo automotor, aplica-se o artigo 129, § 6º., CP, sem essa distinção a respeito da gravidade da lesão, o que somente será considerado para a dosimetria da pena – base nos estritos termos do artigo 59, CP (consequências do crime).
b)Se ocorre uma lesão corporal culposa na qual o autor está na direção de veículo automotor e não está disputando Racha, então é aplicável o artigo 303, CTB, também sem levar em conta a gravidade da lesão a não ser para fins de dosimetria da pena base, conforme acima exposto.
c)Se há uma lesão corporal culposa com o autor do crime na direção de veículo automotor e disputando Racha, sendo a lesão leve, esta circunstância (Racha) configura a imprudência do infrator e aplica-se normalmente o artigo 303, CTB. O artigo 308, § 1º., do mesmo diploma resta afastado porque ausente a elementar da “lesão corporal de natureza grave”.
d)Finalmente, se um indivíduo, na direção de veículo automotor e disputando Racha, lesiona gravemente (lesão grave ou gravíssima) outrem passa doravante a ser aplicável o disposto no artigo 308, § 1º., CTB que prevalece sobre o artigo 303, CTB, considerando a existência de um conflito ou concurso aparente de normas, no qual o artigo 308, § 1º., CTB se sobressai devido ao Princípio da Especialidade.
Aqui, embora seja solvível alguma dificuldade interpretativa, nota-se claramente uma impropriedade na qual o crime de Racha é qualificado pela lesão corporal culposa, quando o mais correto e sistematicamente adequado seria que a lesão corporal culposa fosse qualificada pelo Racha, assim como fez (muito mal e porcamente, como já visto, mas fez) o legislador com o caso do homicídio e a embriaguez ao volante e o racha (vide artigo 302, § 2º., CTB com a nova redação dada pela Lei 12.971/14, em boa hora revogado pela Lei 13.281/16). Os sinais de teratologia já vão então se manifestando, mas ainda não chegamos a seu ápice.
É no § 2º., do artigo 308, CTB que o pequeno e esquisito “Pokémon” jurídico se transforma de uma bolinha minúscula em um monstro tenebroso!
Acontece que esse § 2º., acima citado prevê uma qualificação do crime do artigo 308, CTB pelo resultado morte, sempre que a conduta for culposa (afastando-se as situações de dolo direto ou eventual). Nesse caso a pena prevista passa a ser de “reclusão, de 5 a 10 anos”, além das demais cominadas no tipo penal. Ora, mas acontece que no artigo 302, § 2º., CTB (mesmo diploma legal) o resultado morte advindo de culpa durante um racha tem pena prevista de “reclusão, de 2 a 4 anos, afora as demais penalidades agregadas. Há aqui uma séria contradição interna no diploma legal, a teratologia máxima da criação de um conflito aparente de normas insolúvel dentro do próprio diploma. Diga-se melhor, não de um conflito “aparente” de normas dentro de um mesmo diploma, mas de um conflito “real” de normas dentro de um mesmo diploma. Isso porque ambos dispositivos (artigo 308, § 2º., CTB e artigo 302, § 2º., CTB) descrevem a mesmíssima situação com penas absolutamente diversas.
O quadro é tão caótico que nenhum dos Princípios de solução de conflitos aparentes de normas (consunção, subsidiariedade, especialidade ou alternatividade) é hábil a resolver satisfatoriamente a situação. É simplesmente impossível ao intérprete compreender o que pretendeu o legislador com essa monstruosidade que se descortina ante nossos olhares embasbacados!
Afinal, qual dispositivo aplicar? Como não perceber e denunciar infrações aos Princípios basilares da razoabilidade e proporcionalidade? Mais que isso, à mais comezinha lógica já que algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo e ao ser uma coisa e não outra, não pode ser uma terceira diversa, ou seja, algo é verdadeiro ou falso, não havendo a hipótese de uma terceira via alternativa (Princípios da Não – Contradição e do Terceiro Excluído). Neste último campo até mesmo o chamado “Princípio da Identidade” que afirma que algo é sempre igual a si mesmo é violado. Vejamos: se afirmo que quem disputa racha e causa culposamente uma morte responde pelo artigo 302, § 2º., CTB, isso entra em contradição nos três aspectos lógicos acima com o artigo 308, § 2º., do mesmo diploma legal.
Superado o susto, passa-se então a delinear propostas de solução para esse dilema monstruoso que poderão surgir na tão maltratada doutrina nacional:
a)Frente ao conflito medonho acima descrito poderá surgir quem advogue a tese de aplicação da reprimenda mais gravosa, ou seja, o dispositivo do artigo 308, § 2º., CP por uma aplicação enviesada do Princípio da Especialidade e considerando a necessidade de repressão mais intensa da conduta de quem ocasiona morte, ainda que culposa, mas numa situação de Racha, o que, aliás, seria a “mens legis”. Neste passo o artigo 302, § 2º., CTB somente seria aplicável em sua inovação praticamente inócua de alteração de pena de detenção para reclusão no caso de embriaguez ao volante, tornando-se letra morta a hipótese de racha.
b)Diante do conflito enfocado prevaleceria o artigo 302, § 2º., CTB e o disposto no artigo 308, § 2º., do mesmo diploma seria letra morta. Para essa posição há duas argumentações plausíveis pelo menos, quais sejam:
b.1-No conflito de duas normas que regulam a mesma conduta, prevendo-a como crime e impondo penas diversas, o Princípio do “Favor Rei” está a indicar que a norma mais branda, mais favorável ao réu, deve prevalecer. Maximiliano não poderia prever que ao ensinar em sua clássica obra que o “Favor Rei” ou o “in dúbio pro reo” devem ser aplicados “cum granu salis”, apenas quando a dúvida é insolúvel no esforço da busca do efetivo sentido da letra da lei e de seu espírito, estaria agora com um exemplo teratológico em que efetivamente é impossível perscrutar os caminhos tortuosos da “mens legis” ou “mens legislatoris”, simplesmente pelo fato corriqueiro de que diante da insanidade não é viável buscar coerência. De acordo com o autor nominado é aí que “terá cabimento o in dúbio mitius interpretandum est; ou – interpretationes legum poenae molliendoe sunt potius quam asperandae; ou ainda – In poenalibus causis benignus interpretandum est: ‘Opte-se, na dúvida pelo sentido mais brando, suave, humano’; ‘Prefira-se, ao interpretar as leis, a inteligência favorável ao abrandamento das penas ao invés da que lhes aumente a dureza ou exagere a severidade’; ‘Adote-se nas causas penais a exegese mais benigna’”. [9]
b.2-A aplicação do artigo 308, § 2º., CTB em detrimento do artigo 302, § 2º., do mesmo diploma geraria, além do mais, uma nítida infração ao Princípio da Proporcionalidade em relação àquele indivíduo que perpetra um homicídio culposo embriagado. Perceba-se que para a embriaguez ao volante (artigo 306, CTB), não foi prevista qualificadora similar, restando então somente o dispositivo frouxo do artigo 302, § 2º., CTB. Já para o infrator do artigo 308, CTB, aplicando-se seu § 2º., este teria uma pena muito mais alta do que o ébrio. Ora, ambas as situações são equivalentes e não comportam tratamento tão distinto, o que violaria à proporcionalidade. A hipótese de aplicar as penas mais altas do artigo 308, § 2º., CTB também ao ébrio homicida culposo no trânsito é tecnicamente indefensável, pois que violaria, além do “Favor Rei” o “Princípio da Legalidade”. Assim sendo, o tratamento mais gravoso do disputador de racha e o menos gravoso do ébrio é inviável e desproporcional, o que também indica para a prevalência do artigo 302, § 2º., CTB que trata ambas as situações com proporcionalidade (muito mal e porcamente, mas com proporcionalidade).
Arriscando um prognóstico, tendemos a pensar que a prevalência do artigo 302, § 2º., CTB e o afastamento e conversão em letra morta por inépcia legislativa do artigo 308, § 2º., CTB deveria predominar na doutrina e nos tribunais.
Não obstante nossa proposta seria pela imediata revogação de ambos dispositivos e, se for o caso, a elaboração de uma lei que mereça esse nome. Aliás, o ideal seria que essa Lei 12.971/14 nunca tivesse existido e permanecesse no limbo onde estão os monstros do armário, a Cuca, o Saci – Pererê, o Lobisomem, o Curupira, os Vampiros, o Godzilla e os Pokémon.
Eis que finalmente, ao menos em parte, a Lei 13.281/16 exorcizou o § 2º., do artigo 302, CTB, mediante sua revogação expressa por seu artigo 6º. Agora o homicídio culposo ocorrido em situação de “racha” (artigo 308,CP) constitui somente qualificadora do segundo crime nos termos do artigo 308, § 2º., CP. Não obstante, nossa opinião seria pela revogação de ambos dispositivos e criação de qualificadoras no homicídio culposo (artigo 302, CTB, seja pela ebriedade, seja pela prática do racha e não o reverso. Note-se que com a eliminação pela Lei 13.281/16 não há previsão de qualificadora para o caso de homicídio culposo em que o agente está ébrio, o que nos retornará à antiga discussão sobre a absorção do artigo 306 pelo 302, CTB, eis que o primeiro é o elemento de imprudência da culpa ordinária; e a opção de concurso formal de crimes entre os artigos 302 e 306, CTB, o que não nos parece viável. Retornará então a sanha punitivista que intenta forçar uma situação de dolo eventual automático nesses casos, o que não se coaduna com a melhor doutrina.
Em suma, o surgimento das alterações da Lei 13.281/16 nos deixa numa situação um pouco menos ruim do que antes.
REFERÊNCIAS
DELMANTO, Celso, et al. Código Penal Comentado. 6ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
JESUS, Damásio Evangelista de. Crimes de Trânsito. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
LAMPEDUSA, Giuseppe. O Leopardo. Trad. Leonardo Codignoto. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Crimes de Trânsito. São Paulo: RT, 1998.
MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996.
MARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
PIRES, Ariosvaldo de Campos, SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de Trânsito na Lei 9.503/97. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
QUEIJO, Maria Elizabeth. O Direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2003.
SÁNCHEZ, Jesús – María Silva. A Expansão do Direito Penal. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra – Individual. São Paulo: RT, 2003.
[1] É o chamado “Limite Probatório do Corpo de Delito”, preconizado por Malatesta e previsto na maioria dos ordenamentos processuais penais modernos. MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996, p. 514 – 523.
[2] Em monografia sobre o tema, Maria Elizabeth Queijo expõe que o Princípio “nemo tenetur se detegere” está intimamente ligado ao Princípio da Presunção de inocência e ao Devido Processo Legal, podendo ser inferido deste na Carta Magna, além da previsão expressa em normas internacionais sobre Direitos Humanos e garantias individuais de que o Brasil é signatário (v.g. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e Convenção Americana sobre Direitos Humanos). QUEIJO, Maria Elizabeth. O Direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 69.
[3] É jurisprudência e doutrina praticamente pacífica que o crime de desobediência se descaracteriza quando há previsão de sanção administrativa, civil, processual civil, trabalhista ou processual penal não cumulada expressamente com a sanção penal. Veja-se, por exemplo, o seguinte arresto: “As determinações cujo cumprimento for assegurado por sanções de natureza civil ou processual civil tal quanto às administrativas, retiram tipicidade do delito de desobediência (TacrimSP, RT 713/350).” DELMANTO, Celso, et al. Código Penal Comentado. 6ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 661.
[4] JESUS, Damásio Evangelista de. Crimes de Trânsito. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 184.
[5] Cf. SÁNCHEZ, Jesús – María Silva. A Expansão do Direito Penal. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002, p. 113. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra – Individual. São Paulo: RT, 2003, p. 57.
[6] Neste sentido: PIRES, Ariosvaldo de Campos, SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de Trânsito na Lei 9.503/97. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 234. LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Crimes de Trânsito. São Paulo: RT, 1998, p. 231. MARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 198.
[7] MARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. 3ª. ed. São Paulo Saraiva, 2011, p. 198.
[8] LAMPEDUSA, Giuseppe. O Leopardo. Trad. Leonardo Codignoto. São Paulo: Nova Cultural, 2002, p. 42.
[9] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999,., p. 326 – 327.